Durante uma recente conversa com uma amiga, falamos sobre como jogos conseguem nos manter inseridos na sua atmosfera mesmo que nada aconteça. Ela estava jogando STALKER, e eu Watch Dogs Legion (PC / PlayStation 4 / PlayStation 5/ Xbox). Eu compreendia o que ela falava sobre STALKER; é de fato um jogo fantástico com a sua ambientação, mas não conseguia me relacionar nem um pouco com o que ela falava. Legion não me dava essa sensação de que eu fazia parte da cidade.
Há tempos que Watch Dogs luta para entender o seu local no mundo dos jogos e o que ele quer ser exatamente. Da representação de Chicago com Aiden Pierce à ensolarada São Francisco e seus requintes tecnológicos fomentados pela injeção de capital do Vale do Silício, a vez agora é de uma Londres futurista dominada pelo medo e pelo complexo militar que – sob o comando do governo – assume controle da cidade.
Watch Dogs Legion é um jogo que quer falar muito sobre fascismo, sobre o controle autoritário de uma cidade, sobre como este controle é lentamente inserido no cotidiano até que se torne “barulho de fundo”. Porém, ele não sabe por onde começar – ou se está disposto a começar — esse diálogo.
O primeiro indício disso está na forma como você escolhe o protagonista. Ao invés de seguir a linha tradicional da série, qualquer pessoa de Londres pode – com a devida influência – se tornar uma aliada do grupo de hackers da DedSec, seja ela uma policial, um designer, uma trabalhadora de construção, um entregador de encomendas. Cada uma delas traz consigo uma série de benefícios ou malefícios, sejam eles equipamentos especiais ou flatulência constante; no papel, é um sistema fantástico que diz para você: “O céu é o limite”.
Todavia, por mais que isso soe atraente — e em partes é — o sistema é tão desconectado do restante da história e do fato de que a cidade está sob o controle de um governo autoritário que eu me senti mais investido nas histórias dos meus personagens do que no que eles poderiam agregar para a “resistência”.
Tenho histórias sobre eles o suficiente para encher páginas e mais páginas desta crítica. Da vez que eu ajudei um assassino de aluguel a escapar do Clan Kelley – uma organização criminosa que comanda parte de Londres –, ou quando eu invadi os servidores de segurança do cTOS para apagar os registros de uma senhora que estava sendo observada devido a “atividades suspeitas”. Se dependesse de mim eu gostaria de um jogo focado apenas nisso: as pequenas histórias que se desenvolvem dentro de uma cidade.
Pois assim que você sai desse universo de recrutamento e gerenciamento de um grupo de hackers, é apresentado a uma Londres esterilizada de qualquer sintoma de resistência. É só mais um mundo aberto da Ubisoft. Jogue um e você já jogou a maioria deles. Facções são só números no mapa, “liberar regiões” significa invadir certas áreas – quase sempre com as mesmas missões – e colocar o logo da DedSec em letreiros e, da noite para o dia, as pessoas começaram a notar que a DedSec existe.
Abro aspas para o quão absurdo isto é, pois no começo da história a DedSec é apontada com um dos possíveis orquestradores de um atentado ao parlamento e, ainda que haja um bocado de dúvida sobre o envolvimento do grupo, a opinião das pessoas não muda da noite para o dia.
“Mas Lucas, você não pode esperar que um jogo traduza todo o processo de mobilização e alteração de uma sociedade em relação a diversas frentes políticas e ainda condensar para algo que gira em torno de 20 a 30 horas!”. Eu não espero isso, mas que ao menos a cidade reaja de alguma forma em termos visuais.
Não importa quantos letreiros eu coloque, quantas invasões hackers, quantos membros do Clan Kelley ou do grupo que controla Londres – Albion – eu elimine. A cidade não está nem aí para o que está acontecendo. Quando muito, uma menção dos comentaristas do rádio e olhe lá.
Watch Dogs Legion transforma-se em duas histórias em paralelo. A do seu grupo de resistência e a tentativa de provar sua inocência, derrubar Albion e outros antagonistas que não cabem aqui serem mencionados de tão pífios que são, e a história de uma cidade feita de papelão.
A manifestação em frente ao palácio de Westminster? Ela vai continuar lá dia e noite não importa o que você faça. Quem são aquelas pessoas? Membros da Dedsec? Manifestantes contra Albion? Poderiam eles se tornar meus aliados? Deixa isso para lá, Watch Dogs Legion não tem tempo para tamanha baboseira. Mas ele tem tempo para te convidar para fazer um minigame com bolas de futebol, ou quem sabe encher a cara em um pub — um dos poucos locais acessíveis da cidade.
Os checkpoints de Albion continuam presentes mesmo depois de você “liberar” uma área, depois de mudar como se tivesse uma varinha de condão a opinião das pessoas sobre a DedSec. Ao menos as patrulhas diminuem, mas isso sequer é um problema já que basta você se esconder na primeira viela que encontrar que os agentes de Albion vão esquecer que você existe em minutos.
Até mesmo as pessoas que você recruta para a DeadSec, que em sua individualidade são interessantes, não existem para você em Londres. Você cruza com eles e não há nenhum tipo de interação; fora do seu controle eles são só mais uma maquete para a gigantesca cidade de Londres.
A minha decepção não vem só de Watch Dogs Legion ser um “jogo da próxima geração” por assim dizer, mas por quanto ele abandona em favor de criar essa narrativa paralela. Watch Dogs 2 pode não ser o melhor exemplo de “mundo aberto” da Ubisoft, mas ao menos as pessoas reagiam às suas ações, alguma coisa mudava na medida que a história avançava. Existiam grupos de interesse muito maiores do que “facção malvada e uma facção ainda mais malvada”.
E, como alguém que mora no Rio de Janeiro e sabe das diversas frentes de atrito entre governo, milícias e o crime organizado — que só vem aumentando na última década e com a atual conjuntura do Brasil —, ver o ato de resistir de Watch Dogs Legion não chega nem a ser risível, é patético. Sem querer fazer a piada, mas é o bom e velho “coisa para Inglês ver”.
Resistir a o que exatamente? A história principal desconectada de uma cidade cujo design não consegue apresentar o menor indício de mudança? A história sem pé nem cabeça com momentos finais tão absurdos que só podem ter sido escritos por alguém que vive em uma bolha de privilégio e nunca teve contatos com algum movimento de resistência.
Voltei a me lembrar do que a minha amiga me falou sobre STALKER, sobre o jogo onde nada acontece e mesmo assim você se sente imerso nele. A realidade é que a maioria dos jogos de mundo aberto não conseguem alcançar este patamar. E Watch Dogs Legion está mais perto do fundo do poço no quesito “transmitir a ideia de uma cidade viva” do que eu pensava. É só um gigantesco parque de diversões, um que enjoa rápido se você não quiser brincar de recrutar pessoas como se fossem Pokémons.
Para uma empresa como a Ubisoft, que em 2019 disse que ia rever os conceitos de seus jogos após as vendas pífias de Ghost Recon: Breakpoint, parece que o que quer que ela tenha falado às equipes que ela tem sob seu controle entrou por um ouvido e saiu pelo outro. Não vou entrar sequer no tema dos abusos de poder e assédio sexual que surgiram em junho de 2020 e perduraram pelo restante do ano, pois sei que um jogo não é feito apenas por uma pessoa, e muitas delas podem estar apenas estar acompanhando a melodia que foi passada a elas. Mesmo que essa melodia soe horrível aos ouvidos.
Apesar disso eu bato o pé para falar que ao menos o sistema de recrutamento foi uma sacada fantástica da equipe. São raros os jogos de grande porte e que precisam atrair um vasto público trazerem isso, mas não vai ser uma funcionalidade que vai carregar um jogo. Muito menos visuais como ray tracing, novos efeitos de iluminação e texturas melhores. A única coisa que isto faz é deixar a maquete mais bonita.
Se é para Watch Dogs tratar de assuntos sérios como totalitarismo, grupos de resistência e a crescente — para não dizer sempre presente nos últimos dez anos — onda de controle do governo sob as suas informações pessoais, ele precisa abandonar a antiquada estrutura que ainda o prende no “passado”. Não vai ser com missões monótonas e mais uma brincadeira de pintar mapa que isso vai ocorrer. Ora bolas, até mesmo Grand Theft Auto: San Andreas tinha, dentro dos limites da época, um sistema de conquista territorial mais evoluído que Watch Dogs Legion.
É para deixar de ser covarde, botar assuntos e pautas atuais na ponta da língua sem destilá-las com medo de que uma parcela da sua clientela fique “chateada” ou “magoada”. Olhe para 2020, veja como o mundo — como certos países como Brasil, Estados Unidos e o próprio Reino Unido — tratou de forma patética a pandemia.
A fórmula “mundo aberto” pode ainda funcionar muito bem para Assassin’s Creed Valhalla, jogos de corrida ou esportes radicais. Mas se for para o próximo Watch Dogs ser só mais uma maquete bonita, eu que não vou fazer o papelão de jogá-lo.
Watch Dogs Legion
Total - 5
5
Watch Dogs Legion é tão apaixonado pelo seu sistema de “recrutar quem você quiser” em Londres que se esquece de que, para que isso combine com a sua proposta, precisa ter uma cidade reativa. O que temos é apenas mais um parque de diversões, carente de contexto, com medo de contar uma história que não for mamão com açúcar.