Quatro de janeiro de 2020 e eu já estou com o pé machucado, resultado do estúpido ato de chutar uma estante. O motivo é complicado: sono, cansaço, uma estante muito próxima da cama e a falta de óculos. Dez anos atrás eu teria mandado um dane-se e continuado com o meu trabalho. Lembrei que não estava mais nos meus 20, que a dor ia aumentar, e suprir as necessidades diárias ia ser pior ainda.
Queira você ou não, esse texto vai ser parcialmente sobre a década. Ele precisa ser, pois boa parte dela foi gasta administrando o Hu3Br. Você tem ideia que vamos fazer 7 anos? Até 2017 eu não achava que ia durar tanto tempo. Bem, eu ainda não acho – mas isso é uma questão de auto estima minha e não uma pergunta para vocês.
2019 foi um ano incrivelmente fantástico e assustador tanto no âmbito profissional quanto no pessoal. O site em si nunca teve uma interação tão grande, e não falo só de números, mas de pessoas comentando nas matérias, perguntando sobre possíveis análises e artigos ou deixando a própria opinião delas. É ainda mais impressionante quando eu olho para trás e vejo as condições que me encontrava em 2014, o segundo ano de vida dele; estava entre dois empregos e uma faculdade, tinha acabado de me mudar de estado e minha vida estava uma zona.
Foi também o ano em que contamos com a maior quantidade de colaboradores. Caso você tenha lido algumas das nossas entrevistas, como Fantasy General 2 e WarPlan, elas foram revisadas e editadas pela Flora Pinheiro e pelo sempre presente Roberto Amorim – que também vai revisar esse texto, e é responsável pela revisão da maioria das análises publicadas no site. Isso sem contar nas análises mais profundas de jogos de estratégia dadas pelo Gregório Ferraz, que teve a sua participação com o texto de Northgard. Afinal, não é a minha intenção de dizer que Hu3Br se ergueu sozinho. Inúmeras pessoas, inclusive vocês, leitores e leitoras, tiveram uma mão no processo de direcionamento dele.
Quando eu vi o sensacional resultado de algumas matérias, fiquei os minutos finais de 2019 e os primeiros dias de 2020 refletindo sobre como realizar essa retrospectiva e quais seriam os planos para 2020. Me perguntaram se eu ia fazer uma lista de jogos da década. Sempre digo que qualquer tentativa de lista tende a irritar pessoas e é raro trazer uma argumentação benéfica. Porém, é difícil não ver como de 2010 para cá as nossas vidas foram modificadas pela rápida expansão das redes sociais, a comodidade do mercado mobile, o advento do streaming, as quebras de barreiras socioeconômicas e o levantamento de outras. Tudo isso diz respeito aos jogos de uma forma ou outra. Sendo assim, eu decidi que vou fazer uma, mas ela vai ser publicada no aniversário do site, previsto para 14 de janeiro.
Outra decisão importante é a criação de um apoia.se. Sim, você leu certo e se você é insano o suficiente ou tem dinheiro sobrando vai poder ajudar financeiramente o site. Fique calmo que ele não vai sumir da noite para o dia, mas eu também não quero diminuir o ritmo e pegar mais trabalhos por fora para custear o servidor. Esse dinheiro – dependendo do quanto for arrecadado por mês – vai ser revertido para o pagamento de novos redatores, editores, e aplicado para expandir outras áreas do site. Continuo a pontuar que o Hu3Br não tem fins lucrativos; eu não vou ficar com um centavo para mim.
Acredito que todo e qualquer tipo de informação deve ser obtido da maneira mais fácil e prática por todos. Sofro quando vejo, por exemplo, que um livro que eu busco não está no meu idioma, ou que a versão em inglês sequer tem ebook — o meu método preferencial de consumir livros. Portanto, não quero que isso se aplique ao site e quero muito menos recorrer a ads, a maneira mais dolorosa de se obter renda na internet.
Agora dentro do espectro de games, 2019 foi um ano peculiar. Adorei muito do que joguei, mas a diferença entre gostar, adorar e ser memorável é uma linha bem tênue. Acredite se quiser, esse deve ter sido o ano em que eu mais investi tempo em jogos de estratégia em turnos. De Strategic Command WWI ou Field of Glory: Empires, de que ainda devo análises, WarPlan, as fantásticas campanhas de Steel Division 2, a minha falha de vencer a campanha de Phoenix Point (outro que vai ser mencionado este ano) ou os longos turnos de Total War: Three Kingdoms e o sempre presente Total War: Warhammer II. Se contarmos com os mods que mantenho instalados como Roguetech e xPiratez, eu diria que 1/4 de 2019 se resumiu a olhar uma barra de turnos ser preenchida. E acabei de tomar ciência da nova versão do Industrial Revolution para Factorio… haja tempo!
Outros jogos que adorei, como Imperator: Rome, viraram pouco memoráveis ao longo do ano. Com uma expansão de Hearts of Iron IV e Stellaris pela frente, ele vai ficar no backlog por enquanto. Blazing Chrome, que eu amei, não passou de duas ou três “zeradas”. Creio que eu não mais tenho ritmo para os contra-like.
Para a minha surpresa, jogos cuja função é estabelecer formas de diálogo não violentas foram outra grande surpresa de 2019. Sempre fui fã de um adventure ou de um “walking Simulator” (termo que detesto), mas eu me vi revisitando jogos como A Short Hike, Lonely Mountains: Downhill, Transport Fever 2, Little Big Workshop e Islanders mais vezes do que esperava.
O motivo de revisitá-los se apresentou durante as férias. Passei parte de 2019 cansado e estressado. Não sei como consegui produzir tantos posts (mais de 700) que soassem coerentes. Roberto salvou a minha pele várias vezes, e sou eternamente grato por isso, e mudanças na minha alimentação e estilo de vida seguraram as pontas.
Devido a isso que eu não vou chegar e dizer para vocês que vou começar 2020 com tudo, chutando portas e entupindo vocês de artigos. Machucar o pé, ver o quão estressado eu estava no final do ano me lembrou da minha fragilidade, da forma como eu ainda fico na linha de frente – respondendo vocês no Facebook, Twitter, produzindo notícias e análises – e que se eu desmorono o site desmorona.
O que eu posso prometer para vocês é que o Hu3Br vai continuar do jeito que vocês gostam. Querem jogos de estratégia? Vai ter aos montes, mas quero adentrar ainda mais na produção de artigos e entrevistas, introduzir novos tópicos sobre o processo de desenvolvimento deles e de outros estilos de jogos. Almejo dar espaço para desenvolvedores que não tiveram seus trabalhos expostos aqui. Contratar pessoas que possam mostrar melhor do que eu como os jogos podem tomar variadas formas – nos unir ou nos separar. Ideias que já estão germinadas no meu projeto separado, o Invisible Corners (em inglês) que eu quero transpor para cá e vice-versa.
Para dar o pontapé inicial nisso, eu não vou separar mais a minha lista de recomendações do ano por tópicos. Quero que ela mostre jogos que eu tenha coberto ou não no site, mas que passaram despercebidos para muitos. O site não pode ser apenas uma via onde você vem para conhecer mais sobre o que você ama; o que eu espero é que você saia daqui aprendendo algo, tendo uma diferente visão de mundo. Essas recomendações refletem um pouco disso.
A Short Hike
Já falei mil vezes aqui no site, mas eu gosto muito de fazer trilha. Grande parte das fotos tiradas no meu celular em 2019 foram das trilhas que eu fiz. A Short Hike, portanto, é uma recomendação óbvia. Ele não visa transferir a dureza ou complexidade dos trajetos, mas transpor o conceito de que o relaxamento e o carisma de alguns locais — e até pessoas que você encontra ao longo da trilha, tendo os seus próprios motivos para estarem ali — são o que mais importa.
PAGAN: Autogeny
A ideia de explorar um MMO abandonado proferida por PAGAN: Autogeny é quase como revisitar cômodos da sua casa antiga. É um pouco desconcertante de início; você vai ter que enfrentar os seus próprios fantasmas, seus medos e anseios de quando era mais jovem. Afinal, você já esteve lá, você sabe como as coisas funcionaram. O trauma, o medo, as lembranças vêm à superfície. Cabe a você compreender o que fazer e como melhor lidar com elas.
Total War: Three Kingdoms (Análise)
Three Kingdoms é a epítome do desenvolvimento brutal de metade de uma década da Creative Assembly tentando reinventar Total War para a próxima geração de jogadores de estratégia. A união entre os contos dos romances dos três reinos com os toques históricos, as quests e a narrativa o colocam em um local de destaque como um dos jogos mais importantes da franquia; um que deve ser celebrado por finalmente mudar as regras dos “Total War históricos”.
Eliza
Se vamos entrar em uma nova década, está mais do que na hora de investigarmos a nossa relação com a tecnologia que criamos, usamos, e como ela tem moldado as nossas vidas para o bem ou para o mal. Outros jogos, livros, e teses já abordaram esse tópico. Dentro da esfera de games poucos o fazem com a firmeza que Eliza consegue. Às vezes é difícil entender que foi nessa década que redes sociais realmente surgiram, que a obtenção de dados e uso deles para direcionar o público ou até limitar os seus direitos virou uma preocupação. Por favor, coloque em sua lista se você tem o mínimo receio pelos seus dados digitais, a sua privacidade, e como essas tecnologias podem prevenir ou já previnem você e outros de informações que merecem ser suas.
Mosaic
Se Eliza tenta estabelecer essa questão da relação do humano com o rápido desenvolvimento das tecnologias, Mosaic parte para o ponto mais prático da coisa: a possibilidade de escravidão dentro desse sistema e como ele te consome. É um pouco direto demais para o meu gosto, carece de nuance, mas ainda há aqueles que precisam acordar para essas situações, e isso talvez seja o choque de realidade necessário.
ШХД: ЗИМА / IT’S WINTER
A minha primeira experiência em morar sozinho foi também um dos maiores exemplos de gentrificação com que me deparei. Um antigo conjunto habitacional transformado em condomínio. Local onde o pobre foi rechaçado para dar lugar a aluguéis caros, a criação de indústrias, farmácias e a facilidade de locomoção pela cidade. Apesar disso os seus interiores permaneciam os mesmos. Salas e portas da mesma proporção — corredores estéreis. No verão os seus moradores preenchiam os seus corredores, muitos deles jovens, com a esperança de que ficar em uma área mais “nobre” da cidade lhes desse mais status. O contrário era visto no inverno. Minhas madrugadas eram divididas entre conversar com o porteiro sobre os tempos antigos daquele condomínio e fumar cigarro. It’s Winter e sua pequena duração de 30 minutos foi o único jogo capaz de trazer essa estranha sensação de volta.
Steel Division 2 (Análise)
É triste ver que Steel Division 2 não foi abraçado pela comunidade Wargame mais uma vez, e eu infelizmente entendo o motivo. Teve um lançamento problemático dado a falta de tutoriais, um manual desatualizado e mudanças drásticas no estilo de conquista de mapas. Todavia, a Eugen passou o resto de 2019 refinando cada aspecto do jogo, adicionando novas unidades e melhorando a campanha, o comportamento da IA e reduzindo o microgerenciamento. Mesmo que você não goste de multiplayer, ele vale pelo incrível equilíbrio que a equipe francesa conseguiu ao unir uma camada operacional e tática que interliga as batalhas da operação Bagration como nenhuma outra desenvolvedora conseguiu fazer.
Mistover (Análise)
Mistover cai na categoria que está Brigador, aquela que “um dia eu instalo isso em toda máquina que eu passar pela frente para ver se mais pessoas notam a existência dele”. Para um ano onde a série SaGa ganhou nome no ocidente até fora dos círculos tradicionais de JRPGs, é um absurdo ver o filho de Darkest Dungeon com Etrian Mystery Dungeon não receber a atenção devida. É complexo, intenso, punitivo para os despreparados, mas uma das mais interessantes confluências de design vindas do ocidente e do oriente.
Disco Elysium
Falar sobre Disco Elysium fora as minhas impressões iniciais ainda é uma tarefa complexa. Eu posso separar um artigo inteiro sobre as maneiras absurdas que você pode morrer no jogo e ainda assim não tocar nos temas que ele aborda. Ele é sobre a falha de inúmeros sistemas de governo, da criação de zonas com pouca influência governamental, da hierarquia estabelecida pela população local, sobre colonialismo, invasão, facismo, niilismo, depressão e auto depreciação. É também sobre esperança, sobre entender de onde vem a vontade de viver — se você encontrou a sua ou se você vai encontrar um dia. Sobre abandonar os pedaços do passado ou aceitá-los como parte de quem você é, imperfeito. Junto de Age of Decadence, ele merece ser um dos pilares de estudo do que se fazer e do que não se fazer em um RPG em um mundo pós Planescape Torment.
Unity of Command 2
Unity of Command 2 tinha tudo contra ele: a sequência de um dos mais venerados wargames para iniciantes dos últimos 10 anos, a pressão de renovar e inovar sem perder o foco, e fazer isso sem repetir o mesmo teatro de guerra do mesmo ponto de vista. Tomislav Uzelac e a equipe da 2×2 fazem isso parecer simples, até natural. Unity of Command 2 pega todos os ensinamentos do jogo base — linhas de suprimento como ponto forte de concorrência entre duas tropas na Segunda Guerra Mundial, posicionamento de unidades em diferentes terrenos em pequena escala — junta com um sistema de cartas que não detrai ou remove o estilo tático e redistribui os desafios para até os mais veteranos da série terem grandes dificuldades para compreender como solucionar um cenário. Outro wargame que deve entrar na lista de estudo para designers de estratégia.
Neo-Brutalism of Tomorrow
Eu sei, Control foi muito bem recebido e dado como o jogo do ano por inúmeras publicações. É por isso que eu recomendo Neo-Brutalism of Tomorrow (e o corpo todo de instalações virtuais do Moshe Linke, como Fuge in Void). Não tem a ação ou a narrativa da Remedy, e nem precisa. O forte contraste de cores, diferentes e peculiares proporções que ainda fazem sentido mostram a precisão e violência do brutalismo pelo qual a ambientação do shooter ficou conhecida. De quebra, é de graça e você conhece mais um novo artista.
Death Crown
Todo ano eu me questiono “Quais foram os jogos de estratégia que puderam nos ensinar algo diferente?”. Quiçá Death Crown possa literalmente levar essa coroa. O estilo 1-bit dá espaço para demonstrações de como estabelecer linhas de controle e comando com um clique do mouse. É capaz de destilar uma das mais complexas interações do mundo de estratégia para um clique, é incrível e essencial para quem tem o interesse em ver como implantar sistemas complexos sem sobrecarregar o jogador.
Como falo, nenhuma lista é completa ou conclusiva. Portanto dessa vez vou abrir espaço para outras listas que vi e achei importante compartilhar. Quem sabe você encontre algo que esteja mais do seu interesse? Que tenhamos um ótimo 2020!
Os 10 favoritos de Austin Walker (Vice) 2019
Os favoritos de Matthew Gault (Vice) 2019
The Art of letting Go (Re:Bind)
The Friendship Endgame (Re:Bind)
Descent II and the Gig Economy (Re:Bind)