Quem dera que, ao invés de ter “sofrido” com as atualizações parceladas de Surviving Mars, tivesse recebido Per Aspera (Steam / GOG) de cara. Quem dera que todo o falatório da competente Haemimont Games sobre o quão “importante” era recriar a “verdadeira” e “científica” experiência de sobreviver em Marte — tão vazia quanto seu lançamento inicial — tivesse servido para algo. “Falhas” que a Tlön Industries usa para enaltecer o seu jogo de estratégia e gerenciamento.
Onde Surviving Mars atraia o olhar via seu realismo e sua “complexidade”, Per Aspera – ao menos no que diz respeito à versão de preview que nos foi enviada pela sua publisher, a Raw Fury – pode até parecer trazer um olhar mais distante do que é Marte para os humanos, mas não um que fica a desmérito do mesmo por conta disso.
A desenvolvedora argentina deixa de lado aspectos mais “humanos” – que prefiro chamar de supérfluos, como diferentes tipos de comida ou a felicidade dos seus colonos – para se focar no planeta vermelho. Um que é — e por muitos anos vai continuar a ser — uma grande fonte de inspiração e de exploração pela humanidade.
Você começa a sua campanha como a IA IMA, enviada previamente pela NASA para estabelecer a estrutura base como minas, repositórios de comida, água, portos de aterrissagem, colônias e obviamente construtores para tarefas essenciais como manutenção e construção de estruturas.
Para impulsionar o jogador a dar o primeiro passo ao desconhecido, a Tlön Industries aplica uma genial narrativa onde você tem que conversar com Houston sobre as condições climáticas de Marte, suas principais diretrizes como uma IA autoconsciente e quais são os elementos essenciais para terraformar o planeta.
Na medida em que a AI (você) progride na construção de minas para obter carbono, fábricas de alumínio e eletrônicos, e testemunha a chegada dos primeiros humanos no planeta, ela começa a questionar o seu propósito na missão. Será ela uma mera engrenagem no que vai ser um longo e árduo processo de mudança, ou ela é a principal ferramenta para que isso aconteça, atribuindo a si um elemento quase divino para os humanos que chegaram e aqueles que ainda vão chegar?
A temática não é nova em jogos; já foi discutida múltiplas vezes por diversas metodologias, sendo uma das mais impactantes a de Nier: Automata em 2017. Todavia, vê-la aplicada em um jogo de estratégia e gerenciamento é algo raro.
Afinal, jogos de gerenciamento tem uma afinidade muito mais forte com aspectos “lógicos” e menos “emocionais”, por assim dizer. Construa uma rua para aumentar a eficácia, coloque essa indústria próximo do local de obtenção e matéria prima para garantir que o produto chegue mais rápido ao destino e por aí vai. Per Aspera não deixa de lado essa influência, tampouco a necessidade de que isso seja feito de alguma forma — o que comento mais abaixo — mas se dá a liberdade de questionar as decisões que a IA IMA toma no processo.
Um dos pontos chaves do preview ocorreu após eu terminar a construção da fábrica de robôs, pequenos trabalhadores que te ajudam a manter e fazer o trabalho pesado da indústria do jogo. Segundos depois da construção a IA se questionou se foi ela que fez aquilo, se ela seguiu diretrizes, e acima de tudo: se os robôs eram dela.
Outros jogos — principalmente indies de menor porte como POST/CAPITALISM e The Future of Terra Nil — flertaram com a ideia de estabelecer uma narrativa das ações do jogador. Porém, a maioria dessa narrativa é estabelecida com base nas mecânicas que rodeiam as suas ações e nem sempre ficam tão visíveis para aqueles sem um olhar perspicaz; um caso bem diferente de Per Aspera.
Além do mais, grande parte do gênero tende a lidar com períodos que antecedem ou precedem um evento de grande impacto. O já citado Surviving Mars começou sobre o início do sonho da colonização de Marte para só depois traçar leves comentários sobre o processo de terraformação. Surviving the Aftermath e Endzone: A World Apart lidam com eventos que precedem a destruição da Terra.
Quando focados em processos transitórios, como é o caso de Anno 1800, Tropico 6, Port Royale 4 e tantos outros, as desenvolvedoras tentam ao máximo deixar seus elementos o mais sanitários possível. Você não vai ver os pontos negativos da revolução industrial em Anno, a esfera de influência que ocorreu nas Américas e em tantas outras regiões da Terra durante a Guerra Fria, muito menos traçar algum comentário sobre a colonização do Caribe vista em Port Royale 4.
Per Aspera bate o pé no chão e diz “se formos conversar sobre colonização e terraformar Marte, precisamos também mencionar existencialismo” — e nisso não se limita apenas à IA IMA, mas também a nós humanos. Mudanças de tamanha magnitude são complexas até para os mais “preparados” dos seres humanos; por que então não trazer à tona essa temática, já que olhamos tanto para o espaço enquanto o nosso planeta é consumido por nossa ganância?
E nem por conta disso Per Aspera deixa se levar demais aos extremos de só se focar na narrativa; a complexidade de se estabelecer e criar uma colônia em marte está presente. A Tlön Industries opta por uma cadeia de suprimentos e matérias primas mais direta do que seus “competidores”, mas nem por isso deixa a bola cair.
Você tem o seu ciclo básico de matéria prima entra -> produto finalizado sai, energia elétrica é necessária para manter funções básicas, e é essencial garantir um estoque bem recheado de produtos para os colonos. Embora isso soe mais simples do que o seu jogo de estratégia médio sobre o qual tendo a escrever, ele funciona muito melhor do que a compra e venda de produtos de Port Royale 4 ou até o sistema de felicidade e especialistas de Surviving Mars. Introduzir esses sistemas traria somente mais micro gerenciamento para um jogo que não precisa dele, já que, ao invés de você ter apenas um “mapa”, você tem acesso ao planeta inteiro para fazer o processo de terraformação.
A versão preview não me deixou, é claro, chegar até o fim, mas mostrou-se extremamente competente em começar a criar complexidade por meios desses sistemas simples. Manutenção periódica de equipamentos, a própria reorganização da base quando você encontra uma nova veia de minérios, posicionamento de usinas eólicas de acordo com a quantidade de vento em Marte (que muda durante o processo de terraformação) e, é claro, os perigos naturais do planeta. Destes só vi pequenas tempestades de areia que destruíram uma pequena parte da minha base, mas consigo imaginar que eles tendem a ser mais frequentes quanto maior for a área ocupada por humanos.
A sensação que tive é foi quase a mesma de jogar Factorio, que é um elogio e tanto. Uma mudança ali, outra acolá, ajusta base, muda organização, repensa o projeto, descobre maneiras de otimizá-las sem prejudicar o processo de fabricação. Isso engaja e é um ótimo componente para me manter ocupado até que a próxima ligação de Houston para IMA acontecesse. E céus, que ansiedade eu tinha para que isso acontecesse.
Cada palavra trocada entre a base e a protagonista criava nova incógnita na minha cabeça. No final da versão de preview novos personagens surgiram, como uma psicóloga e um membro de uma equipe de exploração. IMA começou a se questionar ainda mais sobre a presença dela, sobre os objetivos ou quais seriam as “políticas pessoais” dessas pessoas. Será IMA capaz de se rebelar contra os humanos? Não, seria muito clichê, mas qual será o seu destino final após Marte ser terraformada? Com marte transformado em um local para humanos viverem, seria sua existência colocada em cheque?
Chega a ser maldade saber que eu nem tenho ideia de quando vou ter essas respostas. Estou ansiosíssimo para conhecer mais a história de IMA, terraformar Marte (sem comprar DLCs como em Surviving Mars) e apreciar a beleza singular do planeta vermelho apresentado por Per Aspera. Quando? Só o tempo, ou melhor, a Raw Fury e a Tlön Industries vão me dizer. Meu radar está apontado para Marte e espero receber um retorno em breve.