Se você tem ou teve uma vida acadêmica, vai de alguma forma se relacionar com o que vou dizer. Imagine que você é um aluno que acaba de entrar na faculdade. O primeiro semestre é aquele misto de novidade, insegurança e desejo de impressionar. Cada tarefa para qual você é designado tem uma magnitude que você não tinha visto até então, ainda mais se é de Humanas. Cada texto merece o triplo de atenção, detalhismo, sinônimos que saem dos cantos mais obscuros de um dicionário. Isso para um relatório que poderia ser feito em uma página. O simples vira complexo, e o complexo mais complexo ainda. Good Company (Steam) da Chasing Carrots é esse aluno.
Como outros alunos na sua classe, Good Company quer ser a próxima inovação no quesito “logística, desenvolvimento e gerenciamento de uma indústria”. Para isso ele busca inspiração no “boom” da década de 70 e nas “fábulas” das empresas tais como a Microsoft ou Apple que começaram em uma garagem.
Ainda que não seja do interesse da Chasing Carrots pautar o período socioeconômico do período, ela ao menos desmistifica parte do processo ao colocar você não como alguém que magicamente obteve dinheiro e começou o seu próprio negócio, mas como um herdeiro de uma pequena empresa do seu pai. No fundo ainda é um jogo sobre criar linhas de produção, lucrar e encontrar a diversão nisso. O problema, no entanto, é que esse último componente está em falta.
Para a desenvolvedora, se destacar frente à “concorrência” é deixar o jogador fazer parte do processo de produção. Você cria o seu simpático avatar e nas primeiras horas “põe a mão na massa” criando componentes simples até você começar a ter lucro e espaço suficiente para comportar uma linha de produção. Te lembrou Factorio? A mim também, mas a equipe de Factorio sempre teve em mente que o jogador, de uma forma ou outra, é parte do processo. A Chasing Carrots, por outro lado, te deixa neste estágio apenas por algum tempo e na hora de transicionar entre uma linha vital para um supervisor, ela não sabe o que fazer.
Com o passar do tempo no modo freeplay ou nas missões da campanha, você deixa mais e mais de lado a ideia de que você precisa estar presente na fábrica para que ela funcione. Mas Good Company te força a fazer parte dela. Não há como, por exemplo, alterar as linhas de produção de uma fábrica sem que você mova o seu personagem até a peça que você precisa e peça para que ele mude o que está sendo criado. Mais uma vez Factorio faz isso, mas de uma maneira elegante.
O ponto crucial aqui é que Factorio não tem funcionários (além dos robôs que constroem o que você pede automaticamente). Good Company requer que você os tenha em cada etapa da produção e não te deixa administrá-los com qualquer eficácia.
Um exemplo primordial disso está na logística; o conceito dela é simples. Clique em uma área, arraste o mouse até outra área e o jogo irá criar uma conexão com os componentes necessários. Por exemplo, você precisa de componentes eletrônicos, plástico e metal para construir uma calculadora; assim que a matéria-prima é comprada, basta arrastar uma linha para a mesa de montagem que os materiais serão entregues.
Para construir um computador a história é bem diferente. Você tem de ter linhas de montagem, linhas de produção e pesquisa, estoques. Isso ocupa espaço, vários prédios às vezes. E, sabe lá por qual motivo, não se pode entrar no modo de logística e conectar equipamentos que estão em diferentes prédios a não ser que você mova o seu personagem até que ele fique entre os dois edifícios. O motivo? Simples: você não pode mover a câmera enquanto está no modo de logística.
O que era para ser um processo prazeroso e criativo começa a se tornar um caos. As linhas de logística começam a parar de funcionar e você não sabe o motivo. Vi casos onde o erro estava em como eu conectei a mesa de montagem 1 com a mesa de montagem 2 e o estoque; em outros casos, funcionários deixavam de trabalhar pois não sabiam onde colocar uma caixa de materiais.
Até agora eu estou com a pulga atrás da orelha para entender como os funcionários não entendiam o conceito básico da minha linha de produção. Presumo que o motivo de estar em acesso antecipado é um deles, mas para um jogo que tem tamanho foco em logística, a “burrice” da IA assusta. Em uma das minhas fábricas eu tive que demitir todos os funcionários, apagar todas a linhas de logística e refazer do zero para que ela voltasse a funcionar. Bug, falta de informação, erro na IA? Eu não sei, mas eu não quero ter que andar para lá e para cá só porque o jogo decidiu que não é uma boa ideia ao menos sequer ter uma opção de “remover telhados” para que eu possa ver o que acontece em uma parte da fábrica sem ter que andar para lá.
Referências não faltam por aí, já que – como o “boom” da informática nos anos 70 – jogos de logística vêm aos montes e não tem previsão de parar. O “eternamente em acesso antecipado” Software Inc usa um sistema parecido com o de Good Company, mas sem prejudicar o funcionamento do jogo em si. Você tem o seu “CEO”, e ele vai botar a mão na massa (ao contrário dos CEOs do mundo real) em todos os componentes da sua empresa de informática; dos softwares simples até a administração de servidores dedicados para um MMO. Tudo isso é feito de um jeito fácil de entender; os menus, mesmo carecendo do apelo estético de Good Company, são perfeitos para a proposta.
Posso até citar Little Big Workshop, que já cobri no site. Ele pode não ter o sistema de “criar seu avatar”, mas por meio de menus bem intuitivos você pode criar diferentes produtos, atender a demanda do mercado e lidar com flutuações de preço – conceito que Good Company diz ter, mas que não pude experimentar devido à quase constante fúria com as minhas linhas de produção.
Estou ciente de que devo dar um “desconto” pois ele está em acesso antecipado, e até existem ideias muito boas nele. A minha favorita fica para a construção personalizada de eletrônicos: ao invés de ajustar “sliders” como em outros jogos, você “brinca” de mini-tetris. Coloque mais espaço para a bateria e ele terá maior vida útil, mas vai custar mais caro do que a média do mercado. A teoria é que você tem que equilibrar os pontos fortes e fracos para atender a demanda ou criar um novo público-alvo. Mais uma vez, foi algo que eu não pude testar a fundo, já que vender o meu primeiro computador sem entrar no vermelho foi quase impossível. Foi preciso três demissões em massa, dois reajustes das minhas linhas de logística e muita reza para que ele saísse da fábrica sem desmontar no primeiro solavanco do caminhão.
É isso o que ocorre quando um aluno tenta se destacar demais ao transformar um relatório em TCC. Good Company começa pelos conceitos mais complexos sem ter uma base para que você consiga atingir essa tal “complexidade” em uma progressão natural. Suas ideias estão espalhadas em diferentes frentes e nenhuma delas tem a finesse de um Factorio, um Software Inc, um Little Big Workshop ou sequer da série Anno.
Não há o que justifique tamanha “complexidade” sendo que muitos processos – como estabelecer linhas logísticas – devem ser, de acordo com a sua proposta, o passo inicial e quem sabe o mais simples de todos. Nem me arrisco em chamá-lo de joia bruta, pois para chegar nesse ponto ainda falta muito. Pode ser que no futuro a Chasing Carrots descubra como deixar o jogador gerenciar funcionários virtuais e produções imaginárias sem que ele enlouqueça.