“Roguelites”. Ô terminho terrível que a indústria criou. Às vezes apenas de o ler eu já coloco as minhas expectativas lá em baixo, pois a história é quase sempre a mesma: morra o suficiente para obter pontos e subir de nível, e assim que você se sentir confortável (leia-se poderoso o suficiente) você poderá matar o chefão da fase. Poucos se salvam da imensa lista que povoa o Steam e outras plataformas digitais. Dentre eles estão Binding of Isaac, Dead Cells, Unexplored, e agora — possivelmente — Children of Morta da Dead Mage (Steam).
Para começo de conversa, Children of Morta não é o seu típico roguelike/lite. Você não é jogado em uma dungeon aleatória com o mínimo de história possivel, tendo de se virar para sobreviver. A Dead Mage dedica um bom tempo para te aclimatizar na história, a de uma família cuja região foi amaldiçoada num evento inexplicável que fez surgirem seres de baixo da terra, animais serem infectados por doenças aparentemente sem cura, e que sugou o chão e a esperança de pais, irmãos e irmãs agora mergulhados nas consequências desses eventos.
Apesar de soar clichê — talvez algo que eu diria da grande maioria das histórias de jogos atualmente — Children of Morta te fisga mesmo é pela maneira que essa história se desenrola, os detalhes que lentamente são apresentados como um pequeno quebra cabeça. Ele vai além da matança desenfreada e, com a ajuda de um excelente narrador cujo estilo me lembra muito o de Bastion — ah, o valor de um narrador que sabe quando ficar quieto — demonstra como laços familiares podem ser feitos e desfeitos em um piscar de olhos. Foi este o principal motivador para que eu investigasse as “Silk Caverns”, agora tomadas por aranhas e outros seres malignos, e também o local onde Children of Morta me conquistou de vez.
Uma crítica prevalecente que faço com roguelites é a dificuldade de muitas desenvolvedoras em disponibilizar a informação necessária para o jogador de maneira coerente e transparente. Lotam a tela de inimigos, múltiplos ataques, efeitos, e há horas que nem com uma intervenção divina você consegue decifrar onde está o personagem e de onde está tomando dano. O próprio Dead Cells, apontado anteriormente, e Wizard of Legend — que por acaso tem efeitos fantásticos — sofrem desse leve “descuido”. Muitas vezes sentia que morria parte por incompetência, parte por não enxergar meu personagem. Ao menos em Children of Morta eu posso assumir que era totalmente incapacidade minha.
Com receio de soar um disco riscado, o combate em Children of Morta me lembra mais uma vez do trabalho da SuperGiant Games em Hades, atualmente em acesso antecipado na Epic Games Store. Difícil saber quem influenciou quem, ou até se houve uma influência, mas Children of Morta se baseia em fazer o jogador entender da forma mais dolorosa possível que o posicionamento dele perante ao inimigo é tão importante quanto os itens e os níveis que ele obteve.
Já que a demo era limitada para o personagem que atua como um tank — espada, escudo, tudo o que você espera do estilo de jogo — tentei desbravar as cavernas com a devida cautela. Se eu era o tal “tank”, isso significava que eu ia aguentar mais dano do que qualquer outro personagem, certo? Bom, isso pode até vir a ser verdade na versão final, mas o que eu apanhei para eliminar certos inimigos não está no papel. Não foi nem questão de eles terem muitos pontos de vida; o problema era a minha dificuldade em pegar o ritmo dos padrões de ataque deles. Pois, assim que peguei, virei praticamente uma máquina letal.
A partir daí Children of Morta pega uma das minhas mecânicas favoritas de Diablo III emprestada: quanto mais inimigos você matar em um pequeno espaço de tempo, mais moedas de ouro você obtém. Pra mim é a maneira perfeita de equilibrar risco e recompensa, e também fazer uma bela de uma pegadinha no jogador fazendo ele pensar que é invencível e assim morrer de maneira patética para espinhos. Falo por experiência própria.
Mas nem a própria morte é algo inútil em Children of Morta; cada vez que voltava para a casa da família — que funciona como uma “base de operações”, com ferreiros e outros personagens que te ajudam a melhorar suas habilidades e equipamentos — tinha a possibilidade de ver mais uma curta cinemática sobre a vida deles. Do irmão que queria ajudar seu pai na luta contra o mal, mas foi impedido por uma mãe preocupada com o seu bem-estar, até o cachorro que salvei das cavernas e agora estava com uma peculiar doença.
Não é todo dia que um roguelite me faz ficar tão interessado nos protagonistas e história quanto no combate e exploração em si. Esse é o tipo de gênero que eu jogo justamente pela falta desses elementos, para poder me focar exclusivamente na jogabilidade. Todavia, lá estava eu, sentado na ponta da cadeira com a mão no queixo me perguntando “O que vai acontecer depois? Será que o cachorro irá sobreviver? E o garoto, agora que desapareceu junto com as adagas? Encontrarei ele nas cavernas ou ele padecerá no caminho?”.
Melhorei meu equipamento e desci para as cavernas; mal sabia que essa seria a minha última vez. Não tive um sentimento de “nossa, mal posso esperar para descobrir o próximo item ou a relíquia que irei encontrar”; queria mais saber sobre o garoto e o cachorro.
Uma porta se abriu ao chegar no final do segundo andar da caverna e dela saiu uma aranha gigante. Era hora do “teste final”, de saber se tinha me habituado com as mecânicas e o desafio até então impostos por Children of Morta. Foi difícil; os padrões de ataque da aranha muitas vezes eram imprevisíveis e, para completar o pacote, aranhas menores desciam do teto para tornar a luta ainda mais estressante.
Próximo da morte, venci a batalha. A aranha não deixou cair nenhum “loot” ou algo do tipo; “esse não é o foco do nosso jogo” foi a interpretação que eu fiz dessa decisão tomada pela Dead Mage. Somente uma porta me separava de possivelmente desvendar o mistério por trás das cavernas e o que viria em seguida. Infelizmente, esse também marcou o fim da versão de demonstração. Malditos.
Apesar da ligeira frustração e da ansiedade em conhecer mais, a Dead Mage em pouco mais de duas horas de jogo provou um excelente ponto: que um roguelite não precisa ter uma história obtusa como em Dead Cells, nem a colocar em segundo plano como outros jogos do gênero fazem. É tudo questão de saber equilibrar esses elementos com um combate interessante. E pelo que eu vi, Children of Morta tem isso aos montes.
Agora tudo o que me resta é sentar e esperar a versão final. Que venha o quanto antes por favor, e que o cachorro fique bem.