2020 trouxe dezenas de mudanças para a minha vida. Quarentena, um novo ritmo de exercícios, tentar manter a sanidade em um país que não está nem aí para seu povo, e começar a ouvir podcasts. A maioria dos podcasts que ouço são áudio dramas de terror ou ficção científica. Algumas histórias são batidas, repletas de clichês e previsíveis. O que isso tem a ver com Aquanox Deep Descent (Steam / GOG)? Se você gosta desse tipo de narrativa, então o jogo da Digital Arrow é um buffet da mais alta qualidade.
O uso de clichês ou histórias já contadas dezenas de vezes não é um problema em si, ainda mais que a franquia Aquanox vem de uma era onde a narrativa ficava em segundo (ou até terceiro lugar), tanto que na época os jogos com melhor narrativa — ao menos no que diz respeito aos mais populares — eram RPGs. Todavia, a Digital Arrow tinha o potencial de trazer alguma crítica maior como feita em MechWarrior 5, mudar o rumo da história, mas optou por não fazer.
Tudo que você vê e verá ao longo da campanha é tão previsível quanto os podcasts que eu ouço. Aquela pessoa que parece boazinha? Sem dúvidas irá se tornar o vilão. A facção que te ajuda vai te trair mais cedo ou mais tarde, etc. É um fantástico esforço em mediocridade, mas um que eu não consigo parar de mastigar.
A Digital Arrow tem a sorte de capturar tão bem o que fez os mares de Aquanox e Aquanox 2 convidativos, a mistura de decadência, destruição e perigo escondido em cada canto. Deep Descent eleva isso com novos visuais e dá até seu toque especial com missões mais claustrofóbicas – que às vezes prejudicam o ritmo da campanha. Um pequeno “defeito” que eu tento deixar passar em branco em favor da jogabilidade.
Sendo um belo apreciador de shooter com fortes influências dos anos 1990/2000, Aquanox Deep Descent entra na minha lista pela sua incrível versatilidade de equipamento e como a IA se comporta até nas mais complexas situações. A versão de preview que joguei criou um receio de que a adição de um modo coop fosse prejudicar a curva de dificuldade, mas a Digital Arrow acertou a mão em deixar o jogo desafiador seja quando você está sozinho ou com três outras pessoas.
Me preparava toda vez antes de sair para uma missão: estava com munição suficiente? Estava com kits de reparos suficientes? E se eu encontrar uma emboscada no meio do caminho, terei eu como evitá-la ou ao menos despistá-los? A IA se mostra formidável ao criar emboscadas, desviar dos meus mísseis, recuar quando necessário, e se unir com outras tropas para avançar em cima de mim.
Visto da perspectiva de alguém que jogou boa parte da campanha sozinho, Aquanox Deep Descent é maravilhoso. Os problemas mais sérios começam a aparecer quando decidi chamar um amigo para completar a campanha.
Por ser oriundo de um Kickstarter, um dos principais pontos que usado para atrair a fundos foi o modo coop. Embora não deixe a desejar em termos de dificuldade – sendo o recomendável caso você queira passar bastante raiva nas missões finais – o fato que a Digital Arrow optou por usar personagens predeterminados ao invés de deixar eu criar o meu personagem só faz com que a irritante história fique pior ainda.
Na hora de jogar solo eu tive de arcar com um dos estereótipos mais enjoativos na ficção científica: O comandante que acha que está sempre certo e que não aceita ordens de ninguém. Cada frase que ele soltava soava como um disco arranhando no meu ouvido. “Por favor, fique quieto, eu não quero jogar com você, ao menos deixa eu fingir que você não existe”, resmunguei depois da milésima patada gratuita que ele deu em uma chefe de estação sobre um conflito entre duas facções inimigas.
Por que eu não posso ser o cientista, a pilota com habilidades furtivas? Não me importa se isso só mudar a estética e algumas falas. Se é para ter um jogo cujas decisões pouco impactam o resto da história, que elas não saiam da boca de mais um babaca no mundo dos jogos.
Como eu estou tão acostumado a mastigar essas histórias, chegou a um ponto que eu comecei a pular as cinemáticas por conta do “protagonista principal”. O pior? A discrepância que existe entre a trama principal e as quests secundárias.
Aquanox Deep Descent é dividido em setores, cada um com sua boa dose de sidequests opcionais e pequenos colecionáveis. Quanto mais eu completava das sidequests, mais embasbacado eu ficava pela qualidade delas. É como se outra equipe de roteiristas tivesse as escrito. Há um toque mais “humano” para os personagens, elas expandem o universo do jogo de múltiplas maneiras interessantes e sem cair no tradicionalismo.
Mesmo que seja algo simples como “vá ali e destrua um grupo de piratas”, o jogo indica que os tais piratas não são nada mais do que pessoas tentando sobreviver em um mundo dominado por corporações e facções que querem o controle de todos os recursos naturais que ainda restam. É nestas horas que eu queria que Aquanox Deep Descent tivesse usado um sistema de facções que pudessem ser influenciadas de acordo com as suas ações ao invés de algo linear.
Na hora que eu vi que os “piratas” não estavam mais do que refinando o pouco de combustível para que eles e suas colônias sobrevivessem eu me perguntei: “Por que eu vou me enfiar nessa briga sendo que, os que estão sendo aprisionados são eles?”. Me faltou agência, me faltou a liberdade de sair dando uns tapas e quebrar o meu vínculo com a facção que me “ajudava”. Tinha de manter um roteiro restrito para prosseguir até o final.
Reitero o que disse antes, Deep Descent pode ter seu estilo enraizado nos anos 2000, mas havia muito espaço para que a Digital Arrow trabalhasse mais agência para o jogador. Deixe-me questionar a autoridade de outras facções, pode até ser com o piloto babaca, mas me dê escolha.
Pois, depois que você remove o véu de disparidade e constante frustração com a história, você é deixado – como disse antes – com um shooter que não é só extremamente competente no que faz, mas um que eu facilmente coloco ao lado de outros como Overload e os jogos anteriores da franquia Aquanox. O fundo do mar raramente é um bom pano de fundo para batalhas intensas que não caiam no “dê voltas no inimigo até eliminá-lo”; a Digital Arrow fez o que pode dentro dos limites dela para fazer com que esse material seja engajante.
Momentos de batalha dentro de cavernas claustrofóbicas, cidades decadentes e o constante vai e vem entre as embarcações inimigas e a fauna local são o que mais me prenderam — e devem prender a maioria dos jogadores — à Aquanox Deep Descent. Imagina se estes elementos de jogabilidade fossem melhor amarrados a história? Sentir na pele que uma ação realizada fez diferença?
Vendo sob a lente de 2020, creio que Aquanox Deep Descent vai passar muito longe do radar (ou sonar) de várias pessoas – e os motivos são claros. Entretanto, apesar da série de defeitos descritos sobre a história, ele ainda é um tremendo shooter para quem busca aventuras no fundo do mar.
A minha recomendação para Aquanox Deep Descent é a mesma que digo quando sobre um dos trocentos podcasts que ouço antes de dormir: Se você esperar algo que vai mudar a sua vida, você vai ficar decepcionado. Caso esteja voltando para a franquia pelo o que ela oferecia de melhor — o combate — você vai se sentir em casa.
Aquanox Deep Descent
Total - 7.5
7.5
Aquanox Deep Descent é feito para quem já tem alguma intimidade com a série e suas mecânicas de combate, mais refinadas e com mais variedade, e querem esse reconforto de revisitar o fundo do mar com todas as suas atratividade e perigo. Pois só eles vão ter paciência de aguentar a história batida, a falta de agência e os protagonistas irritantes. Era para ser uma reignição de uma franquia, mas deve acabar como só uma fagulha.