Eu amo Wargroove. Eu amo como as unidades se movem, os detalhes que existem na forma como atacam, ou defendem, ou simplesmente existem no mapa. Eu amo a história e como os personagens interagem entre si. Eu amo cada segundo que penso nele, quando não estou literalmente no jogo. Assim que eu aperto o botão de iniciar partida, eu afundo na cadeira e solto um exasperado “ugh, mais uma missão”.
Por muitos dias eu tentei entender de onde vinha essa dissonância. Como eu posso amar algo tanto, se a interação gerada me afasta quase imediatamente? Advance Wars, a diretiva que rege majoritariamente o direcionamento do design de Wargroove, é um jogo carismático e simples. Mas também com as suas falhas.
Desde o seu “debut” Famicom como Famicom Wars em 1988 pela Intelligent Systems / Nintendo R&D 1, Advance Wars sempre foi o “go-to” para pessoas que querem um toque de combate por turnos, sem aquela necessidade de compreender regras obtusas demais. Ao invés de termos 3 facções com atributos diferentes, todas as unidades são agrupadas em terminologias claras. Um soldado de uma equipe X vai ter os mesmos pontos de vida do soldado da equipe Y.
Além de, obviamente, jogá-los quando tinha tempo no Gameboy Advance ou via emulação, 2001 também foi o período que eu comecei a me interessar mais em jogos com turnos. Esbarrei em Panzer General, esbarrei em Operational Art of War, e esbarrei em Heroes of Might and Magic III. E onde esses jogos falhavam – seja no carisma, ou belas unidades, ou mapas bem desenhados – eles compensavam com uma bela dose de variedade.
Dos três, o mais “próximo” de Advance Wars era Panzer General. Tal como o projeto da Intelligent Systems, a IA não era algo de outro mundo, dado as limitações da época, e alguns dos conceitos podem ser convertidos sem perderem a essência. Panzer General tem compra de unidades, um sistema de captura de cidades (ligeiramente diferenciado), e muitas unidades eram separadas em grupos bem claros.
Se essas similaridades eram bastante significantes, assim também eram as diferenciações. Panzer General enfatizava a atenção no tipo de terreno, clima, e contava com mais unidades especializadas. Além de, obviamente, um pano de fundo histórico da Segunda Guerra Mundial. Apesar de preceder Advance Wars, Panzer General sempre pareceu uma resposta possível para “O que seria se Advance Wars investisse um pouco mais de atenção nesses detalhes?”. Eu pressenti que a Intelligent Systems estava bem perto de revigorar a série com Days of Ruin. Novas unidades, terrenos que impediam a movimentação de certos navios, a utilização de fogo como um componente para remover o “fog of war”, dando assim visão em possíveis esconderijos do inimigo. Nunca vi a evolução deste conceito dentro de Advance Wars, e onze anos se passaram sem nenhuma sequência.
Quando eu sentei para jogar Wargroove pela primeira vez, tentei calibrar as minhas expectativas para algo como “uma homenagem a Advance Wars, mas com um toque especial da Chucklefish”. Bom, o toque estava lá; não é à toa que eu rapidamente me apaixonei por tudo que estava ao seu entorno e que não diz respeito ao ato de jogar em si.
Eu, por exemplo, amo criar conteúdo adicional para os meus jogos; de missões de Arma 3, a texturas ridículas da Hello Kitty para XCOM 2 (que fez um sucesso modesto, por sinal), a mapas-teste no simulador DCS. A facilidade do editor de Wargroove, portanto, é uma benção para mim. Na verdade, foi a primeira coisa que eu abri, já entusiasmado para criar meus próprios mapas, detalhar o funcionamento deles, descrever o meu processo em decidir se deveria colocar uma ponte ali ou não. Sequer tinha iniciado uma batalha, mas já estava com planos. Senti que estava colocando a carroça na frente dos burros, como faço muito em minha vida. “Vamos jogar a campanha para pegar um pouco do ‘feel do jogo’, certo? Certo!”.
Sim, Era Advance Wars com o toque medieval de Fire Emblem, mas… algo estava fora do lugar. Meu primeiro instinto disse que era só questão de me reacostumar com algumas mecânicas. Depois, cogitei que eram as animações de batalha – que, por mais belas que fossem, atrasavam o ritmo do combate. Prontamente as desativei. Foi então que lentamente comecei a notar que não eram as animações, nem a campanha. As batalhas em si eram demoradas demais, e pelos motivos errados.
Separando o simples do claro
Wargroove é um jogo simples; entretanto, para seu detrimento, não é um jogo claro. Ele inicialmente demonstra clareza com a sua estética e o fato que as quatro facções se utilizam das mesmas mecânicas para atacar ou defender (um guerreiro no topo de uma montanha vai receber sempre a mesma quantidade de dano se for atacado por outro guerreiro nas mesmas condições). O que não é claro é como você pode estabelecer uma estratégia competente com esses elementos.
Para fins de exemplificação, vamos supor por enquanto que as unidades não possuem danos críticos. Você está em um mapa separado por duas pontes e o mapa possui um número relativamente similar de vilarejos para cada facção. Vilarejos funcionam como linhas de suprimento — podendo curar unidades por um percentual equivalente ao dano tomado. Ter mais de dois vilarejos é o mínimo para se ter uma linha de frente “saudável”. O objetivo de cada partida tende a ser eliminar o comandante da equipe inimiga ou destruir o seu quartel general. Como você vai fazer isso?
Perceba que as regras simples não garantem essa clareza de objetivo, pois você “lê” o mapa, e sabe que se atacar um arqueiro com um soldado, você vai receber um dano específico. Uma tática a menos no tabuleiro. Faça isso para todas as unidades e rapidamente notará que o que soa simples, na realidade, é restritivo. (Para um breve resumo sobre as diferentes implementações de “leitura” de um mapa de estratégia, recomendo Reading in Strategy games por Tom Kail)
Muitos jogos de estratégia florescem quando se revela o seu metagame emergente, ou seja, a capacidade do jogador em aprender táticas diferentes e possivelmente assimétricas. Voltando ao exemplo de Panzer General (para me manter no escopo de jogos em turnos), eu poderia muito bem empregar uma unidade especializada em atacar cidades. Enviar aviões de bombardeio, fazer com que a unidade inimiga sinta a pressão e acabe se rendendo para as minhas tropas. Nenhuma dessas ações necessariamente faz Panzer General ser demasiadamente mais complexo do que Wargroove, mas sim variado. Desde, é claro, que clareza continue em primeiro lugar. Bastava colocar o mouse sobre um avião em Panzer General e eu sabia exatamente a quantidade de dano que causaria nas tropas, uma solução que já me foi muito útil justamente para quebrar esse “gesso” que é entrar em uma partida e não saber o que fazer.
Para não dizer que eu estou sendo demasiadamente crítico de Wargroove, eu concordo que a decisão da Chucklefish em colocar o comandante como uma unidade vulnerável foi a melhor adição à formula “Advance Wars” que ela fez. Ao tornar o comandante algo tangível, você impõe um fator de risco muito maior à sua partida. Deveria você separar as suas unidades entre proteger o comandante e seu quartel general, ou colocá-las na linha de frente? O quê vai ser mais útil?
Essa é uma questão interessante de se ter ao longo de uma partida, se não fosse por pequenos detalhes que a prejudicam, como o fato de que: os comandantes, apesar de serem tematicamente diferentes — com habilidades especiais e etc — sempre atacam corpo a corpo. Ou seja, o seu inimigo terá que ou arriscar uma unidade deles, ou você tem. Pronto, parte do mistério está solucionado: você já sabe que colocá-lo na linha de frente não é sempre a melhor das ideias. Digo, nunca é. O efeito de um general, portanto, já acaba ligeiramente mitigado. Para onde Wargroove se direciona? De volta para as suas unidades é claro, e é aí que entra questões como ataques críticos, posicionamento, e saber usar cada unidade ao seu máximo.
Se lembra quando eu falei que um guerreiro X vai dar o mesmo dano Y se ele tomar a iniciativa e ambos estiverem em terreno com defesa Z? Bom, isto não é necessariamente verdade. Além de iniciativa, o terreno ou a unidade ter se movido ou não são fatores que aumentam a possibilidade de danos críticos. Isto é brevemente explicado durante a campanha, e nunca mais falado a não ser que você se aventure pelo codex do jogo. Para um jogo que tem um tutorial que se estende por quase três atos, é um erro fatídico. E mesmo quando você já resolve este problema, você acaba com o mesmo resultado. São sempre os mesmos matchups. Você não vai se preocupar se o mago do outro time tem uma habilidade que você ainda não dominou, ele tem o mesmo moveset que você; até para os danos críticos.
Simplicidade não equivale a repetição
Em 2017 durante o desenvolvimento de Into the Breach, Justin Ma deu uma palestra durante o Fantastic Arcade sobre o desenvolvimento do game, minimalismo, e sobre estratégias que podem ou não serem dominantes. Alguns dos pontos levantados por ele são a necessidade de mecânicas obtusas ou demasiadamente exageradas que influenciam pouco na partida a longo prazo. Termos citados são o sistema zodíaco de Final Fantasy Tactics, o sistema de Ogre Battle — muitos deles acabando virando mais ruído do que um método para aprender o jogo em si.
Into The Breach é o resultado desse exato pensamento de Ma. É estratégia destilada nos seus componentes mais simplórios, com unidades que são fáceis de serem reconhecidas, inimigos com padrões claros e sistemas simples. Também é um jogo que você pode até jogar com as mesmas unidades em cada partida, e combater as mesmas unidades inimigas (que não possuem o mesmo tipo de ataque que você) e você vai ter uma experiência vastamente diferente em cada run. Por que?
Apesar de minimalista em seu conceito, Into The Breach contém um forte elemento de aleatoriedade (menos que seu predecessor, FTL) dentro da sua campanha. O suficiente para garantir que todo o turno vá ser diferente, que um objetivo pode ser igual, mas a forma que irá alcançá-lo vai mudar. Abalo sísmicos, ondas, artilharias aéreas alteram a estrutura do mapa. Diferentes tipos de inimigos com regras absolutamente claras sobre como e quando atacam e qual o alvo deles. Com esses elementos em mãos, é fácil distinguir qual a tática a ser realizada nesse turno. Eu entendo que Into The Breach é o peixe fora d’água quando o assunto é estratégia em turnos, mas há algo que Wargroove poderia ter aprendido com ele e outros jogos de estratégia: exercer pressão.
Você não precisa de um design super elaborado e com múltiplas variáveis para exercer algum tipo de pressão maior do que “destrua o QG inimigo”. Voltando ao exemplo de Panzer General, um dos meus cenários favoritos gira em torno da invasão da Sicília. Para vencê-lo, você precisa dominar as cidades costeiras, avançar com grande parte das unidades para o interior do país e, se possível, eliminar todas as unidades inimigas. Tudo isso em doze turnos.
A maioria das missões da campanha e o modo multiplayer de Wargroove (na sua configuração padrão) não demonstra isso. Você tem um design que exala essa tentativa de simplicidade, mas que raramente se lembra de que o ato de pressionar o jogador a tomar decisões importantes pode e deve ser usado para dar mais tempero nas partidas. Tanto que as melhores missões que presenciei são aquelas que ou você está limitado financeiramente, ou você tem um “limite” de tempo para avançar as unidades. Novamente, esse limite nunca é explícito em si, mas sim comunicado através da velocidade e quantidade de novos oponentes que aparecem na tela.
O que acontece é que estamos falando de um ambiente relativamente controlado. Okay, vamos levar em conta que o jogo conta com estrelas e te “parabeniza” por completar a missão na menor quantidade de turnos. Mas isso é uma exceção, não a regra. Tanto que a primeira missão que exerce algum tipo de pressão no jogador (a missão 2-2, que ensina sobre o uso de gigantes vs trabucos) foi duramente criticada pela comunidade pela elevação absurda no grau de dificuldade. Não necessariamente é um aumento nessa dificuldade, mas sim, o jogo – mais uma vez – falhando em demonstrar clareza sobre qual é o verdadeiro objetivo da missão. A missão termina quando o QG inimigo ou o comandante inimigo é destruído, mas antes disso você tem de lidar o quanto antes com os gigantes; uma mudança brusca demais para um jogo que tem como intuito a simplicidade.
A união da falta de pressão nas configurações padrão, as unidades simplistas e a falta de clareza em estabelecer táticas viáveis a curto e longo prazo tem um efeito devastador em Wargroove: partidas que se arrastam por 30, 40, 50 turnos sem a menor necessidade. Ainda estou para ver uma batalha onde um dos lados não apelou para o “turtling” (uma estratégia que enfatiza a defesa, a conquista lenta de territórios). E não há atributos secundários que conseguem quebrar isso. Ao menos não na versão inicial.
Quais são as perguntas, e o que Wargroove tenta responder?
Toda vez que eu pego um jogo novo, mantenho a ideia de que todo o seu design foi baseado em respostas para uma série de perguntas feitas ao longo do seu desenvolvimento. “Como tornar algo mais atraente para que um jogador use?” ou “De que forma o loop de feedback das ações realizadas pode ser melhor condensado?”. Eu olho para Wargroove e me questiono o que ele queria responder além de ser um sucessor espiritual de Advance Wars, e eu não encontro as perguntas.
Essa tende ser a matriz de muitos problemas que são vistos na indústria, e que se relaciona a outra questão – da qual Wargroove escapa por pouco – que é até que ponto nostalgia — seja ela individual ou coletiva — afeta as decisões de design. Até que ponto a nossa indústria vai continuar mantendo jogos reféns de plataformas ou apenas os refazendo com um twist ou outro que não necessariamente revigora o seu design? Essa foi uma pergunta que eu propus com Two Point Hospital, e continuo a ver essa repetição de padrões, e nada de uma resposta concreta.
Levanto isso, pois Wargroove justamente é mais que uma homenagem: é um produto de uma indústria que abandona franquias por motivos que eu não sei explicar (decisões internas, mudanças na estrutura hierárquica, são possibilidades demais para listar aqui). Ele vê Advance Wars unicamente pela lente nostálgica da simplicidade dele, sem entender quais eram os reais pontos fracos dele – táticas absurdas que poderiam ser facilmente replicadas continuamente independentemente dos mapas, carência de terrenos variados, falta de maior impacto e pressão para as suas decisões.
É justamente por causa dessa miopia em relação a como se aproximar de um design “moderno”, por assim dizer, que eu sinto que ele cai nessa armadilha de só existir por existir, preencher um vazio dos 11 anos sem Advance Wars sem considerar o quanto o nicho evoluiu nesse tempo. De 2008 para cá tivemos a renascença dos 4X, vimos jogos mobile com novos olhares, empresas como a Paradox conquistaram lugar no mercado com os seus ultra focados jogos de nicho. Quer um exemplo recente? Olha para Command & Conquer: Rivals, o game mobile da EA que pode não ser o que os fãs querem para a franquia, mas que eu não deixo de celebrar por causa de fatores como a assimetria, a construção de “decks” proposta, e o metagame emergente que tem muito espaço para crescer.
Retorno meu olhar para Wargroove e vejo um jogo que já saiu, de certa forma, estéril. A sua ambição de se tornar referência para um sucessor espiritual de Advance Wars foi inversamente proporcional ao desejo de converter essa acessibilidade provida pela Intelligent Systems em uma ponte entre o que eu vou chamar de “estratégia popular” para “estratégia de nicho”. E, sim, eu incluo Panzer General no âmbito da estratégia de nicho.
Não digo que design de estratégia é fácil, pelo contrário. Meu tempo com a equipe de Close Combat: Gateway to Caen e Operational Art of War IV mais do que demonstrou que são muitas decisões a serem tomadas em um curto espaço de tempo. E que, de uma forma ou outra, alguma funcionalidade vai ter de ser cortada, e o escopo inicial do projeto, diminuído.
Mas também temos que ter em mente que a simplicidade é só uma das inúmeras etapas que precisam ser ponderadas, pesquisadas e respondidas para que estratégia como um todo tenha um futuro. Em que ponto nós começamos a converter a simplicidade em variedade, e como aclimatizar os jogadores para essas mudanças?
Essas eram as perguntas que eu gostaria de achar no DNA de Wargroove. São essas respostas que eu esperava encontrar no jogo. E essas são as respostas que precisam, cada vez mais, aparecer, para que jogos de estratégia no geral não se tornem mais uma relíquia do passado. Se elas não vierem, a única coisa que teremos são outras “homenagens” ao passado. E, sinceramente, eu não gosto muito de viver no passado.
Para os aspirantes em design de games, fecho esse texto com um breve comentário de Jon Shafer (cujas ideias ainda considero fantásticas, apesar dos pesares sobre o que aconteceu com At The Gates), feito no seu artigo sobre adaptação vs variedade.
“Assim como não existem soluções perfeitas para adaptabilidade em jogos de estratégia, não existem designs perfeitos. Ainda assim, adaptação é uma ótima ferramenta para dar um pouco de tempero no que poderia ser uma experiência monótona, ao mesmo tempo garantindo que nenhum dos dois jogadores realmente saiba o que vai acontecer em seguida. Independentemente de como você o faça, garanta que seus jogadores sempre tenham um inimigo que pode prejudicar seus planos [táticos ou estratégicos -ed] – mesmo se esses planos acabarem dando certo”.