They Are Billions, o jogo da Numantian Games que tem causado um grande furor na comunidade e que rapidamente subiu para a lista de alguns dos mais jogados do Steam. Mas, o que ele faz de diferente (além de zumbis) em relação a outros jogos de estratégia que tanto lutam para ter um mínimo de audiência no Steam? “Simples”, eu diria: ele se assemelha a um jogo de estratégia clássico muito mais do que seus “concorrentes”, mas não necessariamente pelo conceito com o qual a comunidade está acostumada hoje em dia.
Disponível em acesso antecipado, They Are Billions conta no momento com um modo de sobrevivência onde o jogador precisa sobreviver a uma quantidade específica de dias e / ou destruir a horda de zumbis na data final. A Numantian Games lançará futuramente uma campanha e novos mapas para o modo.
O ponto chave do modo de sobrevivência não está no ato de sobreviver em si – o qual considero o objetivo final – mas em como They Are Billions foca no planejamento como forma de atingir esse objetivo, subvertendo assim as expectativas da comunidade.
Estabelecendo o limite entre o mundo competitivo e o restante da comunidade
Em artigo publicado em janeiro de 2017, Jody Macgregor da PCGamer comenta sobre alguns dos pontos positivos do que a comunidade de estratégia comenta sobre Turtling. “Muitos dos jogos de estratégia atuais esqueceram a joy de turtling – de construir metodicamente camadas de defesas e ver o oponente tentar destruí-los.” (Tradução livre).
O ponto que Jody levanta e os jogos que ela cita (Supreme Commander, Age of Empires II, dentre outros), são peculiarmente interessantes nesse conceito. Os dois nos quais prefiro me focar no momento são Age of Empires e Supreme Commander, já que tenho uma maior intimidade com a comunidade e o atual estado dos games atualmente.
O sistema de “Turtling” em Age of Empires II e Supreme Commander se diferencia principalmente no âmbito de escopo e defesas. Enquanto que o game desenvolvido pela Ensemble Studios em 1999 oferece o uso proeminente de muralhas, o da Gas Powered Games de 2007 possibilita o turtling mais por um acordo mútuo entre os participantes dado a temática e a variedade de unidades — como aviões que permitem que se ultrapasse defesas estabelecidas.
Independentemente, turtling tende a ser um encontro entre dois (ou mais) jogadores que querem maximizar os seus exércitos, e que querem ver os seus exércitos causarem o máximo de destruição um ao outro. O foco está no espetáculo, em não levar as coisas muito a sério, em poder tentar estratégias malucas. E vejo que cada vez mais isso não é enfatizado pela atual comunidade de estratégia.
Digamos que eu, um novato em Age of Empires II, decida aprender algumas estratégias sobre o jogo. Uma busca rápida me entrega um guia de “cinco minutos” de como entrar no cenário competitivo, com links para possíveis torneios, eventos e “build orders” (quais unidades devem ou não ser construídas primeiro de acordo com o setup oponente). Rapidamente sou levado para o subreddit de Age of Empires II – e, se não soubesse bulhufas do jogo, não entenderia metade das piadas lá, e menos ainda o que está acontecendo na tela.
Tanto Age of Empires quanto Supreme Commander seguem trajetórias próximas quando o assunto é oferecer acessibilidade ao aprendizado — a grande maioria dessas táticas são voltadas para serem usadas em torneios. Para alguém de fora, passa a noção de que “se você não jogar da maneira X ou Y, significa que você está jogando ‘errado’”. Um conceito do qual eu discordo veementemente.
Base Inca em Age of Empires II com camadas duplas de muralhas
De onde vem essa discrepância? O fator principal, para mim, seria o crescimento exponencial de serviços de transmissão ao vivo, como o Twitch. Um artigo publicado pela firma Newzoo em outubro de 2017 mostra a lista dos jogos com um viés de esport mais vistos na plataforma, com League of Legends saindo em primeiro e Starcraft 2 (ainda um dos poucos de estratégia em tempo real) subindo três posições em relação ao último censo e ficando em sexto lugar.
Querendo ou não, o crescimento dessas plataformas cria uma diferente interação de um jogador novato com um profissional ou alguém mais avançado. A Internet quebra as barreiras de interação, aproxima o fã da estrela, os torna ambos vulneráveis por diferentes motivos (de casos de assédio a perseguição ou ameaças de morte), mas invariavelmente modela a comunidade competitiva.
Com esse novo foco, novas táticas que ganham maior destaque são otimizadas para a construção rápida de unidades, dominação de pontos ou outros aspectos que são difíceis de serem compreendidos por alguém que, novamente, não está em sintonia com o restante da comunidade; e assim transforma o que já é um avanço tortuoso em um ainda mais complexo.
Foi também na mesma plataforma que me deparei com uma transmissão de Age of Empires III. Não era um torneio; era simplesmente um streamer jogando com um amigo ou amiga. Ao invés de correr para dominar o mapa o quanto antes, ambos estavam lentamente coletando recursos, construindo exércitos e levantando defesas. Tudo me leva a crer que a batalha final foi um tanto quanto “épica”, com muralhas sendo destruídas e saindo vitorioso aquele que teve o melhor planejamento.
Ironicamente é assim que eu me lembro das minhas primeiras partidas de Age of Empires II feitas ainda então na finada MSN Gaming Zone. Ninguém estava lá para ser propriamente competitivo; alguns só queriam construir defesas imensas e depois entrar em combate. Novamente, nada de errado com isso; aliás, é um ótimo passatempo para quem gosta do estilo – um que lentamente foi caindo em desuso e agora é até visto com maus olhos dentro da comunidade.
Uma partida contra a IA em Supreme Commander 2 onde o jogador tomou uma postura de Turtle, perceba o posicionamento de defesas da base
Há como contra-argumentar que sim, as táticas mais utilizadas serão sempre otimizadas para um ambiente competitivo e que elas sempre estiveram em rotação. Disso não tenho dúvida. Um dos fóruns mais conhecidos da comunidade de Starcraft é justamente o da Team Liquid (e consequentemente a Liquipedia, que tem tabelas atualizadas com torneios e outros enfoques da comunidade de eSports). Como falei, não é a questão da existência, mas o grau de importância que foi dado a elas.
They Are Billions e como ele abraça o turtling
They Are Billions é um jogo primariamente sobre planejamento. Claro, há outros aspectos que devem ser levados em consideração (ele utiliza recursos como madeira, ouro, pedras e metal para construção de unidades e defesas), mas em sua grande maioria ele tem um ritmo relativamente lento em comparação com o que estamos “acostumados a ver”.
O jogador começa com uma base simples, algumas unidades e um punhado de materiais para estabelecer as defesas. Para sair vitorioso o jogador precisa então explorar, usar torres para expandir a área de construção, preparar defesas e compreender quais são os locais do mapa que podem ser usados para afunilamento.
A partir desse estado inicial, as táticas irão variar de acordo com o nível de dificuldade e o mapa escolhido, mas sob um olhar superficial ela segue o seguinte parâmetro: Explorar -> eliminar zumbis da área -> construir torres -> preparar defesas -> levantar edificações que fornecem matéria-prima -> explorar -> eliminar zumbis -> construir torres. Bom, você já entendeu onde eu quero chegar, espero.
O conceito de They Are Billions é criar camadas de defesa, sejam elas com muralhas, muralhas duplas, torres de balista, enquanto o jogador obtém novos recursos de matéria prima para aprimorar tais defesas.
Consequentemente, as unidades em si – que tendem a ser snipers, soldados ou rangers – atuam em segundo plano; elas são importantíssimos para a (necessária) exploração, mas raramente capazes de defender uma base sozinhas.
Só esta noção de “unidades serem secundárias” subverte os conceitos já introjetados no gênero. “Construa unidade X nos primeiros cinco minutos”, frase comumente vista em alguma “receita de bolo” tática para um jogo de estratégia, já não faz mais tanto sentido. De fato, em They Are Billions, é bem provável que o jogador (de acordo com o grau de dificuldade escolhido no mapa) não venha a fazer uso constante de unidades móveis até o vigésimo dia. Ousaria até dizer que traz em seu DNA traços de tower defense — um estilo que nasceu via mods dentro de jogos de estratégia— e que agora retornam ao gênero pela importância redobrada do uso de torres de defesa.
They Are Billions oferece então não só variedade em opções de turtling (com diferentes torres ou materiais para construção de muralhas), mas também na interatividade do jogador com sua colônia sem produzir uma sensação de que o tempo que ele gasta é inútil. Sempre há uma nova melhoria no horizonte, uma nova área do mapa a ser explorada em busca de novas fontes de materiais – como rios para a construção de zonas pesqueiras ou depósitos para pedreiras.
Sem necessariamente entrar em confronto direto constante, o jogador expande, evolui e toma mais espaço do oponente. Afinal, o objetivo é justamente comprimir e tornar o espaço controlado pela sua base em uma fortaleza capaz de derrotar a horda final. A satisfação não vem de microgerenciar as suas unidades, tampouco de correr e construí-las mais rápido do que a IA. É um jogo capaz de ser tanto relaxante quanto intenso de se jogar.
Foi exatamente como descreveria minha partida em um dos mapas, Peaceful Lowlands. Expandia lentamente, interrompia a partida, refletia sobre como o mapa poderia me favorecer, expandia mais um pouco. Claro que não ganhei de cara; minhas defesas no lado oeste eram fracas demais para aguentar as imensas hordas que vinham em minha direção continuamente por cinco dias seguidos — e essas defesas acabaram por ser destruídas na horda final. Minha colônia sucumbiu, mas eu estava satisfeito – contente até – pois vi que meu planejamento havia em parte funcionado; agora era questão de iterar sobre o design e verificar as falhas.
Esse momento também me relembrou dos mapas de invasão de Stronghold (Agora Stronghold HD no Steam e GOG) da Firefly Studios. Exponencialmente mais complexo do que They Are Billions (onde o game requer que o jogador tenha uma cadeia de produção de armamentos), eles seguiam um conceito parecido: expanda e prepare defesas para impedir a possível invasão do exército inimigo.
O paralelo que traço agora entre esses dois jogos, além do componente off-line, é que eles não punem o jogador por ser um “turtler”. Muito pelo contrário, incentivam o planejamento e a satisfação que vem naturalmente do ato de construir um castelo ou uma zona de proteção bem estruturada.
Aponto aqui também um componente de Starcraft II que sinto não receber o devido apreço: o fantástico modo coop. A curva de aprendizado do RTS da Blizzard é assustadora, desmotivadora até; adicionar um segundo componente humano (um amigo, companheiro ou companheira) faz com que o processo seja menos exaustivo.
Ser um “turtler”, portanto, não é sinônimo de fraqueza ou de preguiça de aprender as regras, e esse estigma precisa ser removido da comunidade. Jogos de estratégia já são complexos o suficiente para ainda termos que lidar com o elitismo de uma comunidade cujo números de jogadores ativos diminui a cada mês.
Nem todo jogo de estratégia precisa ser competitivo; nem todo mundo precisa ter a melhor “build”, tampouco estar no topo da tabela de liderança, e o modo survival de They Are Billions entende isso. Acessibilidade é chave; de nada adianta criar mecânicas complexas se aprendê-las é cansativo.