Já passou da meia noite, eu acho. O relógio do restaurante aponta 21h. A falta de manutenção, vista na poeira que superficialmente o encobre, me diz que ele conta esse horário há meses, talvez anos. Mais quatro horas até o fim da viagem. Mas naquele momento o tempo não importa, o tempo é uma medida que não se aplica a paradas de rodovia. Um ponto de interseção de pessoas, um “não-lugar” inserido de um outro “não-lugar”. Histórias florescem e se desintegram tão rápido quanto o som de talheres sendo lavados na cozinha ao fundo.
Proposto por Marc Augé em seu livro Não-Lugares – introdução a uma antropologia da sobremodernidade, não-lugares são lugares transitórios sem significados que o tornam “um lugar”. Não é relacional, não é identitário e não histórico.
“O espaço do não-lugar não cria nem identidade singular, nem relação, mas solidão e semelhança.”, AUGÉ, Marc, Não-Lugares, 90
Quando se pega o carro, um ônibus, um taxi, você quer chegar em um lugar. Uma rua, um bairro, uma cidade, um estado. Cresci em meio de paradas no meio de estrada, uma viagem de seis horas por mês virava duas, depois três, depois quatro. O destino não importava mais, pois o destino era tão insignificante quanto a viagem em si.
Cresci entre as duas principais capitais do país, mas nunca me senti parte de nenhuma delas. Constantes mudanças de endereços, de destinos, faziam casas se tornarem “não-lugares” tanto quanto o trafegar na estrada ao cair da noite. Havia me tornado uma via por onde as pessoas transportavam as suas emoções, que o contexto existia apenas por momentos. Eu era a parada que o ônibus fazia, o descer das pessoas que temporariamente me enchiam de vida e depois seguiam rumo ao seu real destino.
Eu ainda fecho os olhos e enxergo a disposição das mesas. A fila de comidas tinha croissant, sanduíches, pão na chapa, um café que certamente não foi feito naquela hora. Insosso, como estar naquele lugar, mais uma vez, mais uma rodada, mais uma viagem.
Meus amigos mais próximos descreveram Final Fantasy XV como uma “viagem pela estrada com os amigos”. Iniciei o jogo, minutos depois estava em frente a uma parada na beira da estrada. Aquilo não me desceu bem.
Era viver com uma arma apontada para a sua cabeça e instantaneamente mudar de perspectiva. Agora não era eu quem recebia o contexto, era eu quem dava. Fiquei sem reação, perplexo. Um gosto ácido na minha boca, enjoo. Remédios? Não sei, ainda não os havia tomado aquela manhã. Medo, medo de não saber como reagir.
“Dar um significado”, como se todo jogo “de mundo aberto” funcione em favor do protagonista. Tudo ali, devidamente posicionado para extrair o máximo de “diversão” daquele que o controla. Interações, o apertar de botões, compras, itens, crafting. Criar um propósito para elementos mundanos, linhas de código que se materializam em imagens, ilustrações que se movimentam.
Euro Truck Simulator 2 usa paradas de estrada como uma mecânica, mais nada. Ali você recarrega o combustível de seu caminhão, dorme e segue o seu caminho. Outra situação desconfortável para mim, já que o jogo da SCS Software clama para que o jogador dê um sentido aos “não-lugares”. Compartilhar a rota que você fez, compartilhar as fotos. Compartilhar, compartilhar, compartilhar.
Evitava contemplar sobre a vida em boa parte das minhas viagens, eram quase sempre durante a madrugada. Era obrigado a ir, famílias que moravam em cidades diferentes e se odiavam. Preso em meio a uma “Guerra-Fria” familiar enquanto eu era o “Vietnã” deles. Hoje em dia a paz foi atingida entre as duas partes, mas o país carrega as marcas para sempre. As paradas também eram minhas mecânicas, eram a recarga de combustível e o meu ligeiro cochilo. Raros, mas aconteciam.
Jalopy, da Minskworks leva o jogador para uma viagem em um Leste Europeu após o colapso da União Soviética. A cada cidade o jogador precisa fazer uma parada, seja para recarregar as energias, comprar mantimentos ou tentar tirar um lucro com itens que ele encontra pela estrada.
As paradas de Jalopy, mais espaçadas que o gigantesco RPG da Square-Enix são diferentes. Há um tom depressivo nelas. O ar de um mundo que precisa sobreviver, que mesmo estando lá para nutrir as necessidades do jogador, fazem parte de um contexto maior. Países que tinham de enfrentar a reconstrução. O renascer de uma nação, da vida.
Ao contrário da falta de significado, eu me vi nelas. Sobreviver, acho que foi isso que fiz grande parte da vida. É estranho escrever isso tendo em vista que eu não venho de uma posição social que me previna de bens materiais. Mas, depois de tantas mudanças, tantos destinos, você começa a se sentir que faz parte de tudo e ao mesmo tempo de nada. Uma pessoa sem identidade, sem estado, sem cidade. Incapaz de dizer “aqui é o meu lugar”. Nada é o meu lugar, nunca foi.
É ainda mais difícil transpor essa identificação por meio de jogos. Pois nada é exatamente parecido com a topologia, as estradas do Brasil. Uma mistura do velho com o novo, com as paradas que estão lá há anos, as grandes redes que tentam dominar as estradas. Os buracos toscamente tampados da mesma forma que evito de comentar sobre meus problemas.
O Brasil é bem isto, um constante choque de realidades que nem sempre estamos dispostos, ou preparados a enfrentar. Sentar na poltrona do ônibus enquanto escuta a família ao seu lado comentar sobre o caminho a frente, na saudade dos parentes. Refletir, me manter em silencio pois não entendia o sentimento.
Jalopy, Final Fantasy XV, Euro Truck Simulator. Todos ecoaram de diferentes formas frente ao meu entendimento de mundo. Refletiram distintos momentos da minha vida de criança, adolescente e agora adulto. O peso de trafegar pela estrada, de perder o sentido, de tentar encontrar e falhar.
Era de manhã, bem cedo. Uma mistura de dia ensolarado que se intercalava com nuvens, nevoeiros. A parada era diferente, a sensação a mesma. O café insosso, o pão na chapa. Uma família sentava a minha frente. Quatro gerações. “Quero um Halls preto”, disse o mais velho, pedindo para que a filha fosse ao caixa buscar. A neta desastrosamente tentava segurar um bebê no colo enquanto comia algum sanduíche que não conseguia identificar.
“Para onde eles vão?”, me questionei por instantes. Eles sabiam a resposta deles e, dessa vez, eu também. Um raro momento onde meu destino era algo importante. Não era por obrigação, muito menos por com a sensação de desgosto. Era por amor.
Disseco jogos, defino um sentido para as mecânicas, detalho o funcionamento delas. Faço isso há quase dez anos. Crio pontes para que espaços transitórios imaginários, inalcançáveis, tenham sentido.
Pode ser que no fim o sentido que eu busque é finalmente deixar de ser um “não-lugar”. Algo que faça o tintilar de talheres, a música de fundo, o vento gélido da madrugada, deixarem de ser sentimentos e apenas lembranças.
Ao longo de 13 anos Lucas fez mais de 150 viagens entre Rio São Paulo de ônibus, com outras 20 entre outros estados do Brasil.
Este texto foi, em grande parte inspirado por A Psychogeography of Games de Hanna Nicklin. Ele está disponível em formato vídeo (gratuitamente) no Youtube ou em uma Zine por 2 libras em formato PDF em sua loja.