Assim como as horas posteriores a uma ceia natalina repleta de comes e bebes, escrever uma retrospectiva é sempre um pouco indigesto. Eu fico com um aperto no coração ao lembrar que o ano está prestes a acabar e, portanto, é hora de refletir sobre o que aconteceu. Isso é especialmente exacerbado em 2017 – porque se por um lado tivemos um complicado cenário sócio-político mundial, por outro fomos agraciados com um dos melhores anos em todas as plataformas de videogames, ainda que em uma indústria cada vez mais complicada.
O ano na minha plataforma de preferência (e a qual é o carro-chefe do site), o PC, começou bem com lançamentos como o incrível Nier Automata, jogos menores – mas não menos importantes – como A Normal Lost Phone e Hidden Folks, que trazem em mesmo grau doses de realidade e carisma. Isso sem mencionar o tão excelente What Remains of Edith Finch, que me fez rever os conceitos dos limites de interação dentro de um “walking simulator” (termo que acho profundamente pejorativo, apesar de descrever um conjunto de mecânicas que enfatiza exposição via um caminho tipicamente linear).
Este ano, alguns jogos mostraram o quanto jogos evoluíram ao adequar refinamentos nos controles com o mais puro design de mapas e inimigos. Hollow Knight, Rain World, Snake Pass e Nex Machina me deram algo que eu não sentia desde Super Meat Boy: a vontade de continuar jogando, não só pela diversão, mas para observar a maestria dos desenvolvedores nesses quesitos. Jogá-los foi um deleite.
2017 trouxe consigo muitas surpresas, como a minha paixão imprevista por Ruiner e Observer_, ou minha surpresa ao ver os jogos de submarino renascerem com Cold Waters, ou finalmente testemunhar um excelente jogo baseado em Battlestar Galactica (o fantástico Deadlock), e ver a Hello Games aprimorando continuamente o controverso No Man’s Sky. Até meu amor por puzzle games voltou à tona com tesouros como Uurnog Uurnlimited, Gorogoa, e o espetacular Opus Magnum. E quem diria que Wolfenstein II: The New Colossus iria deixar uma marca tão grande em minha memória?
O ano também foi marcado por mais uma onda de roguelikes, muitos deles absolutamente excelentes. Unexplored, Midboss e Haque foram destaques, bem como alguns jogos ainda em Early Access: Tangledeep e Cogmind (e só cito os dois aqui devido à transparência exemplar de Andrew Aversa e Josh Ge no desenvolvimento desses jogos). E, mesmo não sendo um roguelike, não posso deixar de lembrar do lançamento em agosto do brilhante The Long Dark, que atingiu — e superou — as minhas (imensas) expectativas.
Foi inclusive um ano bom para a nossa indústria nacional de games. Foi bom ver Warlock’s Tower da Midpixel disponibilizado para PC e mobile, High Hell de Terri Vellmann trazendo ação frenética, a equipe de Dog Duty pondo os ajustes finais no game que está em Early Access no Steam, Dandara da Long Hat House recebendo finalmente uma data de lançamento (mesmo que seja 2018) e a equipe da Turtle Juice trabalhando incansavelmente no adorável Fluffy Horde.
E, mais um ano, tivemos desenvolvedores independentes mostrando a sua capacidade de fugir do tradicional e nos transportar para mundos mágicos: as imensas florestas de Future Unfolding (e ao invés de falar dele aqui, deixo com vocês as palavras precisas de Lewis Gordon no Heterotopias), o hotel surrealista em Norwood Suite (seu antecessor, Off Peak, é gratuito no Steam), o simpático The Trolley — que estabelece sua narrativa por meio da forma em que vemos o mundo no transporte público — e Bright Light in the middle of the Ocean e Mediterranean Voidland, dois excelentes “voidscapes” (dioramas vivos) que me ajudaram a controlar a ansiedade ao longo dos últimos meses.
Falando de ansiedade, este também foi um tema recorrente a partir da metade do ano. Ao contrário de me prolongar nele aqui, prefiro deixar os meus dois artigos publicados este ano sobre o tema, que têm muito mais a dizer do que meros parágrafos em uma retrospectiva.
Sobre paradas de estrada e a busca por uma identidade
Não poderiam faltar obviamente os inúmeros jogos de estratégia que quase me levaram à loucura este ano. 2016 já foi um ano movimentado, mas 2017? Não só movimentado como divisor de águas. Steel Division rouba a cena com o seu sistema de etapas, Afghanistan ’11 oferece a perspectiva voltada para a logística dentro de um conflito moderno e Total War: Warhammer II fornece uma base mais sólida e um futuro promissor para a franquia da Creative Assembly – isso sem contar as inovações em seleção e controle de unidades trazidas por Tooth and Tail, o carisma e as partidas rápidas de Mushroom Wars 2; Field of Glory II aprimorando sua engine, trazendo uma nova interface e mostrando a cara de uma sequência mais madura; a Amplitude Studios reforçou ainda mais sua posição como uma excelente desenvolvedora de 4X com Endless Space 2. E no topo disso tudo, temos ainda War of the Chosen para XCOM 2 – um exemplo inegável do que é uma excelente expansão.
Jogos excelentes em uma indústria problemática
Se os jogos foram excelentes, as práticas das empresas deixaram, e muito,a desejar. Da implementação agressiva de lootboxes em jogos de grande calibre (Forza 7, Shadow of War, Battlefront 2) ao novo Steam Direct (sucessor do Steam Greenlight, que altera o processo de curadoria para uma taxa a qual o desenvolvedor tem de pagar para lançar um game na plataforma), que abriu as portas para novos desenvolvedores trazerem jogos para a plataforma, sim, mas também foi implementado de forma precária e fez com que muitos jogos passassem despercebidos pela maioria.
Os meses finais do ano nos trouxeram ainda mais doses de tristeza e confusão, com o fechamento de nomes como a Visceral (Franquia Dead Space), o que fez com que empresas aproveitassem o tão aclamado “fim dos jogos single-player” para empurrarem goela abaixo que os seus produtos estão em “sintonia” com o que o público quer, como se tivessem o direito de decidir pelos seus clientes e consumidores. Haja distopia!
E em um ano tão marcado pela continuidade de movimentos sociais dos últimos anos, ainda é impressionante como estamos nos estabelecendo ainda mais em redomas. Ainda há um longo caminho para avançarmos na representatividade de minorias e aqueles que buscam têm de lutar fervorosamente contra pessoas que não querem ouvir. Basta fazer parte de uma comunidade de games para em algum ponto ver uma situação de fadiga emocional. Ora eram pontos relevantes que eram ignorados, outros que eram tratados com violência verbal, pois às vezes “só assim” alguém estaria disposto a ouvir. Faltou reconhecer que mudanças precisam muitas vezes de tempo e paciência, de passos pequenos, de diálogo e compreensão.
Tudo isso se reflete na discrepância que existe na cobertura de grandes títulos e desenvolvedores independentes. Ghost Recon: Wildlands e Call of Duty: WWII têm um forte tom imperialista, propagando o domínio dos Estados Unidos via intervenção militar enquanto “reescrevem a história” ou normalizam operações não-sancionadas em outros países. RIOT: Civil Unrest sofre de um problema similar, banalizando o ato de resistência e normalizando a reação muitas vezes violenta do Estado. No entanto, a retórica estabelecida por Far Cry 5 foi questionada duramente antes mesmo do jogo ser lançado. Dois pesos, duas medidas. Isso não quer dizer que eu não aprecie os jogos. Eu acho tanto World War II como Ghost Recon: Wildlands maravilhas tecnológicas.
Tentando decifrar a discrepância de Ghost Recon: Wildlands
Abro até um espaço extra quando se trata de Wildlands. Ele tem um ritmo frenético, abraça um estilo que a franquia tinha perdido desde Advanced Warfighter e a variedade de eventos que podem ser realizados durante o jogo é de uma variedade soberba.
O que me incomoda é a interação dele com a história que ele tenta contar. Sedimentada pelo tom de um país que pode fazer o que bem entender no vizinho, a história entra em discrepância com o estilo de jogo que o torna um gigantesco playground. Vá ali, mate alguém, roube um carro, depois se divirta com os amigos, depois faça mais missões, roube um comboio do Cartel e dê para o grupo de resistência. Afinal, se você está apoiando este grupo, quer dizer que você está do lado certo, correto? Tente explicar para um país que se aproveitou dos fundamentalistas islâmicos para tomar o Afeganistão da União Soviética nos anos 80, que formou a base do que vimos acontecer no início dos anos 2000 – da guerra do Afeganistão até a quase total destruição do país e uma guerra sem fim.
Mas no fundo não é isso que a Ubisoft quer de Wildlands. Ela quer exatamente o que eu descrevi, um playground onde você pode realizar todas as suas fantasias. Conquistar territórios, eliminar os bandidos e utilizar a maior quantidade de equipamento possível – nesse caso não há nem o que “reclamar” para os fãs de militarismo. É uma receita que já tinha sido estabelecida por The Division e retornou ainda mais forte nas aventuras dos Ghosts na Bolívia.
Eu queria que outras mecânicas também fossem expandidas no jogo. Sendo uma delas, por exemplo, o uso de gadgets – que se tornavam mais um elemento de “desespero” do que algo de uso inteligente. Quantas vezes eu devo ter usado uma granada para atrair guardas para uma posição e eliminá-los? Talvez uma ou duas vezes. Para que isso se eu posso usar um rifle de longa distância e fazer o “trabalho sujo” sem sujar as mãos? Para que depender da (horrível) inteligência artificial dos meus companheiros se eu posso deixá-los no canto e fazer tudo sozinho?
Sequer vou entrar no mérito de criticar da árvore de habilidades — se é que posso chamá-la disso — para demonstrar o quão forte é a noção de “playground” de Wildlands. Você é um faz tudo, você não se especializa em nada, basta um pouco de esforço, uma meia dúzia de missões e você tem tudo ao seu dispor. Você pode carregar todo tipo de equipamento. O exército de um homem só. O rambo dos anos 2010.
Aliado a história e o tom imperialista, essa é a maior discrepância de Wildlands. Fazer o trabalho sujo ou sair de mãos limpas, mesmo sabendo que você pode ter matado inocentes no processo? Tudo isso a troco de que? De um playground? De realizar a sua fantasia de ser um militar?
Quer saber o que eu mais fiz em Wildlands? Apreciei a vista. Os cenários da Bolívia me fizeram ter um imenso desejo de visitar o país. Pegava meu carro, moto, helicóptero, o que bem entendia e ia sem rumo. Sem completar objetivos, sem me preocupar se o Cartel, as autoridades locais, ou deus sabe quem estaria atrás de mim.
Estaria a Ubisoft disposta a mudar essa temática para algo mais sério? Refinar alguns componentes de Wildlands? Eu espero que sim. Acredito que o jogo tem um longo futuro para aqueles que decidirem interagirem com tal conteúdo. Se algo, a empresa sabe muito bem ouvir as críticas dos jogadores. Vide o caso de Steep – que saiu de um mediano jogo de snowboard / ski e se mantém até hoje instalado no meu computador.
Mas ainda me mantenho perplexo com o silêncio do restante da indústria.
Por outro lado, jogos que se esforçam para representar uma cultura minoritária – como Mulaka, que busca representar a cultura dos Tarahumara localizados no norte do México – sequer renderam uma nota de rodapé. Way of Defector, Another Lost Phone, Everything is going to be OK – todos tratam de temas que vão de ansiedade e relacionamentos a atos de resistência, e com muito mais propriedade que muitos títulos considerados de “alto calibre” – e, mesmo assim tiveram dificuldades de entrar no radar.
Se o tom de “resmungo” te incomoda, acredite, incomoda a mim muito mais. Evito comentar sobre tais temas por não ter a propriedade para falar deles da mesma maneira que trato outros, portanto confio em outras – e mais aptas – pessoas para tomarem corajosamente a frente. Se você é uma delas, tem minha admiração.
Todas essas coisas – as redomas que criamos, a dificuldade de descoberta de títulos menores, as mudanças na indústria – seja a inclusão de práticas predatórias, o silêncio de vozes ou a normatização de temáticas políticas mais agravantes – tudo isso afeta a todos. E nunca para o melhor.
Eu, porém, sou uma pessoa só, não posso mudar o mundo sozinho e ainda que tenha coberto só uma parcela dessa imensa indústria, passei as últimas semanas de 2017 com dores por conta de estresse. Deixei que 2017 me afetasse mais do que gostaria — estou com essa fadiga emocional.
Para 2018 eu só te peço algumas coisas: Busque mais jogos independentes, ouça com mais atenção carinho o que outros têm a falar, busque comprar jogos sem DRM (GOG, Humble, Itch.io oferecem dezenas de títulos assim), apoie quem você quer que cresça no mercado – seja compartilhando o trabalho deles ou ajudando financeiramente. Faz mais bem à alma do que você imagina.
Rebobinando o ano
Escrever um imenso compilado de “melhores” em cada categoria é um ato falho em sua concepção inicial. Primeiramente porque falo com uma comunidade que tende a estabelecer “melhor” via números, algo que ainda uso com muita relutância. Semelhantemente, palavras como “perfeito” podem significar várias coisas diferentes – e isso às vezes parece um conceito absurdo.
Além disso, ainda estou com muitos jogos pendentes. Esses dias consegui finalmente separar tempo para sentar e jogar Prey, que comprei em maio e pus de lado para poder escrever sobre Steel Division e Dawn of War III. Divinity Original Sin 2 estaria omisso da lista por conta de eu ter me ocupado com outros jogos, e a sua duração infelizmente fez com que ele seja um game difícil de terminar nesse final e virada de ano. PlayerUnknown’s Battlegrounds? Joguei só algumas horas. Não quero nem pensar na quantidade de coisas para jogar quando adiciono consoles e portáteis. (Para uma lista mais pessoal concisa sobre meus favoritos, deem uma olhada no post que fiz a convite do site Jogazera).
Quero propor algo mais simples: seis categorias de três jogos cada. No ano que chega, permita a si mesmo começar o ano expandindo seus horizontes; reflita sobre o ato de jogar e como essas interações são estabelecidas. A lista abaixo não vai necessariamente te guiar pela mão e te mostrar um novo mundo; pode ser que até conheça a maioria. Mas se você se permitir ser absorvido pelo menos por um deles, e assim sair um pouco da pavorosa zona de conforto, eu estarei feliz.
“Para dias chuvosos”
Jogos que merecem ser jogados em dias chuvosos, seja para passar o tempo, apreciar o cenário, ou curtir uma boa música.
“Vamos morrer e ser felizes”
Morte aqui pode ser uma mecânica de aprendizado ou até a mecânica principal, mas estes jogos não deixam de te fazer rir.
“Tem dias que não dá para enfrentar o mundo”
Para dias em que você não está se sentindo bem, prefere não pensar – apenas fazer pontos ou se imergir em um mundo diferente.
“Tenho muito tempo livre, o que você tem para mim?”
A curva de aprendizado desses jogos é relativamente alta e longa, o que os fazem excelentes companhias por boa parte do ano. Manuais e tutoriais não são opcionais.
“Me dê personagens intrigantes”
Podem ou não ser a “epítome” da narrativa de 2017, mas a interação com os personagens – falhos ou não – são o ponto marcante desses jogos para mim.
“Contando os minutos”
Para escapulidas rápidas na hora do almoço, momentos onde você aguarda o café ficar pronto, ou uma desculpa para procrastinar -seja pelas fases rápidas ou pela ênfase em pontuação. (Procrastine com moderação).