Este artigo é um complemento para “Sobre paradas de estrada e uma busca por identidade”.
Criei um hábito peculiar ao longo do mês de setembro: deixar Ys VIII rodando ao fundo enquanto trabalhava. O game da Nihom Falcom tem como principal temática um grupo de náufragos em uma ilha desconhecida. Nela, eles criam um pequeno vilarejo como um “porto seguro”. O que é, exatamente, estar “seguro”? Por que me sentia tão confiante toda vez que ouvia o tema do vilarejo ecoar pelo quarto?
O conceito de um “porto seguro” é algo complexo para eu entender. A ideia em si é um lugar, pessoas, lembranças que resultam em um sentimento de paz interna, de equilíbrio. É a essa ideia que muitos se agarram para lidar com situações difíceis, para tentar definir quem eles são. Mas, o que se faz quando não existe essa noção de “definição do ser”?
Por muitos anos, lutei com essa falta de pertencimento a um lugar. Constantes mudanças — de cidade, de estado, de pessoas — prolongaram e dificultaram o compreendimento da minha personalidade. Ao mesmo tempo em que estava em um local, eu não estava — não era “meu”. O que é um lugar? Um conceito estabelecido dentro do que nós conhecemos. É a criação do significado em meio ao nada; atribuir valor a um emaranhado de cimento, vigas de aço, madeira — e dentro deles depositar as nossas memórias e experiências. São as marcações dos mapas que separam países, o muro que divide a sua casa da casa ao lado, essa cerca que estabelece que é ali a sua “vida”.
Transpondo o conceito para um universo virtual, seja ele de jogos ou comunidades, esses lugares tomam um aspecto ainda mais confuso para mim. Posso te dizer que gastei horas em algum MMO, mas que não tenho lembranças que me fazem voltar para lá. Vejo meus amigos comentarem sobre alguma situação engraçada, ou mencionarem algum caso com um tom nostálgico, e me sinto um patinho feio. Pois, a não ser que estes locais tenham alguma interligação com o mundo real — mesmo que seja a mais branda de todas — eles não dizem nada para ou sobre mim.
Não sou capaz de dizer que as minhas caminhadas em STALKER foram frutíferas ou que eu sinto falta de estar naquele local. As horas que tentei sobreviver em meio a mutantes e grupos de rebeldes não eram minhas, eram de alguma outra pessoa, uma personagem que eu simplesmente incorporava. Ao chegar em uma cidade, atravessar por seus portões e dizer a mim mesmo “Ok, estou seguro”, sabia que era uma fábula. O meu personagem estava. O meu eu de 2007? Jamais.
Vejo em STALKER o mesmo de outros jogos: um complexo conjunto de regras que podem ou não se adequar aos desejos do jogador. Acho que muitas vezes tenho um olhar demasiadamente analítico, que às vezes gostaria de não ter; gostaria de poder me entregar um pouco mais às emoções. A experiência, no entanto, me aponta que isso nem sempre é o melhor a se fazer.
É por isso que The Long Dark, SOMA, Rain World são tão mais impactantes para mim. Na mesma medida em que eles colocam à mostra um imenso medo dentro de mim, tocam pontos que me incomodam, eles me remetem a momentos marcantes da minha vida.
A minha primeira noite em The Long Dark foi de puro pânico. Eu estava em um local frio, com pouca comida e sem nenhum amparo. Enquanto lentamente cruzava as planícies gélidas do norte do Canadá, me lembrava como foi o meu primeiro inverno longe de casa. Era mais novo, inexperiente, confuso e não-pertencente àquele local que estava.
Quando encontrei a minha primeira cabana, fui tomado por uma imensa sensação de alívio. “Meu porto seguro”, pensei. Não falava da edificação em si que via a minha frente, mas sim do que eu desejei para mim naquela época. Era uma noite bem fria nos meus primeiros meses após morar em um lar onde não me dava muito bem com as pessoas. Essa “cabana” nunca esteve lá, nem quando morei com eles, tampouco quando mudei de cidade.
Essa bizarra mistura que The Long Dark criou entre o meu passado e quem eu sou no presente ainda me deixa perplexo. E assim foi com Rain World e sua chuva mortal, que me remete ao período que fiquei hospitalizado há dez anos atrás. Desengonçado e inexperiente como o personagem, queria apenas a minha cama, um lugar para descansar e esperar que aquela chuva passasse para então seguir com a minha vida.
A cama neste contexto era um mero fetiche, a noção de que assim que eu chegasse a ela, todos meus problemas acabariam. Que era só mais um dia, que o sol ia voltar a raiar. Não foi bem o que aconteceu na época.
Como já falei em outros textos, cada um sabe a dor que carrega, e eu sei a minha. Encontrar tais particularidades em jogos é perceber a tamanha falta de amparo que senti ao longo da vida, materializar possíveis portos seguros que não eram reais, por não enxergar os que, de fato, estavam lá para mim.
Vejo também a criação de tais “portos seguros” como uma maneira de compreender como a minha identidade foi moldada – menos como uma massa de modelar, mais como um ferro fundido. É entender e traçar o caminho que percorri na vida por meio de outras mídias para, ao fim, tentar me decifrar.
Quando vejo o vilarejo de Ys VIII, raramente percebo os personagens que estão lá; encontro uma reconfortante memória de momentos bons que tive quando criança. Pescar, a maresia, o vento que batia na janela pela manhã. A situação ao qual me encontrava não era algo que eu gosto de lembrar, por isso nunca voltei a minha casa que morei quando criança. Mas, esses fragmentos de memória — esses eu carrego comigo.
Por meio dessa estranha metodologia, uma mistura de arqueologia virtual para adentrar o meu pensamento, entendo ainda mais que um porto seguro não requer memórias, ou cheiros, ou pessoas ao seu redor. Ele requer que você possa distinguir o que é um porto seguro idealizado do que a vida te entrega como um; e que esteja apto para transformar este “algo” em um emblema de amparo e carinho temporário.
Mas, sim, temporário. Porque uma hora ou outra os seus portos seguros irão se desmanchar, você vai mudar, suas ideias serão desafiadas e o que você conhece do mundo a sua volta vai tomar outra forma.
Olhei para a tela de Ys VIII enquanto escrevia o texto, ela ainda me acalmava e me mantinha em foco. Porém, só consegui escrevê-lo pois estava forte o suficiente para isso. Ys VII não proveu a minha salvação, eu a encontrei.
Me pergunto, porém, à medida em que as barreiras do real e do virtual começam a cair mais e mais, quantos portos seguros serão criados? Onde mais eu irei enxergar frangalhos da minha vida, analisá-los e entender como eu me fortaleci naquele período? Difícil questão, essa. Afinal, viver é sempre navegar em águas turvas — com uma sensação de que se está sem rumo, mas com plena convicção que cedo ou tarde, um farol vai te mostrar o caminho.
E você? Qual é o seu porto seguro, seja ele real ou virtual? Você vai deixar que ele te guie e te ajude ou vai se amarrar a ele e torcer para que nada mude?