Cyberpunk, Retropunk. Algopunk. Palavras que por muitos anos apreciei, mas a demasia de menções em jogos de 2017 para cá — ainda mais quando abordavam o tema com superficialidade — roubaram delas seu sentido. Talvez seja o meu cinismo. Mas pode ser que a minha crença de que a distopia planejada naqueles mundos está mais presente do que nunca na nossa vida de maneira mais sutil também seja responsável. É para a minha surpresa que Whispers of a Machine (Steam), apesar de não se posicionar como um “*punk”, remete ao sentimento original dessas palavras, ao mesmo tempo tornando tudo mais real, crível, tangível.
O projeto iniciado pela Cliffotp Games, agora em parceria com a Faravid Interactive, não teria despertado o meu interesse se não fosse pelo seu título inicial: Kathy Rain. Nele a Clifftop Games demonstrou uma tremenda maestria em saber contar uma história com personagens maduros, temas delicados e momentos de emoção sem se escorar nos clichês da época. Como em Kathy Rain, aqui a premissa que dá o pontapé inicial da história é a da morte — desta vez brutal. Um operário de uma fábrica, e a sua então namorada / amante, são encontrados estranhamente assassinados a facadas. É aí que entra Vera, uma investigadora com implantes cibernéticos capazes de investigar uma cena em instantes, analisar o batimento cardíaco de uma pessoa, ou ter poderes impossíveis para resolver os problemas. Ela também é a grande incógnita de Whispers of a Machine.
O mundo de Whispers of a Machine é um onde a IA e robôs são peças de museu; o medo da IA se tornar consciente, tomar conta dos humanos ou roubá-los da sua “humanidade” aparentemente foi o principal motivador.
Vera não interage direito com as coisas que ela classifica como sendo do “antigo mundo” – afinal, mais de um século se passou desde que o banimento ocorreu. Mas as duas horas iniciais de jogo – o conteúdo disponível da versão preview – demonstram que Vera está mais do que ciente da sua posição privilegiada: uma humana com implantes cibernéticos, teoricamente um “nível” acima de humano “normal” e investigando um crime em uma comunidade rural. Um choque de mundos.
O choque se estende para o que a Clifftop Games tenta fazer com Whispers of a Machine em um patamar de mecânicas. Ele ainda tem muito do DNA dos adventures point ‘n click originais, mas ao invés de seguir uma linha mais narrativa – como o fantástico Unavowed, cujo diretor Dave Gilbert tem seu nome listado aqui como diretor de atuação – ele tenta se posicionar no meio termo entre o que é considerado moderno e o clássico. Não é de hoje que os adventures romantizam a noção de escolha. “Faça isso e você terá um final diferente”, ou obviamente o melhor exemplo recente dos games da finada Telltale e sua linha de escolhas que afetam diferentes respostas dos personagens. Digo que Whispers of a Machine vai um pouco mais além nesse quesito, e de um jeito que faz minha interação com o mundo que me é apresentado parecer mais pessoal.
Os implantes cibernéticos são a base de muitos puzzles: use-os para analisar o batimento cardíaco das testemunhas, ou quem sabe analisar uma possível mancha e posteriormente navegar por uma série de pistas para descobrir até onde a vítima foi nos seus últimos momentos. Não é nada relativamente inovador no sentido de “algo que nunca vimos no gênero”. Mas é a noção de que Vera é uma pessoa privilegiada, e os diferentes atributos que formam a sua personalidade — também moldada pela forma que o jogador interage com as pessoas ao seu redor — que elevam a mecânica. De certa forma me lembra como The Red Strings Club usa analogias para demonstrar o como somos formados pelas nossas experiências e a personalidade que é extraída disso (recomendo também jogar Eternal Home Floristry, que reflete sobre o tema sob uma perspectiva completamente inusitada).
Quando sentei a primeira vez para jogar Whispers of a Machine, eu tentei ser mais incisivo com as minhas perguntas. Ser mais “durão”, por assim dizer. Vera seguiu meus passos, conseguiu uma confissão quase que à força. Não fez amizades na cidade, foi seca. Olhou para os outros com indiferença, petulância, como se a comunidade rural fosse algo que não deveria existir ainda, uma falha no avanço humano.
Na minha segunda tentativa, fui menos assertivo, paciente, tentando ver os dois lados da moeda e como a comunidade recebia alguém estranho, alguém que estava lá para investigar um crime inusitado. Houve resistência, claro, mas me senti muito mais confortável. Vera também, e a resposta dos moradores foi bem mais amigável. Além disso, me fez enxergar que Whispers of a Machine de fato leva em conta a sua personalidade, e que também existem outras soluções — talvez múltiplas — para um mesmo puzzle. Uma resposta me levou para um lado diferente da cidade, que sequer imaginava estar na versão de preview. Isso é algo bem incomum em point ‘n clicks modernos.
Esse tempo que passei sendo “duas pessoas”, ou melhor, duas “Veras”, também me permitiu notar que a protagonista também tem as suas próprias lutas, especialmente no final da demo, onde uma estranha figura do seu passado ressurge e Vera pensa ser uma alucinação, um efeito colateral dos implantes cibernéticos — um efeito colateral do que é se deixar ser consumido por algo que inicialmente parecia inofensivo. Inofensivos parecem também os assassinatos que até então eram nada mais do que uma rotina para Vera, mas no final da versão preview dão brecha para uma série de questionamentos meus – não só sobre o futuro de Vera, mas também sobre o que o assassino planeja, qual é o real motivo do banimento de IA, e até que ponto essa colisão entre uma policial da cidade grande e uma comunidade rural vai conseguir se manter em pé e não desabar.
No que tange ao âmbito dos adventures, Whispers of a Machine parece estar fazendo todas as perguntas corretas: quem você é, quem você quer ser, como você quer enfrentar esse desafio, como esses personagens ressoam com você. É a assinatura dos adventures modernos, a aproximação do espectador com a peça — a maneira como ele pode manipular o cenário, e como uma solução não é equivalente a todas as soluções. Torço para que meu instinto não esteja errado, e que ele também possa prover respostas competentes aos meus questionamentos em 17 de abril, data prevista para lançamento. Se sim, é provável que tenhamos um adventure no nível de Unavowed – que considero um dos melhores dos últimos anos.