Passei anos cobrindo a indústria de jogos e o que é “novo” cada vez me atrai menos e menos. Eu sei que o próximo jogo de mundo aberto vai ser “parecido” com o do ano anterior, que a “tendência” que você viu 2 anos atrás vai continuar a crescer. Eis que me aparecem os jogos que apelam para a nostalgia, e a maioria deles abraça a estética e nada mais. Mas não “Underspace” da Pastaspace Interactive. Previsto para sair em 10 de abril no Steam Early Access, ele é um dos poucos que eu joguei que captura a essência do clássico “Freelancer”.
Para quem não conhece, “Freelancer” foi lançado em 2003 pela Microsoft e Digital Anvil – local de trabalho de Chris Roberts que, na época, já tinha sua dose de reconhecimento por “Wing Commander”. Era um jogo à frente do seu tempo. Mundo aberto, dezenas de naves, a possibilidade de “aterrissar” em planetas. Eventualmente Roberts retornaria para criar um jogo ainda mais ambicioso, Star Citizen, e todos sabemos como essa história ainda não acabou.
Nesses mais de 20 anos a lacuna deixada por “Freelancer” nunca foi preenchida de fato. Claro que hoje em dia temos jogos excelentes como “No Man’s Sky”, “Everspace 2”, e “X4”. Cada um deles se sobressai em uma área – seja visuais, combate (no caso de Everspace 2) ou simulação (no caso de X4). “Underspace”, ao menos nas horas iniciais, entrega o que eu tão desejava desses e outros jogos no espaço: o prazer de explorar o desconhecido e ter medo dele.
A Pastaspace Interactive não parece se importar se a sua história é cheia recheada de clichês ou absurda. A tela inicial me entrega um prelúdio de que uma guerra intergaláctica foi evitada após alguém fazer um discurso de 42h. Como alguém conseguiria isso? Como isso não iria gerar uma discussão ainda maior? Não há tempo para essas respostas; o jogo rapidamente corta para uma frota sendo atacada por um ser desconhecido. Mal sabia eu que aquela frota em teoria era minha, e agora eu não tenho um centavo no bolso e preciso recomeçar a minha vida.
Assim, “Underspace” abraça o estilo “Freelancer” sem medo. Ele te dá uma missão inicial para te ensinar os controles da nave, como explorar o espaço e obter missões. Quer cruzar o mapa e tentar a sorte em outra galáxia? Sem problema. Decidiu que vai fazer missões de mineração para uma facção específica? Também é possível desde o minuto inicial da “campanha”. Quer se arriscar e atacar comboios inimigos como um pirata? Sem problema.
Embora o parágrafo acima possa te lembrar de outros jogos que foram lançados nesses últimos 20 anos, é a forma como “Underspace” amarra isso tudo que faz ele ser tão próximo de “Freelancer”. Nada é complexo demais ou simples demais para você simplesmente jogá-lo sem prestar atenção. Sistemas dominados por outras facções poderão te atacar sem aviso prévio, sua reputação tem um peso enorme, e há uma enormidade de cidades / culturas para serem conhecidas.
Não, o jogo não te deixa aterrissar em um planeta como “No Man’s Sky” ou “Elite: Dangerous”, mas em contrapartida cada bar, cada porto espacial aparenta ter a sua identidade própria. Seja pela quantidade absurda de diálogo entre NPCs, ou pelo tipo de espaçonaves e módulos que você vai encontrar à venda..
Mas, acima de tudo, o que me deixa mais empolgado é que ele faz o espaço ser um local desconhecido e aterrorizante. Eu não sei o que vou encontrar pela frente quando levanto voo em destino a outra galáxia. Será que eu vou me deparar com um grupo de piratas? Vou encontrar destroços? Ou, o pior de tudo: vou encontrar tempestades espaciais?
As tempestades são o que fazem “Underspace” se diferenciar tanto de outros jogos sci-fi. A Pastaspace Interactive, outra vez, abraça o exagerado sem medo e adiciona criaturas claramente inspiradas por Lovecraft em seu universo. Como elas funcionam ou o por que elas estão lá? O jogo chega a dar uma explicação, mas não vou contá-la aqui. O que você precisa saber é que dentro de cada uma dessas tempestades pode existir um monstro prestes a te engolir e destruir horas de progresso, dependendo do trajeto que você está fazendo.
A minha primeira tempestade fora de uma missão foi uma experiência singular. Eu estava a caminho de um planeta para coletar matéria-prima e revendê-la em outro sistema para lucrar quando do nada as estrelas desapareceram e minha nave foi envolta por uma névoa. Dessa névoa me surgem os fantasmas de uma frota que tinha sido destruída há milênios, e eles querem vingança, não importa o alvo.
Os próximos minutos de jogo se tornaram cruciais para a minha sobrevivência. Eu sabia que não tinha chance contra eles, então redirecionei energia para os escudos e o motor, e tentei dar o pé o quanto antes. O mapa mostrava que demoraria, no mínimo, 10 minutos para eu atravessar essa tempestade. Dureza, mas aceitei o meu destino.
Esquivava para lá, esquivava para cá, meu olho estava fixado no contador de energia dos meus escudos e torcendo para que a frota fantasma não me perseguisse até as bordas da tempestade. Pouco a pouco os disparos de lasers foram ficando mais distantes; algum tempo depois, meus radares não indicavam mais nenhum inimigo. As estrelas reapareceram e, à distância, pude ver uma refinaria. Pousei minha nave para reparos e respirei aliviado.
São esses momentos, a liberdade que “Underspace” te dá para seguir o caminho que quiser, os controles intuitivos e a variedade de cenários que eu encontrei, que o vem tornando tão memorável para mim. Eu, de fato, me sinto jogando um sucessor espiritual de “Freelancer”. É aquela sensação gostosa de que você só arranhou a superfície e sabe muito bem que tem muita coisa ainda para descobrir.
E, como eu disse antes, “Underspace” não tem medo de usar conceitos que seriam considerados “extremos” ou “desconectados” do seu universo. As próprias tempestades são um exemplo, mas já vi portais para universos paralelos, seres bizarros em que sequer ousei encostar para não ter a minha nave dizimada, e histórias que saíram de uma batedeira dos maiores clichês de ficção científica. Eu criticaria essa abordagem em outros jogos, mas por algum motivo, ela funciona aqui.
Acredito eu que ela funciona porque “Underspace” no fim não é o seu jogo espacial “típico”, o que eu venho jogando há anos. Ele me remete a “Freespace” mas finca a sua identidade própria – por mais derivativa que seja. Já sei muito bem que os eventos apresentados para mim até então não vão ser encontrados em qualquer outro jogo.
Também sei que a jornada de Early Access dele vai ser longa, bem longa. A própria Pastaspace Interactive assume que, embora o jogo esteja completo, muitas áreas requerem polimento. O combate em si é competente, mas a IA não é das melhores. O jogo às vezes demanda um pouco demais da sua máquina sem motivo aparente, os visuais carecem de polimento – especialmente os efeitos de explosão – e quedas na taxa de quadros são frequentes, e a maioria dos diálogos não tem vozes gravadas ainda. A “pior” parte é a interface, que precisa de uma repaginada e mais informações sobre como acompanhar quests e a opção de favoritar locais no mapa.
Não é à toa; o jogo em si já tem 114 sistemas solares, uma campanha com 16 missões, 68 diferentes tipos de inimigos (sem contar variantes), 36 chefões – sem incluir encontros aleatórios como as tempestades que citei – e mais de 500 peças (incluindo variantes) para as dezenas de naves controláveis. Sem contar que a Pastaspace Interactive ainda quer colocar um multiplayer com persistência e suporte a servidores geridos pela comunidade.
Eu não sei se eles vão conseguir atingir todos os objetivos que querem. Mas, só de ter um jogo “totalmente jogável” do começo ao fim em Early Access demonstra para mim a incrível capacidade dessa equipe. E, bem, já é muito mais do que a equipe de “Star Citizen” fez na última década.
Vou continuar a arranhar a superfície, e cedo ou tarde, fincar a faca bem fundo para ver os momentos finais da campanha de “Underspace”, mas ele já se tornou um queridinho meu. Minhas expectativas estão lá em cima para vê-lo finalizado.
É por isso que eu aposto, e vou sempre continuar apostando o meu tempo livre em jogos independentes. Sejam aqueles que apelam para a nostalgia, aqueles que tentam algo diferente no mundo aberto. Não ter limites para o que você pode fazer é uma benção e uma maldição, mas se não fosse por essa ausência de controle de uma empresa gigante por trás, e uma equipe que entende bem o que quer, não teríamos jogos como “Underspace”. Enquanto continuarem produzindo jogos deste calibre, eu continuarei cobrindo quantos conseguir.
E se você, se está no mesmo barco – ou melhor, espaçonave – que eu, e sente saudade de “Freelancer”, “Underspace” vai suprir muito bem a sua necessidade. Confia em mim.