Como você cria uma “sequência” para um dos mais bem recebidos e complexos roguelikes já criados? Um jogo que vem recebendo atualizações desde 1994? Bem… você não cria, você dá uma nova interpretação do que é jogar ADOM — que é ao meu ver o principal objetivo de Ultimate ADOM – Caverns of Chaos (Steam).
Ultimate ADOM é igualmente uma evolução e um “olhar para trás” para compreender o que fez com que o original se tornasse uma sensação entre os fãs do gênero. A complexidade, variedade de builds, um mundo aberto, cidades e dezenas de quests. Porém, ao invés de seguir fielmente este caminho, a desenvolvedora preferiu — ao menos por ora — se limitar a uma única dungeon. Como o nome indica, as “Cavernas do Caos” é uma dungeon com 20 andares, múltiplos biomas e uma imensa variedade de inimigos para um jogo que ainda está em acesso antecipado.
Mas, para entender a decisão que a equipe de Ultimate ADOM tomou em não criar algo grandioso de cara, é necessário compreender as grandes mudanças que ocorreram dentro do gênero nos últimos sete anos. Muitos jogos vêm tentando tornar roguelikes tradicionais mais acessíveis para o público em geral. Destes destaco Dungeonmans, Golden Krone Hotel, Cogmind, Tangledeep, e até as últimas atualizações de Caves of Qud (tratar Caves of Qud como um mero roguelike é uma faca de dois gumes e um assunto que é muito maior do que o escopo deste artigo) .
Todavia, apenas Golden Krone Hotel — cujo desenvolvedor publicou um artigo um tanto controverso dentro da comunidade — realmente tentou abandonar o sistema “clássico” de movimentação, como o uso do teclado numérico e de dezenas de atalhos que só fazem sentido para quem já tem experiência no gênero. Isto é, até Ultimate ADOM entrar no ringue, chutar o balde e clamar “Chega dessa palhaçada, vamos fazer um roguelike para todos!”. Um posicionamento audacioso dentro de uma comunidade um tanto conservadora.
O resultado disto é a versão de acesso antecipado de Ultimate ADOM. Um olhar superficial apresenta apenas “mais um roguelike” com uma interface modernizada, navegação usando WASD e muitas ações que podem ser feitas também com o mouse. A realidade é que a equipe de ADOM conseguiu o incrível feito de incluir um grau de versatilidade e variedade de builds que conseguem se equiparar ao grau de complexidade do seu antecessor sem fazer com que o jogo fique “arrastado”.
Um dos principais componentes para que isso se torne realidade é o uso da “roda de ações”. Como um bom roguelike tradicional, Ultimate ADOM é repleto de estratégias que você descobre na base da tentativa e erro. Por exemplo, usar uma poção de teleporte em um arco faz com que suas flechas teleportem os inimigos, por exemplo. Realizar tal processo em ADOM necessitaria de dezenas de atalhos; em Ultimate ADOM basta arrastar o ícone da poção para o arco e a ação está feita.
Aliás, essa é talvez uma das interações mais “básicas” que você pode fazer em ADOM e sequer está restringida por classes ou facções. Sim, você leu certo, facções. Ainda que não estejam 100% implementadas, se aliar a uma das facções no começo da partida garante a você bônus em atributos que podem tornar a sua “run” mais fácil ou muito mais difícil.
Mas nada melhor para contar o que é jogar Ultimate ADOM do que uma boa história. A história de Dworen, o guerreiro que foi audacioso demais para as “Cavernas do Caos”.
“Guerreiro, Lucas? Sério mesmo? Não tinha uma classe mais interessante para escolher? Sei lá, um mago, um arqueiro, um ladino?”. Já imagino que você deve ter soltado uma dessas, mas me escute: jogar com um guerreiro em Ultimate ADOM não é como em outros jogos.
Ultimate ADOM é governado primariamente pelo seu sistema de habilidades; a classe que você escolhe é meramente uma base para você construir a sua build. Ao me alinhar com a deusa da natureza Nesera, Dworen obteve mais dois pontos de willpower e acesso a diferentes tipos de escola de magia. Como ele — muito como eu — gosta de resolver as coisas batendo de frente, escolhi “grafting” e “butchering” como habilidades ativas.
As habilidades são uma das maiores novidades de Ultimate ADOM. Em suma você é capaz de amputar os corpos de seus inimigos e, por meio de magia, transformar o seu personagem para ter dois braços, duas cabeças, etc. O uso dessa magia tem uma gigantesca repercussão em como você explora as dungeons. No caso de Dworen, eu tive a sorte de encontrar dois orcs que me deixaram belas carcaças para serem transformadas em dois novos braços.
Como eu tinha dividido os restantes dos meus pontos de habilidade de guerreiro entre machados, espadas e uso de armaduras médias, Dworen agora era uma máquina mortífera capaz de sair por aí batendo em cada inimigo quatro vezes com dois machados e duas espadas. Há uma pequena penalidade na precisão dos ataques, mas o dano causado compensa e muito.
Os primeiros cinco andares foram pura moleza. Via um inimigo e partia para cima dele como se fosse invencível. O fato de eu ter escolhido um humano para começar a partida garantia que 2 pontos de vida eram recuperados a cada 10 turnos e junto com “Iron Skin”, que aumentava a minha proteção, o dano causado pelo inimigo era ridículo de baixo.
Entre o primeiro e o quinto andar encontrei runas que aumentavam a precisão das minhas armas, poções que transformavam objetos inanimados em meus companheiros de batalha (sendo que, desses, o que mais durou foi um caixão) ou faziam com que o meu machado causasse dano de fogo. O loot de armas e equipamentos em si era relativamente escasso e desinteressante — creio que isso venha a ser refinado na medida em que o período de acesso antecipado progredir.
Ao chegar no quinto andar foi que eu notei um imenso erro na minha build. Eu tinha me preparado para todo tipo de inimigo que veio na minha cabeça: ratos, kobolds, orcs, arqueiros e, com sorte, magos. O que eu não lembrei é que Ultimate ADOM tem sempre uma carta na manga para me pegar desprevenido.
Abri uma porta e me deparei com uma sala repleta de inimigos. Dois magos, um golem que era impossível de matar sem quebrar as minhas armas, cinco arqueiros e três orcs. Dei dois passos para trás como quem não quer nada e pensei: “Hmm…. Ferrou. Preciso pensar em uma tática para eliminá-los um por um”.
Tentei atrair a atenção de um dos arqueiros ao jogar uma poção de teleporte nele, o que fez com que ele fosse levado para algum outro canto do mapa. Os inimigos na sala foram alertados mais uma vez da minha presença e começaram a me perseguir. Era eu de um lado fugindo de flechas e magias e do outro lado os monstros atrás de mim sedentos para me matar. Me senti como em uma daquelas perseguições do Tom & Jerry, só que eu no caso era o Tom e sabia que cedo ou tarde o Jerry ia achar uma artimanha para me encurralar.
A artimanha veio na forma de uma pedra gigante que caiu na minha cabeça e me deixou atordoado por cinco turnos, tempo mais do que suficiente para que os meus inimigos me alcançassem, encurralassem, e fizessem picadinho de mim. Assim acabou a jornada de Dworen — esquecido nas “Cavernas do Caos”, mas que vai ser lembrado por bons meses por mim pela imensa quantidade de diversão que eu tive nessa run.
Isto é apenas uma gota d’água no imenso caldeirão que é Ultimate ADOM. Aqueles que optarem por jogarem como magos terão diversas escolas de magia a sua escolha, poderão movimentar paredes, converter inimigos para sua causa, ressuscitar mortos. Arqueiros podem ativar armadilhas à distância, usar furtividade com maior eficácia ou até criar uma build híbrida onde você é capaz de usar duas adagas e um arco com precisão mortal. Não vou ficar surpreso se alguém chegar no vigésimo andar usando apenas uma build de furtividade. Agora se ele irá matar o “chefão final” ou não é outra história.
Para um jogo que está em acesso antecipado, Ultimate ADOM traz um incrível potencial de builds de fazer inveja para muitos outros roguelikes. A quantidade de bugs que eu encontrei foram minúsculas e mais relacionadas ao desempenho das dungeons quando haviam muitos inimigos na tela do que algo que vá realmente prejudicar a partida.
Mas ainda há muito a ser feito para que o jogo realmente se torne completo. Algumas mecânicas essenciais — como fome e corrupção — ainda não estão implementadas e acabam deixando o jogo um pouco mais fácil do que o esperado.
A equipe planeja adicionar mais variedade nas dungeons em termos de equipamento, biomas e, é claro, mais uma boa leva de habilidades passivas e ativas para você desenvolver o personagem do seu jeito. Isso sem contar na possibilidade de criar as suas próprias dungeons, equipamentos e magias, e compartilhá-las no Steam Workshop. A previsão é que grande parte deste conteúdo listado esteja no jogo até o final de 2021.
Eu terminaria este texto dizendo que “planejo revisitar o jogo quando tudo isto estiver pronto”, mas isso é uma grande mentira. Eu sinto que arranhei a superfície do que Ultimate ADOM é capaz e quero desenvolver novas builds, me apaixonar pelas diferentes habilidades e ver até que ponto eu posso torcer e retorcer as “Cavernas do Caos” ao meu favor.
Seja agora ou no lançamento da versão 1.0, eu vejo Ultimate ADOM como o modelo de roguelike “tradicional” que devemos ter em 2021. Ele não abriu mão da complexidade, mas traz melhorias para a interface e compreensão de suas mecânicas que fazem com que novas runs sejam sempre deliciosamente prazerosas — e ainda traz aquele tom de nostalgia e mistério de explorar o desconhecido. Se você é um veterano da série, ainda vai aproveitar o gostinho de nostalgia dos anos 90 com a opção gráfica de ASCII.
Espero que você dê uma chance para Ultimate ADOM. Caso sim, espero poder compararmos as nossas tabelas de liderança de Caverns of Chaos! Quero dizer, as tabelas de “olha até onde chegamos até morrermos de maneira patética” de Caverns of Chaos.