Quando a InXile decidiu realizar a complicadíssima tarefa de criar um novo Torment, tentei sempre que possível deixar as minhas expectativas não muito altas. Agora Torment: Tides of Numenera chega ao acesso antecipado do Steam. As quase 20 horas gastas no estranho mundo de Numenera me deixou com um misto de esperança e receio. Ele está disponível no acesso antecipado do Steam por R$ 81,99.
O beta começa com seu personagem em queda livre sobre um local que não é muito bem definido, um lugar que parece existir apenas na mente do personagem. Torment mantém os mesmos temas do jogo que o inspirou, Planescape Torment, imortalidade, nascimento e escolhas. O protagonista — seja homem ou mulher — é chamado de Last Castoff, um corpo descartado pelo Changing God, um homem que foge da morte por transformar seu corpo. Ao descarta-lo, este corpo ganha uma consciência. Nesta cena você já deve escolher entre diversas ações que moldam o seu personagem, sendo que algumas até podem matá-lo antes mesmo de começar a partida.
Normalmente as primeiras horas são usadas para estabelecer o universo e os principais personagens coadjuvantes, coisa que estranhamente não acontece aqui. Após aterrissar sobre o que parece ser um labirinto ou uma construção de outra era, fui apresentado a uma série de outras escolhas, muitas delas nebulosas sobre o que ocorreria com o personagem. Acontece que a criação de personagem ocorre durante esse período, são as suas ações nessas primeiras duas, três horas que irão moldar a classe, atributos e principais habilidades.
Ideia interessante, mas não muito bem implementada. Meu conhecimento sobre o universo de Numenera é limitado a meia dúzia de artigos e a pouquíssima exposição que o jogo me deu nessas horas. São tantas opções pouco explicativas que eu não sabia se havia feito a melhor escolha e tudo o que menos quero em um RPG que provavelmente irá durar mais de 40 horas é descobrir que meus pontos de força / destreza / inteligência não estão do meu agrado ou que uma habilidade pode me decepcionar apenas porque o jogo não me deu as ferramentas corretas para definir como meu personagem será.
A coisa só piora quando nos momentos finais da criação do personagem o jogo te apresenta uma pequena narrativa sobre um motim de mutantes em uma das cidades do jogo. Qual era meu interesse naquilo? Aparentemente era uma memória do passado do protagonista, ou quem sabe do Changing God, a qual não pude descobrir seu propósito durante o beta. Toda a sessão pareceu por hora confusa e desnecessária.
Tides of Numenera faz jus de sua tag de “beta” por isso e tantos outros problemas comuns em jogos ainda incompletos. O desempenho está muito abaixo do esperado, o mouse deixa de responder, diversas vezes tive que reiniciar o jogo para continuar um diálogo, etc. Coisas que possivelmente serão resolvidas na versão final.
Quando finalmente passei do longo processo de criação do personagem, tendo feito um Glaive — algo similar a um guerreiro — pude explorar o mundo de Numenera e ficar impressionado com o que via. O universo de Numenera parece se encaixar teoricamente perfeitamente com a proposta de Torment. A história começa no que os habitantes da Terra chamam de Nono Mundo, nome dado aos períodos onde grandes civilizações ascenderam, decaíram, e deixaram a sua marca na terra. Uma ambientação um pouco medieval entra em conflito com robôs deixados pelos antepassados, tecnologia se une ao arcaico e tudo tem um ar meio surrealista.
Sagus Cliffs, cidade onde você passa boa parte do tempo do beta é no mínimo bizarra. Construções arcaicas dividem espaço com portais, tecnologias capazes de gerar escudos de proteção, robôs gigantes e estranhas construções que me faltam palavras para descrevê-las propriamente.
Em um mundo com tamanha história e mistério, esperava que ele se apresentasse para o protagonista e não que o protagonista fosse o centro das atenções. Você é alguém sem memória, que chegou naquele universo agora e em cinco minutos alguém aparece para te pedir favores. Praticamente todas as quests começam com a mesma estrutura.
Fale com a pessoa e ela te dará um “servicinho”. Faria sentido se eu fosse um mercenário ou até mesmo quem sabe alguém que tem uma reputação por resolver problemas, mas eu era um zé ninguém. Por que me davam tantas responsabilidades? Essa demasiada ênfase no personagem me decepcionou, mas quem sabe há uma razão por trás disso tudo e eu apenas descobrirei mais para frente.
Salvo esse pequeno deslize, Tides of Numenera segue o caminho da não violência justamente como eu gostaria. Tudo, e digo literalmente tudo, que vi pode ser resolvido na base do diálogo ao invés de conflito. A pequena porção de combate foi vista apenas nas primeiras horas de jogo, com o restante tomando um aspecto mais de aventura e muito texto do que um soco ou uma facada no oponente. Mas não pense que seus atributos foram distribuídos em vão, muito pelo contrário.
O personagem principal e seus companheiros têm uma reserva de pontos distribuída entre força, destreza e inteligência. Certas ações permitem os usar para torná-las mais fácil. Uma das minhas primeiras interações com personagens foi tentar salvar alguém da execução. Esta que é feita por meio de um estranho ser criado a partir dos sonhos e anseios do sentenciado. Já deu para perceber que não estava brincando quando falei que o mundo é um tanto surrealista, né?
Pois bem, minha solução era tentar convencer um oficial da cidade de que eu era de fato um dos recém “xerifes” e precisava de um distintivo. Sem usar nenhum ponto de inteligência, Tides of Numenera me informava que essa opção era muito difícil para o personagem, mas se gastasse dois pontos ela seria apenas “moderada”. Sem pensar duas vezes, optei pela solução e consegui meu distintivo.
Torment: Tides of Numenera requer que o jogador saiba balancear o uso da reserva de atributos, afinal elas não apenas são usadas em diálogos como também no combate. Como apontei, minha experiência com o combate foi pequena e não das melhores, mas não sem a suas devidas peculiaridades. O sistema de combates por turno ainda está longe de ser finalizado e isso é visível com a falta de explicação sobre habilidades e com cada mudança de turno que mais parecia que o PC ia desligar.
O meu breve encontro foi com um grupo de mercenários que me esperavam no momento que saí de uma pequena edificação, sem muito diálogo eles partem em cima do jogador e de seus companheiros. Cada ação feita pelo jogador pode ou não consumir uma parte dessa reserva, mas o interessante foi a maneira que ações não relacionadas ao combate foram adicionadas com tamanha naturalidade. Depois de eliminar um dos inimigos, um dispositivo que ele usava fez com que as pontes de energia próximas a mim começassem a se sobrecarregar. Precisava em poucos turnos evitar que isso acontecesse, ao chegar próximo do corpo, pude interagir com o dispositivo e desativá-lo ao usar um pouco da minha reserva de pontos de inteligência. Tudo isso enquanto outros personagens estavam em combate. Uma ótima maneira de criar tensão para o jogador e fazer com que ele busque outras maneiras de resolver um combate.
Minha maior decepção fica mesmo por conta dos três personagens que me acompanharam durante o conteúdo do beta. Rasos, desinteressantes e com diálogos que vão do bom ao terrível muito rápido. Não conseguia me sentir conectado ou nem mesmo interessado pelo o que tinham para falar. Ao menos outros habitantes de Sagus Cliffs eram mais interessantes.
Torment: Tides of Numenera tem um longo caminho pela frente e pelo jeito que as coisas estão eu tenho as minhas dúvidas sobre seu lançamento em 2016. O Beta apresenta um bom RPG, mas que está longe do game que o inspirou e ainda tem muito a ser feito tanto na interface, como no conteúdo antes que saia algo ótimo dele.
Por hora, a não ser que você tenha muita curiosidade (ou paciência para lidar com os problemas), recomendo que espere alguns meses de desenvolvimento antes de gastar todo esse valor cobrado. A InXile está no caminho certo, resta saber se será capaz de chegar lá.