Em meados dos anos 2000, em busca de enriquecer meu catálogo de jogos de estratégia, eu me deparei com um jogo chamado “Steel Panthers”. Foi um momento fascinante, um dos primeiros wargames que eu joguei a fundo e também o que me fez conhecer “Advanced Squad Leader”, jogo da Avalon Hill que, por décadas, vem tentando ser recriado de forma digital com diferentes resultados. A mais recente investida, “Second Front” da Hexdraw (Steam), pode ser a peça que faltava no quebra-cabeça.
O que torna tanto “Second Front” quanto “Advanced Squad Leader” jogos interessantíssimos de serem analisados é a formação de seus turnos. Cada um deles é dividido em múltiplas etapas que vão de “ataque e movimento”, “defesa”, “checagem de moral”. Simples de compreender, mas com modificadores suficientes para você sentir que sempre há algo a mais para descobrir.
A maior dificuldade, ao menos na minha visão, em transpor essa sensação para um ambiente digital é que a maioria das desenvolvedoras se prende demais nas regras para que elas sejam as mais “fiéis” possíveis. É comum que um jogo que é divertido quando jogado pessoalmente vire um mar de números, rolada de dados, e tédio. “Second Front” quebra esta barreira ao transformar tabelas em visuais e providenciar uma formidável IA.
A versão que nos foi enviada pela Microprose para esta matéria é composta por cinco cenários, um editor de mapas, um criador de cenários, e um “pequeno” manual de 29 páginas com mais detalhes sobre os diferentes modificadores que estão presentes no jogo. Eu não o consultei sequer uma vez.
Embora o meu desejo seja escrever sobre todos os cenários e o quão fantásticos são, vou me focar em “The Ford”, já que foi ele que abriu os meus olhos para a complexidade bem escondida de “Second Front”.
Jogando como a Alemanha nazista, a operação é — em teoria — simples: atravessar uma região alagada e tomar uma posição soviética. O que separa você dela é uma estrada, uma floresta recheada de inimigos, e um limite de oito turnos.
Eu, que não sou bobo (eu acho), já me prontifiquei de no primeiro turno mover todas as minhas unidades para posições vantajosas onde eu teria um campo de visão do meu inimigo. Em outros jogos, esse processo seria lento e monótono; teria que parar para consultar a tabela para descobrir o que “+1” ou “-1” significavam. “Second Front” joga todos esses aspectos para um bom uso de imagens que rapidamente me demonstram, caso eu coloque a minha infantaria próxima a um tanque, se ela pode se tornar um alvo ainda mais fácil para o meu oponente.
A partir daí que a Hexdraw começa a divergir do modelo tradicional de “Advanced Squad Leader” para algo mais modular. A desenvolvedora aposta em porcentagens e bastante RNG. Após tantos anos vendo wargames serem reféns de tabelas bem calculadas, eu abraço a mudança com bastante carinho.
Abraço-a pois eu joguei e rejoguei “The Ford” ao longo de quatro dias e vi resultados muito diferentes. A minha primeira, e falha tentativa, foi jogar toda a minha infantaria nas posições inimigas e usar os tanques na defesa. Resultado? Depois de serem metralhados, minhas tropas fugiram e os tanques ficaram indefesos.
Na minha segunda tentativa, agora um pouco mais “sábio”, tentei fazer a infantaria trabalhar em conjunto com os tanques. Isto é, colocar os tanques na linha de frente e a infantaria atrás. Bastou ver o ícone que indicava uma chance reduzida de acerto já que minha infantaria estava atrás de um tanque que eu notei a estupidez que tinha feito.
E assim foi ao longo desses quatro dias. Quando achava que estava prestes a alcançar o objetivo no limite de turnos, a IA era sorrateira e cercava as minhas tropas. Eu fazia um cálculo errado, ou esquecia de mover as minhas unidades.
A vitória definitiva veio pelo acaso. Um dos meus tanques disparou contra a linha de frente soviética e a bala causou um incêndio na floresta. “Pera, eu nunca vi isso acontecer antes nesse mapa!” Eu estava perplexo.
Muito para a minha surpresa, a IA não desmanchou com o ocorrido. Algumas tropas fugiram em pânico, outras recuaram para posições ainda mais defensivas para tentar uma segunda emboscada. Era tarde demais para eles.
Um turno era mais do que o suficiente para mover tanto a minha infantaria quanto os tanques, tomar as posições-chave na estrada para impedir os soviéticos de avançarem. Vi minhas metralhadoras rajarem fogo, garantindo que ninguém se movesse e que o restante dos meus soldados tomassem o objetivo.
Em momento algum a minha “imersão” foi destruída por números, manuais, textos imensos ou um alerta gigante de que eu não podia fazer “A” ou “B”. Eu estava investido em “Second Front” da mesma forma como eu me senti com “Steel Panthers” anos atrás. Eu me vi como um participante da ação, e o meu oponente como alguém que estava do outro lado da mesa planejando ações para tentar me derrotar.
Com quase todos os cenários completos, eu decidi pôr a mão na massa e criar os meus próprios cenários. Outra vez “Second Front” me surpreende ao ser amigável para novatos. Eu tenho bastante experiência na criação de cenários para jogos como Man of War e Field of Glory II e foram poucas as vezes que eu encontrei um editor tão fácil de ser usado.
Uma hora e eu já tinha um terreno completo feito, objetivos, tropas e uma descrição básica. A flexibilidade que “Second Front” oferece é fantástica. Só a base de dados com mais de 200 unidades de tropas da Alemanha, Estados Unidos e União Soviética praticamente implora para que o meu lado criativo faça algo com elas.
Eu não vou nem entrar no tema “diferentes tipos de terrenos”, senão eu fico aqui o resto do dia descrevendo como é possível criar cenários vastamente distintos com pouquíssimo esforço. A imagem abaixo já dá uma boa noção do que esperar:
Embora eu tenha algumas críticas sobre partes da interface, como o uso de certas combinações de cores que dificultam a leitura e a maneira como a sequência de etapas dentro de um turno é demarcada igual para ambos os lados, “Second Front” está polido a um ponto que se fosse lançado em acesso antecipado já estaria disputando por “jogo de estratégia do ano” aqui no site.
Não vou mentir para vocês, há dias que eu fico muito preocupado com o futuro dos wargames. A rigidez e o conservadorismo — não só de um ponto de vista de regras — ainda os limita para um seleto grupo de jogadores com anos de experiência. Manuais atrás de manuais, regras complicadas atrás de regras complicadas. Barreiras aparentemente impossíveis de serem movidas já que o “clubinho exclusivo” de quem joga wargames não aceita novos membros. Patético.
Eis então que aparecem jogos como “Second Front”, “Unity of Command”, “Decisive Campaigns: Ardennes Offensive” e tantos outros que lutam para tornar esse gênero mais amigável. É neles que eu coloco a minha esperança de que uma hora esse gênero vai mudar e vai atrair um público mais novo, de que o mundo de papéis e números e isso e aquilo e “ah, mas tem que seguir as regras que estão no manual” irão embora para que uma nova comunidade floresça.
Eu não sou de apostar, mas se “Second Front” for o primeiro a carregar uma nova onda de wargames, eu não vou ficar nem um pouco surpreso. Eu torço para que ele seja o jogo que eu possa indicar para amigos e amigas que não têm o menor contato com o gênero e ainda assim consigam se divertir. A bola está no campo da Hexdraw, e se tudo correr como imagino, ela vai marcar um golaço.