Hearthstone, Gwent, Faeria, Shadowhand, Eternal. Joguei todos – e todos me prometeram que seriam únicos e diferentes, que as mecânicas iam me prender, ou que a estética ia me conquistar, ou talvez quem sabe a campanha era o foco da vez. Joguei cada um e em cada um senti a falta de um certo toque especial – um que me prenda de vez, similar ao que senti quando eu joguei Magic: The Gathering. Prismata (Steam) da Lunarch Studios foi o primeiro a conseguir trazer esse sentimento de volta.
Para fins de nomenclatura, diria que Prismata é um card game da mesma forma que Wargame ou Labyrinth: The War on Terror ou Twilight Struggle são card games. Ou, colocando de outra forma, todos esses jogos usam cartas para as suas mecânicas, sim, mas isso não exatamente faz com que sejam um “card game” no sentido atualmente mais usado da palavra. Trato de apontar isso o quanto antes pois Prismata é possivelmente diferente de tudo o que você jogou, e muito dos conceitos que possa ter sobre card games precisam ser “esquecidos” o quanto antes.
Claro que escrever isso é muito fácil agora que eu tenho mais de 40 horas gastas e muitas manhãs, tardes ou noites de partidas atrás de partidas. Eu peguei Prismata sem a menor expectativa de que seria “tudo o que eu sonhava”; para mim era mais um já pronto para entrar na lista de decepções. Um pré-conceito terrível da minha parte, assumo.
Um menu sem graça me deu as “boas vindas” da pior forma possível. Confuso e claramente inacabado, não foi a melhor das primeiras impressões. “Calma Lucas, é um jogo em acesso antecipado, você sabe muito bem que gráficos não importam, você sabe.”, dizia para mim mesmo para manter as minhas expectativas em cheque e evitar ser pego pelas impressões iniciais…. que não melhoraram após eu jogar o (até então disponível) primeiro capítulo da campanha.
Veja bem, eu entendo a necessidade de campanhas e a de Prismata é especialmente para uma coisa: ensinar mecânicas. Mas, para a sua própria sanidade mental, não preste atenção na história. É algo sem pé nem cabeça sobre uma revolução de robôs que acaba em um cliffhanger terrível, pois o restante dos episódios só sai no final de 2018. Os personagens parecem ter sido tirados de alguma história sci-fi inacabada e jogados no mundo de Prismata. Palavras não conseguem mensurar o quão desgastante foi aguentar o “papinho” que acontecia entre as missões. Céus, ainda bem que Prismata não é nada sobre a história e tudo sobre a jogabilidade e mecânicas. Foram elas que praticamente acabaram com as minhas manhãs, tardes, e noites de sono.
Eu tenho dois grandes defeitos que muitas vezes se refletem ao testar um jogo novo: sou teimoso e impaciente. Ao invés de continuar a campanha — que agora me arrependo amargamente de não ter feito — julguei que estava apto o suficiente para já começar uma partida contra bots, que por si só merecem um artigo separado explicando o quão avançados são em questão de táticas, adaptabilidade a jogadas e diferentes metodologias de defesa / ataque. Como um parente que fala “olha, se você pular aí vai se machucar e não diga que não me avisei”, Prismata me encheu de alertas. “Você tem certeza? Você tem certeza? Você tem certeza?”. Tenho, jogo, é só um card game, o que de impossível tem nisso? Joguei tantos nessa vida, que diabos.
As próximas seis horas foram marcadas pelo meu ego sendo amassado, esmagado, triturado, compactado e jogado no lixão mais distante possível. E quando eu digo seis horas, eu digo seis horas ininterruptas. Seis horas onde eu sequer levantei da cadeira (não façam isso pois não faz bem à saúde), onde ao sair do meu quarto fui indagado com “Ah, você acordou? Não? Ah, achei que você estava dormindo”. Eu passei seis horas em completo silêncio, dando cliques no mouse e tentando entender o que acontecia na tela e vendo muitas das minhas críticas ao gênero serem lentamente silenciadas.
Meu incômodo com o design dos card games mais populares originam de três fontes: a profunda dependência de aleatoriedade, o uso de um único tipo de energia / mana para decidir o ritmo de uma partida e a tendência em usarem a “eliminação do oponente” ou “maior pontuação” como fatores determinantes para a vitória. Para mim como jogador é frustrante estar constantemente “capado” em termos de como fazer jogadas de abertura por conta se o meu turno inicial só me dar um ponto de energia, ou porque minhas cartas não podem ser jogadas diretamente nesse turno.
Um exemplo simples é uma partida de Hearthstone, onde minha mão me deu muitas cartas com valores de dois ou três pontos de mana, enquanto o oponente preparava sua defesa. É como brincar de pega-pega, mas você tem que esperar todo mundo terminar de brincar enquanto você olha para a parede. Você pode argumentar que “é do jogo” ou que eu tive “azar” na mão inicial — eu vejo isso como algo muito chato. Ao contrário de usar essa metodologia de “limitação”, Prismata segue um caminho inverso.
Não existe um conceito de aleatoriedade no sentido “tradicional” dos card games no início de uma partida de Prismata. Ao contrário de cada jogador comprar suas cartas, o jogo te dá dez cartas básicas (considerado o starter deck) e oito cartas avançadas que são idênticas tanto para você como para o oponente; essas oito cartas adicionais são as únicas que variam de partida para partida. Além disso, os dois jogadores começam com cinco drones e três engenheiros. Drones são usados para fornecer ouro e os engenheiros, energia. Ou seja, você sabe quais são as possíveis combinações que ele pode fazer e quais as jogadas iniciais, e também possíveis formas de combatê-las.
O que me leva ao segundo ponto da minha crítica sobre a atual formação dos cardgames atuais. Você poderia muito bem apontar e falar, “mas assim não fica fácil de eliminar o oponente?”. Não, pois não existem pontos de vida em Prismata. A ideia não é necessariamente eliminar os oponentes, nem mesmo as unidades, mas sim entender como funciona a produção de suas unidades.
Prismata utiliza cinco elementos para a compra de unidades: Gold, Gaussite, Behemium, Replicasse e Energy. Dessas, apenas Gold e Gaussite são armazenadas por turno. Cada uma dessas unidades requer um tipo de “fábrica” para funcionar – compradas com gold ou energia fornecida pelos drones. Só quando essas fábricas estão construídas e produzindo material que então é possível iniciar a compra de unidades tanto de defesa quanto de ataque.
A cadeia hierárquica de produção -> armazenamento -> gasto não difere muito do que é visto em um jogo de estratégia em tempo real, por exemplo. O “twist” de Prismata nesse quesito acontece justamente no combate.
O aspecto hierárquico também surge entre unidades de defesa e ataque, muitas delas híbridas. Não existe, por exemplo a noção de que uma unidade de ataque certamente tem algum valor de defesa. Uma das minhas unidades preferidas nos turnos iniciais são os Tarsiers, macacos que soltam lasers; com dois turnos até serem produzidos, eles oferecem um ponto de ataque constante, mas não possuem nenhum ponto de defesa e ficam na retaguarda. Como então defendê-los? Bem, você pode usar uma unidade de defesa como uma Energy Matrix ou um muro, usar outra unidade para absorver o dano, ou melhor – ou pior ainda – colocar os drones e os engenheiros como defensores.
Os drones e engenheiros se encaixam em uma categoria especial de unidades que ao não serem usadas naquele turno, funcionam como uma forma de “bloqueio”. A questão fica complexa quando você adiciona o seguinte parâmetro: estaria você disposto a absorver seis pontos de dano em um drone ou em um engenheiro com a ciência de que estará perdendo pontos de produção?
E se você não fizer isso e gastá-los, suas unidades que você tem são capazes de absorver?
E se o oponente, ao invés de eliminar os seus inimigos, for direto para as suas fábricas – ainda mais considerando que é ele que define como o dano causado vai ser distribuído entre as suas cartas?
Você seria capaz de lidar com o fato que não só perdeu a produção de ouro ou de energia, mas também de materiais?
Que tal adicionar mais uma variável, uma unidade com um poder especial que “congela” um alvo e o impede de ser usado nesse turno? Você pode ter o bloqueio que quiser, mas ainda assim o oponente tem essa vantagem. O que fazer então? Ir para essas unidades e não prejudicar a economia dele e arriscar um possível ataque no próximo turno?
Se os últimos parágrafos te deram um nó na garganta, um sentimento de impedimento, de não saber o que fazer, essas foram as minhas seis horas iniciais de Prismata. Tentava uma tática e ela era combatida, tentava outra e era jogada fora antes mesmo de sair do papel. E o pior de tudo é saber que tanto eu como o bot tínhamos as mesmas cartas, e mesmo assim chegamos em conclusões tão vastamente diferentes.
O momento que mudou de vez a minha opinião de Prismata aconteceu em uma partida onde meu oponente decidiu construir o Zemora Voidbringer; com seis turnos para ser construído, ele teria vinte pontos de ataque assim que ele gastasse oito unidades de Gaussite, que é justamente um dos recursos a ser mantido no final de cada turno. O relógio estava contra mim, minhas unidades de ataque não eram fortes o suficiente para ultrapassar as defesas dele — mais dois turnos e ele teria a quantidade necessária de Gaussite para hipoteticamente me derrotar. Ou eu deixava acontecer e tentava restabelecer a minha economia já que os pontos de ataque dele seriam o suficiente para destruir mais da metade das minhas unidades de ataque e ainda boa parte dos meus drones, ou eu investia absolutamente tudo em unidades focadas exclusivamente em ataque e que pudessem ser construídas no máximo em um turno. E assim o fiz.
Em uma investida eu destruí as defesas dele, fui diretamente para as usinas de Gaussite e ainda eliminei partes dos drones. Agora era ele que estava em uma situação complicada; ele teria de investir em fábricas para conseguir usar o Voidbringer nos próximos dois turnos, mas ao fazer isso ele ficaria limitado na quantidade de drones. Outra opção seria gastar o dinheiro em drones para assim estabelecer mais poderosas defesas (e arrastar a partida para três ou quatro turnos), ou tentar a sorte com uma defesa básica na esperança de que eu não fosse me aproveitar da oportunidade.
Creio que ele sabia a resposta que viria, pois no turno seguinte entrariam em campo cinco unidades que tem seu ataque dobrado (de 1 para 2) ao gastar Replicase e as minhas três fábricas – que geram dois Replicase por turno – seriam suficientes para eliminar qualquer defesa rápida criada por ele e dar conta de qualquer drone que ele ousasse construir. Ele concedeu a partida e eu fui vitorioso.
As minhas vias para a vitória poderiam ser tão diversificadas quanto caso Prismata fosse um jogo sobre “eliminar pontos de vida do jogador”, mas todas elas seguem para o mesmo objetivo. Ao não ficar preso em uma visão tão limitadora de condição de vitória, consegui articular uma defesa e uma estrutura logística competente o suficiente para estagnar e, consequentemente, eliminar a cadeia de produção do meu oponente. Sem cartas especiais, sem truques na manga, sem aleatoriedade.
Descrevo essa partida, mas sei que isso ainda é a ponta da ponta do iceberg; certamente alguém mais experiente do que eu poderia analisar o meu replay – que por um acaso é outro ponto excelentíssimo do game – e apontar possíveis jogadas que me permitiriam até mesmo evitar que ele sequer começasse a criar o Voidbringer. Foi só eu dar uma passada no canal do desenvolvedor no Youtube para ver algumas jogadas que eu sequer imaginaria; é a certeza de que ainda tenho muito a aprender em Prismata.
A cereja no topo do bolo? Nenhuma carta é paga. Todas as cartas avançadas adicionais são obtidas ao subir de nível e o jogador só pode gastar o seu suado dinheiro em skins ou outros apetrechos cosméticos. O que, tendo em vista o atual estado do gênero de card games, não poderia me deixar mais contente.
Não é todo dia que eu acordo e digo “Sabe, eu fico feliz que algo existe” ou “que bom que posso jogar uma ou outra partida antes de começar a trabalhar”. Pelas últimas duas semanas, esses foram os pensamentos que permeavam a minha cabeça; que depois do trabalho eu poderia entrar em uma partida casual, treinar contra bots, analisar replays de partidas de jogadores de alto nível diretamente da interface do jogo, ou ler a wiki e anotar possíveis combinações de cartas no caso de elas serem incluídas em uma das minhas partidas.
Prismata vai muito além de ser só para aqueles que querem um card game diferente; é uma aula de como descentralizar a dominação em uma partida ao se focar em logística, e de como aleatoriedade não necessariamente precisa ser algo presente nos card games. Se dependesse de mim, todo mundo seria obrigado a jogá-lo.
Sério, jogue-o. Vale muito, muito a pena.