Eu poderia tentar encaixar Objects in Space (Steam / GOG) em dezenas, centenas de gêneros, mas não faria jus ao fantástico universo e conjunto de sistemas que a Flat Earth games criou. Em sua essência, é um gigantesco e complexo sandbox situado no aglomerado estelar “Apollo” que, por muitos anos, foi cogitado como o futuro da raça humana graças à alta concentração de minério em seus planetas e asteroides. Você é o piloto de uma das naves pioneiras que supostamente ia explorar a região, mas algo de errado aconteceu ao ativar o “jump drive” de hiperespaço e você chegou 50 anos “atrasado” para a “festa”.
No jeitinho bem “humanidade” de fazer as coisas nas coxas, acabou que o sonho de um futuro próspero foi deixado de lado pelos Terráqueos. O portal que ia ligar as Apollo e Sol? Esquece, ele nunca foi completado. Os minérios prometidos? Eram bem menos do que imaginado. Agora a região está dividida entre corporações, um governo instável e piratas. Muitos piratas.
Com uma nave que está cinquenta anos defasada e inapta para voo, um simpático companheiro de viagem — responsável por ter te encontrado após sair do hiperespaço — me explica como as coisas funcionam por lá. Seja um mercador, um caçador de recompensas, realize contratos de transporte para empresas — como transportar gases ou medicamentos — enfim, você é o dono do seu destino. A premissa em si pode ser também atribuída a dezenas de outros jogos — de Elite Dangerous a Eve Online. Porém, os citados carecem o que faz Objects in Space algo especial: a interface.
Gosto de brincar com um amigo que o nosso fascínio por simuladores vem especialmente do quanto gostamos de apertar botões e fazer coisas funcionarem, o que não deixa de ser uma visão redutiva do ato de “simular” algo. Simular vai muito além disso; o ato de apertar botões, realizar sequências de ativação e estudar enormes listas de procedimento me traz o mesmo tipo de satisfação que sinto ao sentar e conseguir realizar um combo complexo em um jogo de luta. Em ambos os casos, eu não estou tentando fazer com que o jogo — ou o simulador — se curve às minhas vontades, mas estou na realidade tentando entrar em harmonia com a proposta, tentando entender o que ele deseja de mim, para que assim possamos realizar grandes feitos.
Pode ser que você não tenha a mesma apreciação que eu tenho por isso; na realidade, eu acredito que não tenha. Passei um pedaço da minha infância em uma ilha, não distante do mundo, mas também não conectado a ele… era uma situação estranha. Sentia que havia algo fora dela, mas nunca algo próximo o suficiente. Os pedaços da minha vida eram partilhados entre assistir Tokusatsus, andar de bicicleta, e especialmente conversar com o meu vizinho, que serviu por muitos anos em um submarino da classe Humaitá S-20. Munido de um motor a diesel, o submarino (felizmente) nunca viu muita ação, mas participou de alguns treinamentos da UNITAS — feitas em conjunto com o exército dos Estados Unidos e outros países latino-americanos. E meu vizinho, então capitão do Humaitá, me contava dessas travessias, e dos dias imersos com os detalhes mais minuciosos. Sonares, radares, propulsão, o barulho dos motores que — muitas vezes — eram ensurdecedores e incômodos. São histórias que me marcaram – e me marcam – até hoje, e busco sempre formas de maneiras de replicá-las na medida do possível.
Foi com muita euforia que eu entrei pela primeira vez na central de comando da minha espaçonave e me deparei com a seguinte imagem:
Está vendo todas essas telas? Cada uma tem alguma importância e você precisa interagir com elas de diversas maneiras e em diferentes momentos. Nada de atalhos no teclado; a Flat Earth Games quer que você se integre à máquina que você controla, que entre em harmonia com ela. Cliquei no botão de “undock” para me desligar da estação a que estava conectado e lentamente ouvi as braçadeiras que prendiam a minha nave serem soltas uma a uma; cada solavanco nesse processo me deixava receoso que a nave ia se despedaçar. Foi como ser transportado para um universo que cruzava o estilo low-tech dos anos iniciais de Battletech com a Nostromo da franquia Alien, sensação que reverbera também nas estações, vestimentas e protagonistas de Objects in Space.
Objects in Space se orgulha em ser incessantemente complexo, e para essa complexidade florescer, ele tem muitos momentos de “downtime”, onde parece que não há nada a “ser feito”, pelo menos no começo. Com o tempo, todavia, você percebe que prestar atenção nos mínimos detalhes da nave é crucial. Por exemplo, ao invés de receber e-mails automaticamente, é preciso ir até o computador de comunicação, ativar o sistema de sincronização, depois ir no computador pessoal e digitar “MAIL” no prompt de comando. Também não existe um visor para o mundo externo — seu único contato com ele é pela tela do mapa que indica a posição das coisas ao seu redor — naves, nebulosas, portos espaciais. Ações têm de ser calculadas, rotas requerem planejamento de antemão caso não queira trombar com asteróides. Para isso você precisa fazer uso de um dos meus aspectos favoritos do jogo — o sistema de identificação de naves, que funciona quase como um sonar.
Aqui vai uma lição rápida se você nunca jogou um jogo de submarinos. Submarinos têm duas maneiras de “enxergar” o que está ao seu redor. A primeira – e mais famosa – é o sonar ativo, um sistema que emite um “ping” de som – uma onda sonora – e processa os “ecos” recebidos, detectando assim o que essa onda de som atinge. A outra maneira de “ver” é através de um sonar passivo – essencialmente um conjunto de microfones que detectam os sons emitidos pelo que quer que seja que está lá fora.
Objects in Space tem uma metodologia similar; toda vez que uma nave ativa um tipo de sensor, ela emite uma onda que é captada pelo sistema de sensores e é então processada pelos sistemas da nave para tentar identificar o objeto. Uma nave inimiga, portanto, pode emitir uma “identidade digital” ao ativar os motores, alterar o curso pelo sistema de RCS (Reaction Control System / controle de sistema de reação), ou — especialmente — ativar as armas.
Por isso que digo que Objects in Space reforça tanto a questão de “harmonização” citada anteriormente; propositalmente ou não, ele evoca uma tremenda sensação de solidão no espaço — o contato com o externo acontece por meio de “blips”, que aparecem e desaparecem dos sensores. Feixes de luz indicam uma nave militar realizando uma varredura no conteúdo da minha carga, ou um possível inimigo? Será que eles poderiam “falsificar” a “identidade digital” para que eles pudessem me pegar de surpresa? O que vejo são somente objetos indeterminados – objetos no espaço – que requerem uma investigação detalhada.
Mas, no fim das contas, eu estou sozinho. Sou eu, minha nave e seu computador. Faço uso dos sensores que tenho a minha disposição, torço para o melhor sempre. Mas, como acontece comigo nessas horas, os músculos enrijecem, a tensão aumenta e eu já me preparo para o pior. Preciso estar em sintonia com a nave, com o que o sensor me fala, como posso reagir perante o perigo.
Essa tensão me trouxe lembranças de um dos meus jogos favoritos de 2016, Duskers. Tanto ele como Objects in Space trabalham muito bem o conceito de que limitar o jogador a um conjunto básico de sensores (ou funcionalidades) o torna mais suscetível a ser pego de surpresa — sejam elas agradáveis ou desagradáveis. Em Duskers, era a ameaça de alienígenas, ou robôs rebeldes dentro de derelitos; em Objects in Space a minha surpresa desagradável chegou depois de seis horas e parcialmente familiarizado com os sistemas da minha nave.
Pouco interessado em continuar a campanha por conta de o jogo estar em acesso antecipado e já ter encontrado uma grande parcela de bugs relacionadas às missões principais, tomei a decisão de levar a vida como um mero transportador de carga. Se você jogou Elite: Dangerous, você sabe como é a vida de um caminhoneiro espacial. Faz um trabalho ali, acolá, mas o saldo nunca fecha positivo no final do mês — o mesmo vale para Objects in Space.
Fui contratado para levar vinte equipamentos médicos para um dos portos do sistema Tega. O pagamento de 300 créditos — um dos mais altos que havia visto até então — fez meus olhos brilharem. Apressado como nunca, defini o curso para a estação e ativei o piloto automático sem perceber que o percurso tinha um campo de asteroides no meio. Resultado? Os 300 créditos foram para o reparo da nave.
Irritado comigo mesmo, voltei para o setor Leo na expectativa de encontrar um trabalho mais rentável, e foi então que meus sensores detectaram um pod abandonado no espaço. Não sei se você tem experiência com EVE: Online, mas se alguma coisa que aquele jogo me ensinou, foi que caixas como essas são armadilhas de piratas. Ainda assim, não ouvi o meu “eu” interior e fui direto para ver qual era o conteúdo. Assim que acoplei no pod recebi uma mensagem; era uma outra nave dizendo que o conteúdo era dele, pois ele “viu primeiro”.
Bati boca com ele, e disse que não, que aquilo não dava o direito. Antes mesmo de enviar a segunda mensagem o computador me alertou do disparo de um torpedo em minha direção. Dane-se qualquer diplomacia; ativei os motores, bati em retirada e liberei iscas para que o torpedo não me atingisse.
Aqui está a parte fantástica de qualquer jogo com um combate inspirado por submarinos: você não tem como identificar de fato se você atingiu o inimigo ou não. Quando o torpedo deixou de me seguir, enganado por uma das minhas iscas, eu instantaneamente entrei em modo silencioso para diminuir ao máximo a minha “assinatura digital”. Desliguei os principais componentes da nave e a tornei mais “furtiva” possível; o preço a se pagar por isso é que a central de comunicações e os meus próprios torpedos não podiam ser ativados. De certa forma, estava à deriva.
O que não percebi é que por conta de ter entrado em modo “furtivo”, os meus sensores não captavam mais a posição da nave inimiga e não atualizavam o mapa. Minha única referência tinha mais de cinco minutos de idade. Até onde eu podia saber, ele poderia ainda estar tentando me encontrar, ter fugido, ou ter sido destruído por alguma das autoridades do setor. Para piorar, o modo silencioso também desativa o gerador de energia e a bateria instalada na minha nave (que era a mais barata que achei) descarregava assustadoramente rápido. A minha chance era reativar os sensores, esperar a bateria carregar, ativar o motor o suficiente para entrar dentro de uma nebulosa — que iria esconder os meus sinais — e torcer para não ser explodido.
5…
4…
3…
2…
1…
Os reatores voltaram à vida. Meu mapa ainda não mostrava nenhuma nave no radar. “Estou a salvo”, pensei. Era só trafegar até um dos portos e — outro alerta de torpedo disparado. Estava sem opções; minhas iscas podem não funcionar, meu torpedo vai gastar energia demais, e eu não tenho noção de onde a nave inimiga está.
Tomei a decisão drástica de selecionar um setor aleatório da galáxia e ativar o jump drive. Corri para a sala de gerenciamento de módulos (bateria, sensores de comunicação, etc) e desativei todos os componentes não-essenciais da nave, e isso inclui um sistema balístico que podia destruir o torpedo antes dele me atingir.
O impacto estimado do torpedo era de 30 segundos, o do meu drive ativar e calcular a rota, 35. Arrisquei, fechei os olhos e torci para que a ideia desse certo. Os apitos de alerta ficavam mais altos na medida em que o torpedo se aproximava, e estavam ensurdecedores nos momentos finais.
Um alerta de explosão e uma chacoalhada da minha nave foi o sinal de que o torpedo havia me atingido, destruindo parte do sistema de comunicação e armamentos, ao mesmo tempo em que a luz do jump drive acendeu. Apertei o botão, vi todas as luzes da minha nave apagarem e religarem.
Estava em outro sistema solar, e livre do perigo. O custo de reparos? Mais de 2000 créditos e dois componentes que precisam ser trocados. Quando irei trocá-los eu ainda não sei; as minhas aventuras de caminhoneiro espacial não acabaram por aqui, mas isso vai ser assunto para outro texto.
Foram seis horas de “harmonização” entre mim e a minha espaçonave, e provavelmente mais seis horas (ou até mais) até que os “blips” e “blops”, as ameaças virem algo natural para mim. Meus ombros agora relaxavam, e eu estava com um misto de alívio e felicidade estampado na cara.
Tal reação é incomum, mas não inesperada. Pois sei que existem pouquíssimos jogos que preenchem lacunas extremamente específicas do meu interesse — usabilidade, mecânicas, ambientação, situações de pavor e uma curva de aprendizado um pouco assustadora — e o Objects in Space da Flat Earth Games, mesmo que ainda não completo, é capaz disso. Mesmo em fase de desenvolvimento, ele jé se junta ao “Hall de jogos que eu quero guardar na memória” ao lado de Flight Simulator, Dangerous Waters, Silent Hunter, Opus Magnum, dentre outros. É de nicho, e requer um investimento considerável de tempo até que você aprenda tudo sobre ele, mas é algo especial, e diferente do que qualquer coisa de 2018.