Em uma conversa recente, eu e amigos falávamos do filme “Folhas de Outono”. Um deles comentou de uma cena em que o protagonista tirava a ferrugem de um objeto. “É uma roda de trem”, corrigi. Não sei se me orgulho de saber o que era — eu investi anos da minha vida em trens sem nenhum propósito definido. Da mesma forma, jogar “Nightingale” (Steam) no PC, e o quão forte é a minha opinião sobre eles. Escrevo isso para estabelecer de antemão que, quando eu passei da área de tutorial do jogo da Inflexion Games, eu respirei de alívio ao ver que ele não era tão como os outros.
Da primeira leva de zumbis que começou a explodir no cenário independente com “Project Zomboid” e “DayZ” até os gigantescos dinossauros de “Ark: Survival Evolved”, a maioria dos jogos de sobrevivência até então seguiam um loop bem similar. Vá até ali, colete recursos, não morra de fome nos primeiros cinco minutos, comece a construir uma casa, explore, expanda, canse e pare.
Havia poucos que quebravam a fórmula: Conan Exiles trazia NPCs e quests, Valheim foi um imenso propulsor do modo criativo após Minecraft, e Subnautica mostrou como unificar elementos de história em um jogo de sobrevivência. Em muitas esferas “Nightingale” bebe diretamente dessas fontes para estabelecer o seu universo.
A cidade de Nightingale, um suposto paraíso de revolução tecnológica e social, teve seu contato com um universo formado por reinos em diferentes planos, cortado por um estranho evento chamado “The Pale”. Você, no papel de um “Realmwalker” – aquele que é capaz de navegar entre reinos –, acaba perdido em um desses mundos e agora precisa encontrar uma maneira de ativar os portais e voltar para a cidade.
A trama funciona muito bem para a ambientação semi “steampunk” com um forte toque da era vitoriana de “Nightingale”. O jogo tem um senso forte de pertencimento, em que você se sente de fato em um mundo alheio e externo ao que você conhece.
Noites em florestas são iluminadas por duas luas, seres fantásticos aparecem do nada para te ajudar ou erradicar a sua região. Portais te conectam a outros reinos que, via um sistema de uso de cartas, podem variar em tamanho, forma, fauna e flora. Se o seu tamanho de 60GB assusta, ele faz jus e entrega uma estonteante variedade de cenários que são marcantes desde o momento em que você põe os pés neles. Cenas deslumbrantes, estruturas com arquitetura singular que convidam e quase exigem que você as explore mais de perto. Mas antes de chegar nesse ponto você tem que “sofrer” pelo tutorial.
Embora condizente em termos narrativos e já muito mais refinado do que quando ele deu as caras no Steam Early Access, o tutorial de “Nightingale” mostra muito bem como debaixo de toda essa roupagem vitoriana ainda existe um jogo de sobrevivência que tem muito das suas decisões de design voltadas para o passado.
Do que eu chamo de “nova leva de jogos de sobrevivência” — encabeçado por “Palworld”, “Enshrouded” e “Nightingale” — ele é o que mais se assemelha aos títulos que comentei no começo desta matéria. Dezenas de tipos de recursos, equipamento que possui níveis que nem sempre fazem sentido, uma necessidade quase constante de se alimentar e uma dose extra de planejamento caso você decida se aventurar pouco além da sua zona de conforto.
Eu não me importo muito com esses sistemas, mas a forma que eles são apresentados no tutorial — como se fossem algo “inédito” e fazendo você gastar preciosas horas na companhia de um personagem que aos poucos vai te contando a razão da cidade de Nightingale ser impossível de acessar — deixou um gosto amargo na minha boca. Entendo a necessidade de a Inflexion Games já colocar a narrativa na cara do jogador e depois se preocupar em expandi-la. Mas, se você espera que “Nightingale” te dê uma experiência narrativa de bandeja, é bom que você aguarde até o fim do período de Early Access para isso.
Decidido a não largar mão do jogo já no tutorial (além do que, eu precisava fazer uma matéria sobre ele), “Nightingale” pouco a pouco mostrou como ele se destaca tanto comparado aos outros jogos de sobrevivência.
Depois de ter acesso ao meu reino pessoal, e por consequência, a minha base, o momento em que eu definitivamente me conectei com o jogo foi ao abrir um portal para um novo reino no deserto. Eu estava em busca de materiais específicos para construir um novo tipo de estrutura e eles só eram encontrados nesse bioma.
Assim que o adentrei avistei uma estrutura na distância que parecia algo como um templo. “Hmm, eu não tinha visto isso antes”. Parei para fazer uma pequena cabana “só por precaução”, estoquei alimentos e curativos. Adentrei a estrutura e já dei de cara com dois novos monstros. Os despachei rapidamente com a minha besta, e lentamente desci as escadas que não refletiam um pingo de luz.
Ao chegar no fim me deparei com um ser que posso apenas descrever como um gênio de ouro — parte mecânico, parte controlado por espíritos. Queria ter tirado uma foto dele antes de ser brutalmente morto, mas não deu tempo. Atrás dele havia um tesouro. Infelizmente não consegui descobrir o que era, já que eu bati em retirada do bioma, pegando apenas o que me era necessário e voltando para o meu reino onde está a minha base.
Essa é só uma das diferentes situações que você vai ver em “Nightingale”. Me deparei com pequenos quebra-cabeças que me deram acesso a novos itens de construção, equipamentos raros ou escrituras que exploram mais a fundo o universo da Inflexion Games. Nenhum deles tem a profundidade de um jogo focado em quebra cabeças ou vai requerer muito da sua atenção, mas é o suficiente para quebrar a monotonia que o gênero tem até então.
Para mim o sistema de cartas ainda é a melhor ideia que a Inflexion implementou. Criar portais para outros reinos gerados proceduralmente com cartas e modificadores abre uma combinação infinita, e mesmo após 30h de jogo eu senti que todos os locais que visitei tinham a sua própria identidade. Mesmo compartilhando alguns traços principais, você sempre vai encontrar dois ou três tipos de inimigos específicos em desertos ou florestas, e vejo essa decisão como um bom elemento para ao menos dar contexto para o jogador e prepará-lo para situações específicas
O que Nightingale não prepara o jogador para são os seus outros sistemas que ainda estão crus.
Os materiais específicos que citei acima, por exemplo, sequer são explicados pelo jogo. Eu notei a existência deles quando comecei a expandir a minha base e, depois de fabricar um tipo de roupa, notar propriedades e cores distintas. Em nenhum ponto do tutorial isso foi sequer mencionado — uma oportunidade perdida, que deveria ser mostrada ao invés de demonstrar alimentação e ciclo de dia e noite como algo “novo”. Não seria um grande problema se o Codex de “Nightingale” não fosse uma absoluta zona. Dezenas de entradas sem ícones, com descrição confusa e, para um jogo que já tem camadas demais, não deveria estar desse jeito.
Eu sei, Early Access, mas não é desculpa para mais da metade dos materiais do jogo não terem ícones próprios. A última coisa que eu preciso em um jogo de sobrevivência é ficar gerenciando mais do que o necessário o meu inventário porque dois tipos de pedras têm o mesmo ícone e dão resultados diferentes durante a construção.
Um dos pontos que mais me incomoda, no entanto, é o sistema de essência. Resumindo-o, além de encontrar novas “receitas” em mini dungeons, quebra-cabeças ou templos, você pode comprá-las de um vendedor. A essência pode ser retirada de itens do inventário ou encontrada no mapa.
Todavia, na atual versão de “Nightingale”, a presença dela pelos biomas é tão pífia que é mais fácil converter itens no seu inventário. Nada mais gostoso do que caçar animais por horas, transformar em couro e converter em essência só para ter acesso a uma mesa de fabricação avançada, não é mesmo? Mais microgerenciamento é tudo o que um jogo de sobrevivência precisa.
Quanto mais você avança no jogo, mais essência rara é requerida, e isso vai começar a comer o seu tempo com atividades monótonas, devido à ausência de outras formas mais envolvidas de obter essência. Dá para notar que a Influxion quer incentivar exploração e descobrimento de templos para obter essência rara, mas não encontrou o ponto de equilíbrio ou mesmo uma melhor integração entre esses sistemas.
Por que eu iria gastar o meu tempo em um templo, com a chance de perder meu equipamento, se eu posso fazer grind? Este é um dos pontos de maior desconexão entre a proposta de “Nightingale” e sua implementação – um que torço que encontre sentido rápido.
Outros pormenores são meros inconvenientes. Por exemplo, o combate ainda requer muita atenção na parte da IA. A Inflexion Games já reduziu o custo de armas de alta qualidade (de absurdos 1300 pontos de essência para 100), mas isso é só meio caminho andado. Com exceção de inimigos maiores como o robô, o restante te segue e te ataca como zumbis. Eu não acredito que a desenvolvedora tenha a intenção de torná-lo complexo, mas dá para notar que falta refinamento.
Cito o mesmo para o atual sistema de “companheiros” – NPCs que você pode recrutar para ajudarem na coleta de materiais e no combate. Eles chegam a ser mais robóticos do que os inimigos. Eles ignoram quaisquer regras e coletam ou atacam indiscriminadamente. Lembro muito bem de um dado momento em que o NPC que recrutei quebrou do nada uma pedra, e eu soltei “Mas meu filho, por que você está quebrando uma pedra? Já temos mais que o suficiente!”. Sei que ele não ia me ouvir e, como não tenho outras pessoas para jogar o modo coop que tem suporte até quatro pessoas, o robozinho que me acompanha é o melhor que tenho por ora.
Acredito que as minhas 30h de jogo dizem que eu estou mais do que disposto a engolir problemas de jogos em Early Access. A premissa de “Nightingale” em si é fantástica e tudo é questão de tempo para se ajustar, exceto um elemento: a necessidade de conectividade online.
De todos os defeitos que “Nightingale” apresentou – todos muitos compreensíveis, dado o seu atual estágio de desenvolvimento – a necessidade de estar online até para jogar em modo solo é um soco no estômago. A Influxion Games não só demorou para solucionar o fluxo gigantesco de pessoas nas primeiras semanas de Early Access, como não tinha servidores na América do Sul.
Eu fiquei impedido de jogar por duas semanas por conta de constantes manutenções, quedas no servidor, ou um ping tão alto que o tempo entre cortar uma árvore e vê-la cair era suficiente para preparar um cafezinho. Não, não era problema da minha internet.
A desenvolvedora já explicou que tinha uma visão específica para o jogo, e como ele “precisava” ser online para “funcionar”. No momento da publicação desta matéria, a Influxion já deu para trás e prometeu um modo offline a médio-longo prazo.
Ou seja, se você pegar “Nightingale” pelo menos durante o primeiro semestre deste ano, é com a ciência de que você às vezes não vai conseguir conectar no servidor — e no momento teleportar para um novo bioma equivale a esperar até dois minutos por uma resposta do servidor. Isso não diminuiu a minha fome por explorar o mundo de “Nightingale”, mas é impossível não citar esse fato que pode – e provavelmente vai – afetar tantos por um bom tempo ainda.
Como eu sempre digo com jogos em Early Access, a minha história em “Nightingale” está muito longe de terminar. Essas 30h de jogo vão se tornar 100 à medida que a Inflexion Games adicionar mais conteúdo e refinar sistemas. Quero muito ver como ela vai integrar os diferentes reinos com a cidade de Nightingale – que de fato vai ser acessível e trará todo um ambiente urbano. Quero ver mais tipos de fauna, flora, novos templos, novas edificações, quero resolver mais quebra-cabeças e deixar a minha pequena marca nesse gigantesco mundo.
Dos três jogos de sobrevivência que explodiram no começo de 2024, “Nightingale” é de longe o com mais problemas, mas é o que me faz sonhar mais com as possibilidades. Estou tão carente de jogos com uma pegada da era vitoriana com elementos fantasiosos que ele se encaixa perfeitamente nesse vazio. Estou com os dedos cruzados para que, da próxima vez que eu escrever sobre ele, seja para falar das melhorias e dos novos mundos que eu explorei e não sobre problemas nos servidores.