Cometi um erro quando iniciei a versão beta de Iron Harvest (Steam): achar que a King Art ia apenas pegar o sistema tático e de conquista territorial — até então “marca registrada” da Relic em Company of Heroes — e construir um jogo em cima disso. Parte disso é até verdade no modo multiplayer, mas é mais ou menos aí que as semelhanças param.
Oriundo de um Kickstarter realizado em março de 2018 e baseado no universo de “1920+” criado pelo artista Jakub Różalski, Iron Harvest visa contar uma história alternativa onde a humanidade abraçou o uso de versões rudimentares de Mechs no pós-primeira guerra mundial, mas as tensões entre as potências da região continuam altas. Estas potências são a Saxônia, os Rusviéticos e Polânia.
Como todo bom jogo de estratégia, cada uma dessas facções tem seus prós e contras muito bem delineados. A versão beta para a imprensa, concedida pela Deep Silver, nos permitiu jogar não só o começo da campanha da Polânia — disponível para todos no beta aberto — como as três primeiras missões da Saxônia. A campanha da Polânia, como imaginei, usa as suas primeiras missões para ensinar as mecânicas base de Iron Harvest: conquista territorial, movimentação de unidades, uso de táticas e — acima de tudo — tomar bastante cuidado com o uso das suas tropas.
Campanhas de jogos de estratégia tendem a seguir o que eu chamo, ou sem dúvidas já chamei em algum ponto aqui no site, de “maldição do base building”. Não importa se você está em um planeta gélido ou se você está na linha de frente de uma imensa batalha; caso não haja o mínimo de construção de bases a comunidade vê isso como uma “falha”. O que para mim é bizarro, pois é das mesmas bocas que saem frases como “falta originalidade, faltam objetivos interessantes, falta mais ação, falta isso ou aquilo”.
A realidade é que quando você adiciona o componente de construções de base em uma missão você dá uma rede de segurança para o jogador que nem sempre precisa estar lá. Transforma uma missão que era para ser dinâmica no mais doloroso “turtling” (ato de lentamente construir suas defesas e depois partir para o ataque). Ora, se eu quiser isso eu abro Age of Empires II Definitive Edition, pois até os Command & Conquer originais tinham mais variedade em como você começava uma missão — apesar de que os problemas deles estão em outras áreas e melhor descritos na minha análise sobre a versão Remastered.
Por isso que a maioria das missões mais memoráveis que tenho de jogos de estratégia envolvem um grupo pequeno de soldados ou alguma outra forma de restringir o poder que tenho em campo. Vide o começo da campanha de Starcraft 1 onde você tem um tempo limite para se preparar contra uma invasão zerg, ou o mais “detestado” dos Dawn of War 2, Retribution, que dá preferência a um esquadrão de Space Marines para tomar áreas-chave do mapa estratégico ao invés de usar uma campanha linear.
Descrevo isso tudo acima para explicar que Iron Harvest não hesita em cortar linhas de suprimento para o jogador. A Polânia, por exemplo, é uma das nações mais prejudicadas no pós-guerra e a sua campanha reflete isso. Seja na missão inicial, onde você aprende os controles básicos, até a missão final do beta, que envolve controlar um trem e retomar o controle de uma estação dominada por tropas da Saxônia.
A cartada mestre da King Art é permitir com que todo soldado seja “modular”, por assim dizer. Ao invés de um sistema de melhorias direto (além do soldado se tornar um veterano quanto mais tempo e mais ações efetua em campo), Iron Harvest deixa você alterar a classe deles ao pegar armas que os seus inimigos deixaram para trás.
Muitos jogos já flertaram com tal sistema; o próprio Company of Heroes trazia um grau de modularidade, e a franquia Men of War — a qual creio que irá continuar em um “nicho” pelo resto de sua existência — é construída com base nisso.
No que diz respeito a Iron Harvest, a consequência são missões onde você se sente tenso e motivado para seguir em frente. Pegando como exemplo a missão de retomar a estação de trem, eu tinha de cruzar uma ponte para chegar ao outro lado do mapa, onde ficava a estação, e — se quisesse — completar um objetivo secundário de obter mechs para aumentar as minhas chances de sucesso.
“Ok, isso soa como uma boa ideia, mas o que será que tem naquela floresta? E se eu avançar com as tropas e encontrar um grupo de inimigos? Estarão eles armados com morteiros, rifles, lança-chamas ou metralhadoras?” Eu sabia que enviar um grupo de reconhecimento estava fora de cogitação; o combate de Iron Harvest é letal, e cair em uma armadilha dessas é garantia que eu ia ter uma tropa a menos para a batalha final.
Para dar uma “trégua” para o jogador, toda missão possui pequenos kits de cura para evitar que você viva na base do “salvar / carregar” os pontos de salvamento automático. Em contrapartida, as missões duram muito mais tempo do que um jogo de estratégia “tradicional”, com 50 a 60 minutos sendo a média na dificuldade “hard”. Eu acabava cansado de tanto analisar o mapa e traçar rotas, mas a satisfação de ver um plano dar certo é inigualável.
Quando foi hora de testar as missões da Saxônia, a King Art mudou o tom de uma maneira muito inesperada. Tais missões compõem o terceiro ato da campanha, sendo o segundo ato formado pelos Rusviéticos, aos quais não tive acesso fora do modo multiplayer (mais sobre ele em breve).
Enquanto as missões da Polânia se restringiam a demonstrar as ações de um grupo de resistência, a Saxônia desfilava com seus mechs imensos e soldados com armaduras capazes de se transformar em mini-artilharias como se fosse um carnaval fora de época na Europa. “Ah, agora as missões vão ficar mais fáceis com todo esse poderio bélico”, pensei. Foi uma baita de uma pegadinha.
A Saxônia pode ter os “melhores” mechs e as “melhores” infantarias, mas um ataque em massa em território Rusviético — que é a temática das três missões — significa ir bater de frente contra a linha de defesa inimiga. Não há mech ou soldado que aguente tanto atrito sem acabar danificado ou mortalmente ferido. Nestas missões a King Art abre um pequeno espaço para que o jogador construa bases; todavia, as áreas são tão pequenas que não há espaço suficiente para ter todas as edificações. É melhor pensar nessas “bases” mais como postos avançados para você recuar quando suas tropas sofrerem muitas baixas ou seus mechs estiverem muito danificados.
A meu ver foi outra jogada fantástica, é como se Iron Harvest falasse para mim: “Estamos te dando essa rede de segurança, mas não dependa dela, você ainda vai ter que avançar o quanto antes”. Tinha certeza disso; afinal, era uma investida em três frentes. Se os meus aliados caíssem, os soldados inimigos viriam na minha direção, e era a última coisa que eu queria.
Cada milímetro das três missões foi conquistado na base do suor e raiva. Perdi unidades à toa, vi um dos meus mechs mais poderosos — similar a um AT-AT com a capacidade de disparar morteiros a longa distância — ser trucidado por um grupo de infantaria anti-mechs, tentei resgatar meus aliados em um objetivo secundário, mas foi em vão. A cinemática conclui com um dos maiores “cliffhangers” que eu poderia pedir em um beta. Menções de uma fábrica secreta onde estariam Mechs ainda mais poderosos, a noção que parte da missões — e perdas das Saxônia nos conflitos — foram em vão, e uma espécie de sabotagem ou organização secreta por trás disso tudo. Céus, por que eu não posso saber a história agora?
Iron Harvest – e o multiplayer?
Se alguns jogadores preferem a história, outros sem dúvidas têm sua atenção dedicada ao que vem sido a atração da pré-temporada e do beta fechado iniciado no começo do ano: o modo multiplayer de Iron Harvest.
É neste ponto que a King Art pega a maior inspiração de Company of Heroes: cada mapa é dividido em setores com diferentes recursos necessários para abastecer a sua base, recrutar tropas ou construir mechs, além de três áreas de captura. Quem dominar por maior tempo as áreas de captura até que a pontuação inimiga esgote é o vencedor da partida.
Não vou adentrar muito a fundo neste tema, já que a pré-temporada ainda está em andamento e a King Art continua a atualizar este modo por questões de balanceamento. Digo, porém, que de todos os jogos de estratégia que joguei em recente memória, as três facções disponíveis e seus respectivos heróis — que tanto aparecem na campanha como podem ser usados no modo multiplayer — estão mais polidos do que eu esperava. O que não está polido é a área onde King Art mais tentou se inspirar em Company of Heroes: o sistema de cover.
Quando disse no começo do texto que parte da inspiração de Company of Heroes era verdade no multiplayer, me referia a como as partidas se desenrolam. É o tradicional vai e vem de conquista de pontos, saber quando avançar, quando recuar e — tal como na campanha — evitar perdas dolorosas de tropas veteranas ou de valiosos Mechs (acredite, construir um custa muito caro). Entretanto, isso é muito difícil de ser feito no momento por conta de um peculiar sistema de cover usado pela King Art. Ao invés de você ter um controle direto sobre onde as unidades vão buscar proteção, sejam elas muretas, cercas ou sacos de areia, o ícone de cover te dá uma visão “geral” de onde as suas tropas podem buscar proteção.
Minha teoria é que a King Art tenta encontrar um sistema que diminua o micro gerenciamento tão presente em Company of Heroes, mas a implementação atual acaba fazendo o contrário. Perdi mais tropas tentando entender para onde diabos elas estavam indo ou forçando-as a entrar em uma proteção que estava do lado delas do que avançando contra o inimigo. Com o lançamento previsto para 1º de setembro, ver que isto ainda não foi corrigido é preocupante.
Isso vem seguido de um outro grande problema, que é a introdução de combate corpo a corpo. Mais uma vez, uma ideia que funciona muito bem no papel — e jogos como Ancestors Legacy apontam a viabilidade dessa mecânica — mas tal combate em Iron Harvest é quase que “automático”; apesar de existir um botão ativar ou desativar, no momento não parece fazer nada a não ser me trazer frustração.
Pode ser que isso tudo seja um problema do beta aberto e que a King Art esteja buscando outras soluções em uma versão interna para ser publicada no lançamento. Ao menos é o que vem na minha cabeça, para não lidar com a realidade de que Iron Harvest acabe saindo assim, o que seria uma grande pena para a comunidade multiplayer.
Do que vi das duas campanhas, eu mantenho as minhas esperanças de que Iron Harvest seja um ótimo jogo de estratégia em tempo real. Não quero dizer que 2020 foi um tempo de “vacas magras” neste quesito, já que tivemos Command & Conquer Remastered e um suporte bem robusto da equipe da Microsoft em Age of Empires II: Definitive Edition, mas eu não sou de viver no passado. E, se um jogo de estratégia pode apontar para um futuro melhor, pode ter certeza que eu vou investir minhas expectativas nele. E, por ora, eu invisto em Iron Harvest.