“Obstáculos grandes previnem ataques a longa distância, mas não protegem você de ver uma bunda”. Ok, Inkulinati (Steam / Game Pass) já começou com um tutorial um tanto quanto estranho, mas eu decidi seguir em frente pois estava muito curioso sobre o jogo de estratégia em turnos com criaturas medievais. Mal sabia eu que tinha visto apenas a ponta do iceberg e que as coisas ainda iam melhorar muito — e também piorar.
Eu vinha acompanhando o título da Yaza Games desde que ele deu as caras no Twitter em 2019. Sua estética, que se assemelha a ilustrações medievais de vários tipos de seres – de coelhos, raposas a demônios – foi o primeiro indicativo de que algo bom vinha por aí. Quando eu descobri então que você podia soltar um pum na cara do inimigo para deixá-lo atordoado e usar ataques e táticas inusitadas, era como ver uma das animações de Monty Python ganhar vida.
Depois da maravilhosa frase do tutorial, eu continuei a minha pequena jornada de aprendizado de como jogar Inkulinati e, quanto mais me aprofundava, mais eu via que a Yaza Games tinha um jogo com um potencial imenso em mãos.
Só em termos de conteúdo, que já é um elemento que eu não gosto de levar em conta quando falo de um jogo, ele é assustadoramente variado em termos de unidades. Se fosse um jogo de estratégia da Segunda Guerra Mundial, eu nem me importaria de citar, mas aqui é essencial para você compreender a bela sacada da Yaza Games.
Em suma você tem três tipos de unidades “base”: arqueiros, lanceiros e cavaleiros. Ao começar uma partida, cada um desses pode ser escolhido entre coelhos, raposas e cachorros. Já neste ponto ele propõe uma questão muito boa: qual vai ser o melhor para a sua run? Acontece que os animais possuem diferentes habilidades! Cachorros não podem ser empurrados por outros inimigos caso rezem, coelhos são mais letais com arcos, e raposas possuem uma distância mais longa. E, como mencionei antes, eu estava vendo apenas a ponta do iceberg.
Você também precisa escolher o seu “Tiny Inkulinati”! Basicamente o comandante das suas tropas, que possui habilidades especiais e diferentes atributos passivos. Para minha primeira campanha eu fui com Sir Miller.
A tal campanha, moldada nos mesmos pilares de “Slay the Spire” e afins – o que foi uma surpresa para mim, já que eu esperava algo mais próximo de “Darkest Dungeon” –, leva você e seus soldadinhos por uma série de batalhas que podem ou não envolver outro comandante. As coisas só continuaram a ficar mais e mais interessantes.
Os campos de batalha de “Inkulinati” são nada mais, nada menos do que sensacionais para quem já está acostumado com o gênero de estratégia. Embora usem um plano “2D”, você tem a oportunidade de usar uma imensa variedade de ataques — como empurrar o inimigo para que ele caia e morra, usar lanças para atacar inimigos em andares superiores ou inferiores, criar barreiras para isolar um inimigo e eliminá-lo com eficácia. E, é claro, mostrar a bunda e soltar um pum para atordoá-los.
A IA não perde tempo e usa as mesmas ferramentas que você; ou seja, se você se preocupa com posicionamento das unidades em jogos “tradicionais”, pode se preparar para se preocupar em dobro em Inkulinati.
Outra decisão de design da Yaza é a remoção quase completa de um sistema de RNG em favor de um sistema de “roleta”. Basicamente, ao decidir atacar um inimigo, uma barra com um pequeno quadrado aparecerá do lado do personagem atacante, e você terá que clicar com o mouse para decidir o valor do dano. Quanto maior a distância ou mais perigoso o ataque, mais rápido o quadrado que define o valor do dano irá se movimentar.
Por mais que eu goste de ambos os sistemas, há de se notar uma certa dissonância entre eles. Por um lado, a Yaza quer que você aprenda a ferro e fogo campos de batalha que fogem do tradicional, e por outro ele usa um sistema de cálculo de dano simplório. Esta é uma barreira enorme que vai ser difícil de equilibrar à medida que o jogo começa a receber mais e mais unidades.
Se as unidades que eu mencionei no começo já deixaram você tonto de tantas alternativas, agora imagine ter também outros seres medievais que podem explodir, ou gatos-bispos que curam seus aliados, mas caso sejam feridos clamam o atacante de “herege”, reduzindo a sua defesa? Eu sequer vi todas as unidades que estão presentes na versão de acesso antecipado e eu já fico paralisado.
A Yaza está apostando muito na disposição da maioria dos jogadores para apreciar a “tentativa e erro” da sua estrutura, mas para isso dar certo, ela vai ter que investir um pouco mais em tutoriais. Eu mesmo fiquei confuso sobre a utilização de certas habilidades, ou até se as mesmas estavam funcionando ou não. Afinal, jogo em acesso antecipado, tudo é possível. Uma hora a habilidade pode funcionar, outra hora não e por aí vai.
Mas o que realmente me impediu de continuar a jogar mais de Inkulinati são as típicas arestas pontiagudas que estão presentes em um jogo desse calibre, com essa variedade, e ainda em acesso antecipado. Mais especificamente os modificadores de batalha e o gigantesco desequilíbrio entre certos tipos de unidades.
Modificadores de batalha são meio que um “incentivo” para que você não fique parado ou espere os inimigos virem até você. Cada turno é chamado de “capítulo”; assim, se no menu de início de batalha há uma imagem de fogo no capítulo 5, significa que o mapa inteiro começará a pegar fogo e causar dano crítico a todas as unidades presentes. Outras vezes uma nuvem tóxica pode surgir e envenenar tanto os seus soldados quanto o seu próprio comandante e não há como removê-la, nem se você mudá-la de lugar.
Eu gosto quando jogos te dão um belo empurrãozinho para você não ficar na defesa – vide a minha “agonia” em ver tantos títulos de estratégia em turnos abusarem do sistema de “overwatch” popularizado por XCOM (2013). Mas o que Inkulinati está fazendo é um pouco demais, ainda mais com tantas variáveis, como móveis pequenos e grandes que bloqueiam o campo de visão, e uma quantidade já alta de unidades.
Já em termos de desbalanceamento de unidades, o problema é bem mais complexo, como sempre. É um misto dos campos de batalha que estão presentes no jogo com unidades que possuem uma distância imensa. A unidade que me deu mais trabalho foram os burros que podiam dar uma peidada na sua cara (por favor, contenha o riso, que este é um artigo extremamente sério) com uma distância ridícula de alta e com um cooldown minúsculo.
Em uma das partidas que tive contra Sir Godfrey, outro comandante do game, ele invocou dois burros e meus soldados não aguentavam tomar tanto peido na cara. A partida acabou com o mapa em chamas, meu comandante morrendo queimado e eu simplesmente incapaz de mover unidades pois elas estavam atordoadas.
Esse é o exemplo mais crítico, mas há outros menores, como demônios que explodem — e você raramente vai estar munido de unidades com imunidade explosiva. Às vezes o próprio jogo se contradiz e te força a bater em retirada para defender seu comandante caso não queira que ele morra por um show de explosões mais poderosas que os fogos de ano novo em Copacabana.
Quando tais situações começaram a ficar mais e mais frequentes com o desbloqueio de mais unidades e mais runs, os momentos de risada foram trocados por momentos de frustração. De falar “Ah para mim já chega por hoje”, ou “Ah se eu pudesse editar os arquivos para já corrigir de uma vez e não ficar passando dor de cabeça”. Minha motivação foi caindo, caindo, até o ponto em que eu olhava para Inkulinati e pensava “Quer saber? Vou esperar a próxima atualização.”. Minha paciência tinha esgotado, e a minha lista de jogos de estratégia em turnos é muito maior do que qualquer pessoa pode imaginar.
Meu intuito com essa matéria não é dissuadir ninguém de pegar Inkulinati; se algo, ele já se provou como um dos jogos de estratégia mais recheado de mecânicas únicas. E, como eu apontei muito bem no começo do texto, o potencial para ele crescer e ficar ainda mais atraente para fãs do gênero é quase imensurável.
Essas arestas vão, cedo ou tarde, ser aparadas e eu vou voltar para Inkulinati. Vou peidar na cara dos meus oponentes, chamá-los de hereges e causar o caos caso eu consiga aprender a usar direito os objetos no cenário para criar armadilhas ainda mais eficazes. Sinto que isso pode ocorrer mais cedo do que eu penso, já que durante a escrita desse artigo eu já soltei tanta risadinha lembrando das situações inusitadas em que fui colocado que eu quase dei uma parada para começar outra “run”. Afinal, qual outro jogo deixa você peidar na cara do inimigo? Ou usar uma ilustração bizarra da era medieval que não é nada mais do que um demônio composto por um rabo e um braço que segura um machado?
Essa é a minha esperança para Inkulinati, e é por isso que eu não estou nem um pouco disposto a abandoná-lo tão cedo. Podem ter certeza que vou falar mais dele por aqui.