O que aconteceria com o mundo dos shooters se System Shock tivesse se tornado o ponto de referência em meados dos anos 90, ao invés da maioria dos desenvolvedores seguir a linha “Doom” e adjacentes (Duke Nukem, Blood), e posteriormente mudar para o exaustivo cenário da segunda guerra nos anos 2000 com raros jogos incluindo elementos narrativos pesados como “Half-Life”? Creio eu que nós teríamos “Hyperviolent” (Steam) muito antes do que em 2023, para o bem ou para o mal.
Por mais que eu ame “System Shock” e esteja bastante esperançoso para com o seu remake, convenhamos que ele não é um shooter que se adequa os padrões do período e, mesmo com uma versão melhorada disponível no Steam, ainda está longe do que a maioria espera do gênero (se você lê inglês, recomendo muito a retrospectiva feita pelo Digital Antiquarian). O mesmo pode ser dito do Terminist Arcade, que embora não siga os mesmos passos de ser um “Immersive Sim” como o da Looking Glass Studios em 1994, já começa com uma premissa intrigante e promissora.
Você começa a “história” – se é que posso chamá-la disso, mas falarei mais sobre isto em breve – ao atender a um pedido de emergência de uma colônia mineradora localizada em um asteroide. Não demora muito até descobrir que todos os tripulantes e mineradores foram levados à loucura por algum motivo e você está no menu deles se não tomar cuidado, mas muito cuidado.
É a partir daí que “Hyperviolent” começa a se distanciar de outros shooters “retrô” que estão no mercado. Os pilares do seu design ainda contêm o elemento de ação frenética, mas ela é muito mais bem pontuada do que abrir uma porta e dar de cara com hordas de criaturas. Pelo contrário, é bem provável que você abra uma porta e não encontre nada – e isso pode te deixar ainda mais tenso.
Pois, tal como System Shock (e em uma escala muito menor, Strife), “Hyperviolent” faz com que quase todo combate seja letal. Um inimigo munido de uma espingarda pode te derrubar em dois ou três tiros se você não estiver preparado. Saber quando e como usar os poucos recursos – sejam medicamentos ou munição para a imensa variedade de armas, muitas delas escondidas pela estação – é a diferença entre conseguir completar uma área ou ter que recomeçá-la do zero.
Para adicionar um tempero extra, a Terminist Arcade não hesita em usar um sistema de inventário e um estilo de navegação que não é muito comum em shooters. Outra vez o pilar do “encontre os cartões azul, vermelho e dourado” para avançar nas áreas está presente, mas esses objetivos são intercalados com a necessidade de religar um reator, encontrar uma senha para acessar um computador e destrancar uma porta, dentre outros tantos objetivos que não necessariamente remetem à era “Doom”.
A melhor comparação seria quiçá o formato híbrido de “Doom 64”, que ainda é visto com maus olhos por muitos da comunidade, embora eu o ache um jogo fantástico. Afinal, ele tentou no passado quebrar a barreira de apenas usar cartões de cores diferentes para finalizar uma fase e integrar mais ações do jogador. Um feito fantástico, considerando não só que é um jogo de Nintendo 64, mas um lançado após o início da era “Half-Life”, onde elementos narrativos estavam começando a ser mais integrados em shooters tradicionais.
Mas o que me pega de surpresa, e que possivelmente é a melhor mecânica do jogo, são os seus controles pouco ortodoxos. Quer recarregar uma pistola? Segure “R” e aperte o botão referente a mão que está segurando-a. Ou seja, segure “R” e aperte o botão direito do mouse para recarregar uma pistola ou uma submetralhadora. Segure “R” e aperte o botão esquerdo para recarregar armas que precisam ser empunhadas com ambas as mãos, que é o caso de espingardas.
Não só soa estranho à primeira vista, como é muito contrário ao que até então era dado como “óbvio” ou “fácil” em shooters. Antes que torça o nariz e fale “isso não faz o jogo desnecessariamente difícil?”. Por incrível que pareça não, para mim o faz mais satisfatório. A meu ver “Hyperviolent” quer que você sinta o esforço que é recarregar uma arma em meio a situações intensas, o que só aumenta o meu grau de ansiedade. Além disso, a maioria da estação está sem energia, o que gera uma necessidade quase constante de ter a sua lanterna ligada – que ocupa uma das mãos e faz a escolha de armas e como recarregá-las um elemento ainda mais crucial do seu design.
Eu diria que “Hyperviolent” é um dos poucos jogos que chegam próximo em termos de imersão de administrar armas e munições de um shooter totalmente em VR. E isso, por si só, não é um feito nada pequeno. Mas leve em conta que eu amo jogos com controles incomuns e adoro aprendê-los.
É uma pena que, apesar dessa estrutura base bem sólida e de tantos pontos positivos, o restante de “Hyperviolent” ainda deixe muito a desejar. A variedade de inimigos na atual versão de acesso antecipado é medíocre e a IA fraquíssima. Não importa o quanto você se prepare para uma possível batalha, pode ser que você dê de cara com um hitscanner e já pode dizer tchau para o seu progresso.
A ausência de um mapa, que deveria ser um ponto crucial para tornar explorar a estação interessante, vira um ponto de tédio por conta da pouca variedade de cenários. Neste ponto o clássico “System Shock” se destaca, pois você sabe muito bem em que área está, e que tipo de inimigo esperar – e mesmo com esses elementos o shooter / immersive sim de 1994 te pega com várias surpresas.
O ponto final é a maneira como a história é contada, que muitos vão adorar e outros vão detestar. Em suma, se você de fato se interessa pela trama de “Hyperviolent”, pode se preparar para ler dezenas de terminais com mensagens e começar a juntar as peças. Eu pessoalmente adoro essa atenção aos detalhes — que me remete a “Marathon” da Bungie — e prefiro isso a que parar para ouvir o 12º audiolog como em “Dead Space” ou até mesmo o já mencionado “System Shock”. Mas, do que eu li até então e pude compreender, a história não é tão envolvente quanto eu imaginava. Mais parece um conjunto de ideias jogadas em e-mails fictícios do que algo coeso e que irá aprofundar a sua conexão com a colônia de mineração.
Acredito que esta sensação esteja muito ligada à própria limitação da versão de acesso antecipado, misturada com a minha alta expectativa de um jogo que usa terminais para contar a sua história. Seria algo que eu teria deixado passar muito fácil em meados dos anos 90, mas não muito atualmente.
Eu não duvido que muitas das minhas críticas nesse preview – especialmente no que diz respeito a IA e variedade de inimigos – vai ser ajustada ao longo do período de acesso antecipado de “Hyperviolent”. Como a própria desenvolvedora mencionou quando o jogo foi disponibilizado no Steam, ao menos três grandes atualizações estão previstas até o lançamento da versão 1.0, que ainda não tem data definida. Estas atualizações incluem novos inimigos, armas, locais para explorar, e a possibilidade de usar sua nave para visitar novas regiões da estação.
Como mencionei no começo do texto, para bem ou para o mal “Hyperviolent” entrou em produção em 2023 com um ar muito forte de um shooter que nesse estágio já faria muito sucesso nos anos 90. Mas, não estamos mais nos anos 90, e as expectativas mudaram. E é inevitável que ao jogá-lo eu não sinta “hmm, bem que essa parte ou aquela parte pode ser melhorada”.
“Hyperviolent” é um projeto ambicioso, e um cujo desenrolar certamente irei acompanhar nos próximos meses. Mas, a esta altura, eu só posso recomendar para quem é muitíssimo entusiasta em shooters e quer ver uma estrutura ligeiramente diferente do que está disponível por aí, e já jogou tanto System Shock quanto Strife. Se não, jogue-os primeiro e até lá, quem sabe, “Hyperviolent” vai estar em uma qualidade melhor para ser apreciado.