Você acorda de ressaca e de cueca. Suas calças? Você não tem a menor ideia de onde foram parar, já a sua gravata está presa a um ventilador. O que diabos aconteceu? Você não sabe bem ao certo. A única certeza é que o toca fitas, apesar de ainda estar girando, já deixou de tocar melodias horas atrás. Ou seriam dias? Por que o quarto está tão zoneado? Desorganização ou um ataque de fúria? Disco Elysium (Steam / GOG) não te dá essas respostas. Ele espera que você preencha essas e muitas outras lacunas.
O game do estúdio ZA/UM é um RPG, mas não é o seu RPG típico. Ele une forte elementos de adventure games, visual novels, uma forte identidade visual em uma cidade à beira do caos. Ouso dizer isso, mas possivelmente é o mais perto que me senti de re-jogar Planescape Torment. Onde o clássico da Black Isle Studios questionava o propósito de renascer, a ZA/UM questiona o propósito de continuar vivo.
Voltando ao apartamento, eu desesperadamente tentei pegar a gravata que estava em cima do ventilador. Como sou estúpido, é claro que eu devia ter parado o ventilador antes de tentar essa perspicácia. A hélice bateu em minha mão. Eu caí no chão, uma dor no peito tomou conta de mim. Era esse o fim? Já? Não. Ainda não. Mas Disco Elysium apontou: seu personagem é frágil, ele não é o salvador nem tem a perspicácia de outros detetives — no caso um policial que se hospedou na parte obscura da cidade em busca de respostas para um suposto assassinato. Um homem preso a uma árvore. Quem o colocou lá? Ninguém sabe bem ao certo. Uns culpam os trabalhadores das docas. Outros dizem que foi um acontecimento mais sinistro.
Tinha muitas questões antes de sequer entender como um homem foi preso a uma árvore e enforcado. Quem eu era, no fim das contas? A criação de personagem de Disco Elysium foge dos padrões. Você ainda tem os arquétipos básicos: O primeiro, o Thinker, é mais focado em resolver os problemas na base da dedução. Já o Sensitive usa os lados emotivos — talvez até psíquicos para entender o mundo que está ao seu redor. Por fim vem o Phsysical, um brutamonte. Violência é a sua primeira e última solução. Alternativamente você pode construir um personagem do zero. Definir os atributos e finalmente entrar em detalhes sobre um dos conceitos mais interessantes que eu vi em Disco Elysium — o Thought Cabinet.
O Thought Cabinet é o que a ZA/UM descreve como um inventário para pensamentos. Ele é tanto uma árvore de perks como uma árvore que define a evolução do personagem, e o seu sistema de reputação. Foi um tanto confuso de início, mas assim que você dá os primeiros passos nesse mundo tão bizarro quanto a sua proposta, as coisas começam a fazer sentido.
Para começo, ela não usa um sistema de progressão tradicional. Você não sobe de nível, mas sim a sua compreensão do mundo. Quando eu acordei no apartamento, uma das vozes desse Thought Cabinet tomou conta do meu personagem. Era como se falasse com o meu eu-interior. Ele me alertou da hélice do ventilador, mas eu ignorei. Ao cair no chão esse pensamento caçoou de mim. Riu da minha inaptidão perante o mundo ao meu redor. Um bêbado, um inútil, jogado ao desalento, sem perspectiva de nada.
De pouco em pouco achei as minhas vestimentas. Estava apresentável, eu acho. Notei uma coisa diferente; as vestimentas e equipamentos de Disco Elysium não dão atributos físicos, mas sim aumentam a influência de um desses pensamentos.
Ignorei a mulher que fumava no parapeito e fui direto para o saguão do hotel. Foi então que um dos meus pensamentos favoritos até então, tomou conta de mim: o Inland Empire. Este define as suas emoções, sonhos, supostos desejos secretos. Vira e mexe ele vem à frente da sua mente e pergunta “Ei, por que você ao invés de não ser um policial, por que não virar uma estrela? Por que não cantar no microfone, mostrar para o bar quem você realmente é?”. Eu aceitei a proposta, mas primeiro tinha que encontrar uma fita que tocasse a minha música favorita. Como eu faria isso? Eu sequer tinha pistas! E ainda faltava um dos pés do meu sapato.
Sabia que antes de resolver qualquer um desses objetivos eu tinha um problemão pela frente: falar com atendente do bar, encontrar o meu companheiro – que me aguardava já impaciente no saguão – e pagar a estadia. Me apresentei ao meu companheiro, já nem lembro de que distrito ele era – pouco importava. Fomos falar com atendente.
“Atendente não, eu sou o dono. Eu tenho três outros bares e hotéis para tomar conta”, disse ele com tom de petulância. Daquele tipo de cara que você sabe que não vai ajudar a investigação. Perguntei onde o corpo estava localizado. “Vocês não são policiais? Eu chamei vocês há três dias! E a única pessoa que chegou foi esse… bêbado.” Minha paciência estava no fim. Eu só queria resolver esse caso, eu só queria sair desse hotel horrendo e seguir com as minhas tarefas diárias.
Antes de terminar a conversa abruptamente, o Inland Empire entrou mais uma vez em ação. “Você é mais do que isso, mostre o desprezo que você tem pelo patético dono do bar”. Acatei com a decisão da minha mente, pulei, mostrei os dois dedos do meio e caí em cima de uma senhora de cadeira de rodas. Que desastre, que péssima impressão (isso que eu achava que não tinha como piorar). E a vergonha de voltar lá?
Mas com essa ação, o Inland Empire evoluiu. Eu me senti mais conectado a ele, novas linhas de diálogos foram desbloqueadas. Pelo visto, o alcóolatra que vi no espelho no começo do jogo não era tão longe da realidade.
Quando saí, a região de Revachol West passava por um inverno rigoroso. Poucas pessoas nas ruas, um senso de desespero constante como poucos RPGs consegue transpor da maneira correta. O meu próximo passo seria, obviamente, desvendar o mistério por trás do corpo. Mas devo confessar para você, caro leitor, eu me distraí.
Cada pedacinho da cidade tem uma história para contar. Às vezes o seu personagem pode não ter a habilidade para acessá-las. Talvez ele seja um brutamonte, ou ele não está com a roupa adequada. (Um dos bares mais badalados da cidade, por exemplo, não me deixou entrar só de cueca e uma gravata. Uma pena).
Outra hora eu vi uma caixa de correios. Furioso com toda a situação, eu a chutei. Ao ter me machucado já no ventilador, meu personagem veio ao chão. Uma dor tomou mais uma vez a conta do meu corpo. Era um ataque cardíaco fulminante e morri. Quem morre ao chutar uma caixa de correios? Disco Elysium.
Quanto mais eu conversava com os habitantes, tentava descobrir quem eram os “mocinhos” ou “vilões” por trás de Revanchol West, mais as coisas ficavam complicadas. O meu Thought Cabinet se preenchia ainda mais. Às vezes era a intuição que tomava conta do meu corpo, outras vezes era outro lado da minha mente que me relembrava de acontecimentos anteriores – de como a cidade, considerada como uma pérola da humanidade – sucumbiu. Era tudo muito confuso, um quebra-cabeça onde não conseguia saber se as peças estavam espalhadas ou simplesmente inexistentes.
A abordagem peculiar de Disco Elysium não para só no seu universo ou nos seus diálogos. É um RPG que não tem combate da forma que se tipicamente vê em outros dos gêneros. A ZA/UM aponta que haverá momentos onde você pode usar a força bruta para resolver uma situação (algo que não vi durante a minha versão preview), mas o “skill check” é o mesmo de tentar decifrar uma pista ou convencer alguém a te ajudar. Ou seja, tenha muita sorte na rolagem dos dados para não acabar com um murro na cara ou pior.
É uma pena que a versão preview acaba no primeiro dia, bem quando as coisas estavam a esquentar. Mais perguntas começavam a aparecer e mais vontade eu tinha de desvendá-las. A versão final, de acordo com a desenvolvedora, dura um total de 10 dias e mais de 60h de jogo. Entretanto, isso não significa que tudo será resolvido ao jogá-lo apenas uma vez.
Ah, e o corpo? Eu atirei nele, errei a skill check e ao invés de cortar a corda, criei mais um buraco no pobre coitado do falecido. Meu parceiro me deu uma bela de uma bronca e fez o trabalho sozinho. Resmungando, é claro.
Disco Elysium é especial, e se os próximos dias na história do game forem tão bons quanto o primeiro, pode ser um dos melhores RPGs de 2019.