“Ok, como que diabos eu resolvo isto?” deve ter sido a frase que eu mais soltei durante as minhas terríveis tentativas de gerenciar um governo em Democracy 4 (Steam). Quando não era um grupo específico me odiando, era outro grupo infeliz com as minhas decisões políticas acerca de uma multitude de manobras ou tentativas de aumentar o PIB. A realidade é simples: não dá para agradar a todos, uma realidade com a qual você vai ter que conviver em cada turno do jogo de estratégia.
Seria justo chamá-lo de um jogo de estratégia a este ponto? Não sei ao certo; 2020 está um caos tão grande que as linhas entre o imaginário e a realidade começam a se dissipar. Houve momentos em que sentia que o título da Positech Games – ainda em acesso antecipado – apresentava uma visão ainda mais pavorosa deste ano, maquiada por trás de uma interface bem “amigável”.
Mas não deixe se enganar: Democracy 4 pode ter os atrativos visuais que um jogo de estratégia / gerenciamento merece, mas o grau de complexidade e a curva de aprendizado dele são enormes. Embora a desenvolvedora tenha optado por um “não mude o que não está quebrado”, fazendo com que ele pareça um Democracy 3.5 de um ponto de vista estético, é nas entranhas que ele demonstra nuances que vão muito além do sistema um tanto quanto reativo provido por seus predecessores.
Ainda que contenha apenas alguns países jogáveis no momento, sendo alguns deles o Reino Unido, Estados Unidos, França e Alemanha – o que é de se esperar já que a desenvolvedora é situada na Europa — cada um contém seus próprios e consideráveis desafios. Nenhuma partida é igual a outra, e o leque de conhecimento que você precisa ter sobre diferentes assuntos domésticos e internacionais chega a ser absurda.
Para a minha primeira campanha eu fui com o que me soava mais “fácil”, o Reino Unido. Democracy 4 não comenta – ou ao menos eu não fui competente o suficiente para desvendar – sobre situações mais atuais como o problema do Brexit, mas os eventos trazidos pela sequência são mais do que o suficiente para ler pelas entrelinhas.
Recém nomeado primeiro-ministro pelo partido dos trabalhadores (uma escolha feita por mim), a minha intenção inicial era reduzir a desigualdade social, aumentar os subsídios ou converter as principais companhias em estatais e, obviamente gerar empregos. Fácil falar, difícil fazer.
Por ser um jogo em turnos, a Positech Games toma bastante cuidado em equilibrar quais políticas entram em vigor no próximo turno ou quais demoram quatro ou mais turnos para serem implementadas. Claro que há um grau imenso de abstração do processo político em certas frentes; não há necessidade de passar por votação no parlamento (a mecânica está em desenvolvimento), os retornos das suas ações são claros, e basta alguns turnos para você ver o resultado das suas decisões.
Na metade do meu mandato o meu país já estava em ruínas. Como eu consegui este feito? Ora, eu me foquei em uma faceta dele e ignorei a outra! O aumento da igualdade social fez com que certas empresas saíssem do meu país ou começassem a tentar pagar menos taxas e divergir sua renda para países mais “atraentes” para este tipo de negócio. A transformação das duas grandes estatais – a empresa de companhia elétrica e ferroviária – trouxe mais empregos, porém com a queda no PIB e o aumento na inflação, o poder de compra de todas as classes estava muito mais baixo do que quando eu comecei o meu mandato.
Faltavam praticamente sete turnos para eu conseguir fazer algo de moderadamente útil para remendar a situação. Meu gabinete de ministros, um misto de socialistas, capitalistas e liberais, não estava muito contente com as minhas decisões. Este fato entra como uma segunda grande facada, pois um gabinete infeliz significa menos pontos políticos – “moeda” usada para alterar custo de políticas, gastos ou implantação de novas leis. De quebra, o mundo estava entrando em uma grande recessão (te lembra algo?), o que fez com que a taxa de interesse no déficit do meu país explodisse e as minhas reservas virassem quase nada.
Não posso dizer que eu não fui avisado, pois se tem algo que em Democracy 4 é muito melhor do que em seu antecessor é a visualização de dados. Onde Democracy 3 era uma questão de tentativa e erro para descobrir quais leis influenciavam grupos específicos, a sequência já demonstra um esforço absurdo para deixar o mais claro possível as possíveis rotas que você tem para melhorar o seu país. Mas, aí é que está o meu problema – nessa altura do campeonato eu não tinha mais o que fazer, ao menos em curto prazo, para melhorar o país.
Por que eu decidi passar por tamanho sofrimento em um ano que já está repleto de sofrimentos? Porque eu acho fascinante a forma como Democracy 4 consegue criar esse aspecto de você ser um malabarista a cada segundo e ao mesmo tempo ser capaz de demonstrar quais pratos podem ou não cair. E, cedo ou tarde, eles vão cair.
Muito como os jogos de Grand Strategy da Paradox, Democracy 4 é o equivalente a se agarrar no primeiro objeto flutuante na hora que uma onda gigante está vindo em sua direção. No caso do Reino Unido, essa onda era uma baixa opinião pública, uma recessão em mãos e políticas que não funcionaram tão bem quanto esperava.
Assumo a minha culpa em não ter aproveitado mais das dezenas de gráficos informativos sobre os tipos de votos, grupos de referência, e tantas outras ferramentas disponibilizadas pelo jogo. Todavia, Democracy 4 ainda retém muita dessa informação para si mesmo, criando outra camada de “tentativa e erro” além dos já citados sistemas reativos do seu antecessor.
Creio que o maior “defeito” disto está no fato de que, bem, é um jogo em acesso antecipado, e parte do seu tutorial ainda carece de melhor explicação. Junte isto com uma curva de aprendizado brutal e se reeleger de primeira é um milagre. Um milagre que, pelo que eu já descrevi aqui, não aconteceu durante a minha partida.
Os principais financiadores de campanha pularam do barco antes que ele afundasse; dois ministros tinham abandonado o cargo por eu ter negligenciado duas políticas que eles adorariam que fossem implantadas. Agora, em minha defesa, ambas as políticas iriam prejudicar absurdamente o meio ambiente por um mísero aumento no PIB, não era hora de fazer mais um grupo político se irritar contra mim. Acabar o meu mandato – e a minha partida – com menos de 30% dos votos, portanto, não foi nenhuma surpresa.
Com uma melhor noção de como redirecionar o país para um futuro mais favorável, comecei a minha segunda partida com o Reino Unido e foi a partir daí que eu apreciei ainda mais o design de Democracy 4.
Ele lida com política, isso é um fato inerente do seu design, mas faz isso de uma maneira tanto política quanto apolítica. Tal contestação, que sei que é um tanto contraditória, é o que dá o charme para os jogos da Positech. Não espere criar uma caricatura do Trump, do Putin, do Joe Biden, do Bolsonaro ou qualquer outro político que atua na esfera global atual — ainda que muitas citações, principalmente as mais ácidas e absurdas, apareçam na tela de carregamento. Espere um jogo sobre estatísticas, dados, como um dado influencia o outro, como uma ação tem repercussão em diversas frentes e como todos esses elementos se unem como o encontro de dois rios.
Jogar Democracy 4 é ter a paciência para analisar dados, para entender ações das pessoas, para entender como as suas decisões impactam a vida delas. Ainda há um grande distanciamento em relação a jogos de menor escala como Tropico ou até Dwarf Fortress. Todavia, esta não é, nem nunca foi a proposta da Positech. O distanciamento é necessário para que você tenha noção de como a sua nação progride e quais são os principais grupos ou impedimentos que podem prejudicá-la, mas não significam que o lado “humano” é deixado de lado.
É aqui que entra o lado mais de “imaginação” permitido pelo design. Se ao ver uma taxa de desigualdade você achar que “são só números” e não entender que são pessoas – grupos específicos que sofrem desse problema – você vai perder uma eleição. Você vai ser odiado por eles, ou em casos raros, sofrer com uma revolta popular. Acredito que este seja o maior triunfo da série Democracy como um todo: saber dosar informação, imaginação e intimismo para com o lado humano de um país com milhões de habitantes.
Dito isto, ainda há muito a ser feito para que a versão de acesso antecipado se torne a edição definitiva de Democracy 4. O sistema de eleições ainda é relativamente fraco e muito similar ao que foi visto em Democracy 3; há uma maior quantidade de eventos, porém grande parte deles parecem ter a sua parcela de bugs ou um impacto quase invisível na evolução ou não do país.
Dada a quantidade de atualizações que o jogo recebeu entre a minha primeira e segunda partida, não duvido que a Positech Games já está mais do que ciente das citadas parcelas de rebarbas que precisam ser aparadas. E, se eu for olhar o histórico da desenvolvedora (com exceção de Gratuitous Space Battles 2), isto vai acontecer mais rápido do que imagino.
Seja como for, se você está com sede de números, estatísticas, dados – muitos dados – e ainda estômago para jogar algo com temática política em 2020, não há opção melhor do que Democracy 4.