Eu sou a última pessoa com quem você deve buscar conselhos de relacionamento. Mas depois de jogar vinte e tantas horas de Crusader Kings 3 (Steam) — que teve seu lançamento confirmado para 1º de setembro — há um conselho que posso dar: nunca, jamais, em hipótese alguma, comece uma conversa sobre as aventuras eróticas de seu pai com um peixe, e siga com a frase “eu também tenho interesse em coisas peculiares”. A outra pessoa não vai gostar nem um pouco.
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Antes de adentrar nas minhas aventuras com a versão de preview do próximo Grand Strategy da Paradox, já vou avisar de antemão para aqueles que estão com as expectativas lá no topo: Crusader Kings 3 é uma evolução da série, não uma revolução. Se você espera um pulo como o que houve entre Europa Universalis III e Europa Universalis IV, ou ter a mesma quantidade de conteúdo que Crusader Kings 2 e todos os seus DLCs, isso não vai acontecer (apesar de que a Paradox pelo visto está esperta em relação a não entregar um jogo esquelético). E não dá para se casar com um cavalo…. Ainda.
Crusader Kings 2, lançado originalmente em 2012, era um peculiar híbrido de Grand Strategy com toques de RPGs. Suas mecânicas tinham sido testadas antes no (abandonado) Sengoku Jidai. Com Crusader Kings 3 em 2020, a Paradox reforça — e muito — o lado roleplay, de criar e manter uma dinastia, ao mesmo tempo em que o torna mais simples de entender. É difícil até descrever o quão mais rápido está para você entender as principais mecânicas, mesmo que tenha pulado o tutorial.
O meu tempo de jogo de Crusader Kings 2 está longe das 3000h de algumas pessoas que conheço; muitas mecânicas ainda eram obtusas para mim, dependia da wiki para ver e rever certos conceitos. Crusader Kings 3 traz consigo uma enciclopédia e um novo sistema de tooltips — ambos vindo de Stellaris e Imperator: Rome — que torna o processo de aprendizado muito mais fácil.
Um exemplo simples disso é o novo sistema de “Issues”. As dezenas de ícones com pequenos alertas – que assustavam qualquer novato – agora viraram alertas que ficam englobados em uma única barra e são organizados de acordo com prioridade. Além disso, eles são atualizados à medida em que a partida avança. Eles não servem só para apontar o que pode ser feito, mas também indicar possíveis ações que podem ser feitas em seu favor.
Comecei a partida como Jarl Björn de Uppland, líder de uma tribo nórdica onde fica a atual Suécia. Como não jogava Crusader Kings 2 desde o lançamento de Holy Fury — mais o fato que eu cubro vários jogos de estratégia — algumas mecânicas tinham sido esquecidas, mas o adviser me indicou possíveis regiões para serem saqueadas e também que eu tinha muitas poucas concubinas. “Ah, tem isso não é?”, disse para mim. Assim se iniciou a espiral de péssimas decisões, pois não seria Crusader Kings 3 sem péssimas decisões.
A primeira província invadida foi o condado de Medelpad; um número de tropas bem inferior ao meu significava que eles não iam demonstrar nenhum tipo de resistência. Para a minha sorte e azar deles, consegui capturar um dos filhos e herdeiros do trono. O chefe da tribo não ficou nem um pouco contente com isso, obviamente.
Meses após meses ele me importunava com pedidos de resgate, mas se negava a pagar o valor total, portanto o seu filho continuou na minha masmorra. Foi aí então que pensei comigo mesmo “Ok, e se eu tentar um segundo raid, tentar pegar o segundo filho, depois entrar em guerra com ele, prendê-lo e depois ganhar um bolão de dinheiro pela soltura dos três?”. Nessa altura mais de quatro anos já tinham se passado, minha esposa e minhas concubinas já tinham dados filhos suficientes para formar um pequeno time de futebol (sem reservas), então a minha sucessão estava garantida.
Nesse meio tempo, enquanto eu não prestava a devida atenção, as tropas de Medelpad se fortaleciam mais e mais. Os seus números cresceram enquanto eu me focava em juntar dinheiro com raids para melhorar as minhas cidades — que agora possuem todo um novo sistema de construção e de castelos, aumentando ainda mais as possibilidades no gerenciamento do seu reino.
Quando entrei em guerra foi que notei o quanto o combate de Crusader Kings 3 mudou. Não dá para comentar sobre o sistema de combate sem apontar o quanto ele foi influenciado por Imperator: Rome. Tropas agora tem limites de suprimento e irão sofrer muito mais atrito do que na versão anterior; a composição do seu exército não é só importante por conta das Levies mas também dos Man At Arms, infantaria leve, pesada, tropas montadas a cavalo, e os cavaleiros e cavaleiras que a compõem.
A inclusão de cavaleiros muda a rotina de Crusader Kings 3 dentro e fora do combate. Além de atuarem como modificadores — como maior habilidade para certos tipos de batalha, sejam em campos abertos, travessias — eles são novas fontes de narrativa. Um dos meus cavaleiros foi ferido em batalha e desencadeou uma cadeia de eventos onde ele pedia que eu o poupasse da próxima batalha e oferecesse um dinheiro extra para ele se “manter” nesse período em troca de um aumento de opinião. Ele sendo um dos principais componentes para a minha vitória sobre Medelpad, não hesitei em dar um pouco do meu dinheiro para garantir sua lealdade. (Sistemas de lealdade de tropas como acontecem em Imperator: Rome não estão presentes em Crusader Kings 3).
Mesmo contente com o dinheiro que dei, ele quis me desafiar para um duelo. Confiante que só, fui sem pestanejar. Acabei ferido e publicamente humilhado. Sem contar que isso se desenrolou meses após contar os meus interesses peculiares a minha esposa.
Com Medelpad segura — ou ao menos foi o que pensei — era hora de dar os próximos passos, ver com quem meus filhos e filhas iriam se casar, fortalecer a minha dinastia. Um aviso subiu na tela de que eu tinha pouco controle sobre a região de Medelpad. “Controle, que? Como assim? Mas eu conquistei a região, não era para me dar dor de cabeça!”.
Controle é um dos novos sistema de Crusader Kings 3 e está parcialmente ligado ao sistema de revoltas. Quando você conquista uma região, é provável que o controle que você tem sobre ela seja baixo. O valor varia de 70%, 60%, 40% até 0%. Quanto menor o controle, mais instável é a situação da região, e menos dinheiro você recebe dela. Não é a toa que eu tinha pouco controle sobre Medelpad; anos de saqueamento e terras destruídas para completar com uma guerra? Foi um milagre que o meu Marshall foi capaz de lentamente retomar o controle da região. Por outro lado, colocá-lo nesta posição significava que o reforço de manpower ia ser mais lento.
Então o inevitável aconteceu: o meu Jarl morreu e quem sucedeu foi seu filho. Ao invés de prestar atenção na sua tutelagem, eu estava ocupado demais com minhas concubinas, saqueando outras ilhas e irritando as pessoas erradas. Ele tinha se casado com a herdeira do trono da região que se tornaria a Polônia, o que vi como algo beneficial para mim.
O que não foi beneficial é que, agora como o filho do Jarl, todos na minha corte me odiavam. Para piorar, ele decidiu ter um romance secreto antes mesmo de tomar o controle dele e meu spymaster descobriu, e me usou para me chantagear com um hook. “Hook” é outro novo sistema importantíssimo de Crusader Kings 3. O funcionamento deles é parecido com o de favores, só que eles servem para muitas outras ocasiões, como chantagear alguém para parar uma possível revolução ou um esquema de assassinato, reduzir o poder de facções — uma lista de coisas que eu perderia horas falando aqui.
O fato é que o meu spymaster tinha um hook “forte” contra mim. Hooks fortes são os que servem para levar outros países a se aliarem à sua guerra, pedir dinheiro e muito mais. Foi a escolha que dava, pois senão o meu casamento poderia desmanchar e a última coisa que eu queria era a minha esposa me odiando.
Minha decisão? Eliminar meu spymaster! Nada mais coerente, certo? Quem diria que ele ia descobrir a plot e tentar me matar? Ninguém, absolutamente ninguém, sem dúvidas um veterano de Crusader Kings não viu esse desastre chegando a quilômetros.
Cansado de ver o meu reino levantar e depois sucumbir, achei melhor visitar outras regiões para conhecer mais sobre as mecânicas de Crusader Kings 3. Uma delas, que a Paradox tem mencionado desde a PDXCON 2019, é o novo sistema de religião.
Crusader Kings 3 permite que você crie ou reforme a sua religião. Acha que canibalismo deve ser algo aceitável? Vá em frente! Adultério? Sem problema algum. O custo disso, no entanto, é alto — tanto em piety quanto em instabilidade. Qual local melhor para fazer isso se não for no Sacro Império Romano-Germânico?
Reformar uma religião com mudanças bem drásticas precisa de planejamento, o tipo de ação que deve ser pensada desde o começo da partida (867), e — ao menos na versão de preview — vi poucas chances de isso ocorrer antes de 1100. Veteranos de Crusader Kings sem dúvidas acharão maneiras mais inteligentes de fazer isso, mas como meu tempo era limitado para a versão de preview, fiz o que pude.
Para começo, convenhamos que o Império Sacro Romano Germânico não foi lá a região mais estável do planeta (apesar que as coisas pioram um tanto se você ver Europa Universalis IV). Discussões entre vassalos e membros do império, drama a torto e a direito, eu tentando segurar as pontas enquanto focava meu personagem em ganhar mais piety e aceitar todo evento que me desse mais piety.
Depois de quase três séculos de tentativas eu finalmente atingi a marca de piety que eu precisava para reformar a minha religião. “Chegou a hora, todos irão aceitar não só canibalismo, mas também bruxaria e obscenidade”. A minha antiga religião iria me considerar hostil, metade dos meus vassalos iam me abandonar, mas quem liga? Eu criei uma Holy Order e podia iniciar guerras santas contra aqueles que não seguiam a minha bizarra religião (a qual carinhosamente nomeei de “Está tudo liberado”).
Outro ponto interessante de criar uma nova religião está no sistema de “Fervor”. Quanto mais nova uma religião, maior o seu “Fervor”. Pense nele como a nova tendência entre os jovens, se os jovens fossem camponeses que vivem em um regime quase de escravidão e abraçam qualquer novidade que dê a eles a chance de uma vida melhor.
“Está tudo liberado” se multiplicava com uma velocidade considerável, ainda mais se considerar que eu não tinha nenhum “lugar santo” — os Holy Sites — dentro das minhas províncias. Isso, obviamente, não agradou nem um pouco a igreja católica. Mas que se dane a igreja católica.
Com uma Holy Order e um exército bem equipado, iniciei uma guerra santa contra os infiéis que acreditavam que bruxaria, adultério e obscenidade ainda eram tabus. Isso estando já em outras três guerras. Péssima ideia, Lucas. Péssima ideia.
Ano após ano o meu domínio sucumbia, guerras esgotavam os meus cofres, o custo de manter mercenários e tropas avançadas era absurda. O fim estava próximo, mas eu não queria vê-lo. Para isso eu mudei para o modo de observação — que agora pode ser feito com ainda mais facilidade em Crusader Kings 3 — para ver como a IA iria resolver o caos que eu tinha criado. Devo dizer que ela se saiu melhor do que eu esperava.
Mas o mais engraçado de tudo foi ver a minha religião se espalhar até chegar às fronteiras da igreja ortodoxa. Creio que fiquei uns cinco minutos rindo imaginando na cara do líder da igreja ortodoxa olhando para uma religião que apoia o canibalismo e bruxaria e pensando “Mas o que está acontecendo? Quem autorizou isso? Que zona é essa?”. Ah Crusader Kings 3, só você me para me proporcionar essas situações absurdas.
Mesmo depois de tantas horas de jogo, eu sinto que arranhei apenas a superfície do potencial de Crusader Kings 3. Enfatizo mais uma vez que ele está muito mais “recheado” — e não digo de eventos secos como os duramente criticados pela comunidade de Imperator Rome — do que Crusader Kings 2 em seu lançamento original.
Tive breves excursões pela África, cujas tribos possuem seus próprios rituais, religiões e características da região bem mais detalhadas, criei um conciliábulo de bruxos com o rei da Polônia, trouxe melhorias para a minha dinastia por meio de legados que são obtidos por Renown. A lista vai muito, muito longe. Dar um panorama geral sobre Crusader Kings 3 em tão poucas palavras, e em tão pouco tempo, é muito difícil.
Mas, pelo que pude ver, a Paradox prestou atenção em muitas críticas que vinha recebendo nos últimos anos em relação a vários sistemas para fazer o novo game. Aqueles que são fanáticos pela ausência de mana ficarão felizes em saber que muitos eventos não podem mais ser “solucionados” num piscar de olhos. Um desses sistemas é o de tecnologia.
Tecnologia agora é separado entre Early, Middle e Late Medieval Ages. Cada região ou país tem o seu grupo de tecnologias e, quanto maior o “learning” do líder, mais rápido essas tecnologias são desbloqueadas. A única coisa que você pode fazer é direcionar qual tecnologia você vai desbloquear primeiro. Ainda não estou muito convencido de que esse sistema vai funcionar a longo prazo, mas é uma mudança interessante e sem dúvida melhor do que ficar verificando a cada segundo se você pode investir em uma tecnologia ou não.
A Paradox também fez grandes mudanças para que essas tecnologias fiquem menos genéricas. Ao invés de “aperte um botão para aumentar em 2% o seu poderio militar”, tais tecnologias estão ligadas a elementos como urbanização, guildas, melhorias para arqueiros e tantas outras. A versão preview mostrava 29 para o early middle ages, 25 para o middle ages, 22 para o High Medieval e 23 para o Late Medieval. O número pode ser alterado até o lançamento e não tenho dúvida que os mais perspicazes descobrirão uma maneira de abocanhar a maioria delas sem tanto esforço.
Eu já pus a minha mão no fogo demais pela Paradox, mas como eu sou um grande idiota, eu vou colocar mais uma vez. Crusader Kings 3 pode até então não ter o conteúdo do seu antecessor (com as DLCs). Não é possível jogar com repúblicas, tampouco com o papa, pandemias como a peste bubônica estão no jogo mas não tão elaboradas como as do “The Reaper’s Due”. A Rota da seda e muitas mecânicas de Horse Lords também não dão as caras (sejamos sinceros, quem jogava com Horse Lords?).
Mas ter essa carência de mecânicas em favor de um jogo mais coeso e com mais foco em religião, roleplay, e outras melhorias que são muito bem vindas — isso sem contar o aspecto técnico, onde a velocidade 5 não parece que vai explodir o seu computador — me faz dar preferência a Crusader Kings 3.
Muita água vai rolar até 1º de setembro; novas mecânicas serão introduzidas, bugs serão corrigidos e, como tantos outros jogos da Paradox, Crusader Kings 3 é uma plataforma. Ele vai evoluir com novos DLCs, atualizações, e todo aquele drama que um fã da Paradox já conhece. Mas, depois de ver o estado de Hearts of Iron IV, Stellaris, e como a comunidade recebeu Imperator: Rome, ele pode ser o primeiro em anos que está no caminho certo.
Abaixo estão todas as imagens tiradas durante a partida. Estas incluem eventos que não puderam ser inseridos no texto, novos tipos de visualização do mapa — como facilidade de ver qual vassalo pertence a qual reino — lugares santos para o catolicismo e muito mais: