Entre as batalhas criadas em Crusader Kings III, as lutas de Mortal Shell e shooters, eu estou cansado de conflito. Isso vêm tanto do âmbito pessoal quanto do profissional. Tanto que nas últimas semanas eu tenho usado meu tempo livre para viajar o mundo no Microsoft Flight Simulator, voltar para SnowRunner, e apreciar Cloud Gardens (Steam). Desenvolvido pela Thomas van den Berg da Noio, a mesma empresa que criou Kingdom e New Lands, Cloud Gardens está por enquanto entre os mais cativantes puzzle games lançados em 2020.
Creio que já devo ter mencionado em alguma matéria, mas é sempre bom reforçar que eu tenho uma certa birra com jogos otimistas demais. Eu não durei nem um mês com Animal Crossing, não consegui me acostumar com o ritmo de Stardew Valley e as minhas tentativas de voltar para My Time at Portia foram uma perda de tempo. Eu não tenho problema com criações que visam o otimismo, mas os jogos citados o exalam a um ponto que chega a ser tóxico; a quantidade exata de escapismo para você se sentir bem e esquecer o mundo ao seu redor. E, convenhamos, 2020 está caindo ao nosso redor — muito rápido.
Eu mesmo posso me julgar “culpado” por ser complacente com esse escapismo, vide Microsoft Flight Simulator e o próprio Snowrunner. São escapismos, o ato de transformar tarefas mundanas em algo fantástico, formas diferentes fugir de problemas, medos, anseios. Só que, diferente de Animal Crossing, os jogos citados não me veem com um sorriso no rosto para fingir que não existem as situações pelas quais eu passo ou o declínio da minha saúde mental. Eles continuam ali, só que guardados em uma caixa temporária. Às vezes uso tais jogos justamente como pontos de reflexão ao invés de escapismo. Algo como olhar por uma janela virtual ao invés da janela do meu quarto (da qual já estou bem cansado — afinal, são seis meses de quarentena).
Cloud Gardens toma importância na minha vida por não medir esforços para mostrar o fim do mundo. Afinal, essa é a base dele. Cada diorama desenvolvido pela Noio mostra o abandono — intencional ou não — de coisas que deixamos para trás. Veículos, lixo que criamos, placas que um dia serviam para indicar direções mas que agora só nos servem para confundir sobre o atual estado da realidade.
Você, como uma entidade onipresente, deve retomar o “controle” desses locais. Como? Da mesma forma que a Terra sempre fez ao longo desses bilhões de anos: pela natureza. Coloque uma planta e a veja crescer, use trepadeiras para esconder o abandono e relembrar a beleza.
Nem é preciso ir muito longe para ver como a natureza encontra o seu jeito de retomar controle da Terra. Imagens da zona de exclusão ao redor do reator de Fukushima de 2015 já demonstravam um cenário diferente daquele deixado pela humanidade. Um resultado de irresponsabilidade, más condições de reparo e sucateamento de uma usina nuclear (apesar de eu ainda acreditar que Energia Nuclear é o futuro). O nível dos oceanos cresce a cada ano que passa. Quem vai vencer essa batalha? A humanidade? Duvido.
O que Cloud Gardens faz é construir em cima dessa ideia para relembrar que há como encontrar beleza no que consideramos “feio”. Cada quebra-cabeça virava menos uma questão de “como eu vou concluir os objetivos” e mais “como vou completar os objetivos de forma que eles obstruam as memórias do passado?”
Mas eu e você, caro leitor ou leitora, sabemos que certos tipos de memórias nunca vão embora, não é mesmo? Elas ficam ali no subconsciente esperando a hora certa para surgirem e desmontarem você por completo. Não sei se foi uma escolha consciente ou não da Noio, mas a maioria dos quebra-cabeças impedem você de esconder totalmente a “feiura” dos locais que você explora. Assim como é impossível apagar completamente memórias, forçando-nos a – querendo ou não – aprender a conviver com elas e quem sabe tirar lições de todas.
Seja nas sessões longas ou curtas de Cloud Gardens eu sempre pensava: “O que será que eu criei? Eu criei, ou ajudei a criar?”. A simplicidade da sua jogabilidade dá espaço para tantas interpretações — de botar a semente no local correto e coletar os frutos dela a você ter o controle completo de cada pedaço do cenário, elemento que aparece com mais proeminência no seu modo sandbox.
Mas sabe o que Cloud Gardens me trouxe acima de tudo? Paz. Não a paz manufaturada, os sorrisos falsos, o “está tudo bem?” forçado que tanto vejo por aí. Sinceramente, se me perguntarem como eu tenho passado as últimas semanas, eu teria que separar metade de um dia para desabafar. Eu já desabafei o suficiente com quem precisava e não quero isso para mim nos jogos. Quero o silêncio de Cloud Gardens, a estrutura minimalista. Eu, um diorama, um quebra cabeça e algumas ideias de como resolvê-lo.
Quando ficava enjoado eu voltava para o modo Sandbox para fazer as minhas próprias criações, incompletas tanto em um sentido conceitual como pelo fato do jogo estar em acesso antecipado. Mas tudo bem, eu não estava ali para criar algo perfeito. Cloud Gardens – seja na sua premissa até a sua execução – não quer algo perfeito de você. Como disse antes, o que ele quer é que você veja, entenda as imperfeições, e que isso faz parte de tudo na vida. Que a beleza uma hora vai florescer e esconder algumas dessas imperfeições. Mas que no fim, você aprende a conviver com elas também, e está tudo bem se for assim.
Eu não quero pender demais para o aspecto “jogabilidade” ou afins; é um jogo relativamente difícil de recomendar para aqueles que não estão interessados em um puzzle game leve com uma estética fantástica e com a liberdade que muitos jogos prometem mas não entregam: a liberdade de sonhar.
Cloud Gardens é realmente libertador, tanto em termos de criatividade quanto em termos de expandir os seus horizontes sobre o que pode ser feito em jogos para evocar sentimentos nos mais singelos toques. Um que vai entrar para uma lista bem especial de jogos que tocaram o meu emocional junto com Quiet as a Stone, Gris, SOMA, e “This, Too, Shall Pass”.
2020 está difícil para todos nós — ao menos sei que está muito difícil para mim. E, como eu não aguento mais conflito, confronto, destruição, vou deixar pelo resto do ano Cloud Gardens bem do meu lado. Embora não me dê respostas para angústias (nem espero isso de um jogo), pelo menos me dá espaço para questionar as minhas escolhas, expressar os meus defeitos, quais deles eu consigo enxergar, quais eu preciso resolver e – principalmente – quais eu preciso aceitar.