Três pessoas estavam em frente a uma caravana, duas dançavam enquanto a terceira contava a história do terrível acidente que sofreram ao navegar pelas terras desconhecidas de Braided Shores. O que significava a dança? Alguma forma de honrar aqueles que se foram? Sentei em meio à audiência e, por mais que eu tentasse, não conseguia decifrar o que queriam transmitir. Não devia me surpreender pois, assim como os viajantes, eu era um desconhecido em Book of Travels (Steam).
Book of Travels adere a um conceito do que é chamado de “Tiny MMORPG”. Ele em si não é nada mais do que uma região com persistência e servidores compostos por até 7 pessoas. Exemplos de experimentos na esfera indie como os mais recentes MUDs ou até o roguelike online Tangaria são fáceis de encontrar. O que faz o jogo dos suecos da Might and Delight se destacar em meio a estes é a forma que ele te insere e te suga para o seu mundo. Eu venho acompanhando o desenvolvimento desde o Kickstarter e ainda assim não estava preparado para a incrível e árdua jornada que eu teria pela frente.
Após uma breve, porém importantíssima criação de personagem (o que eu descobriria muito depois), Book of Travels te joga em Braided Shores. Se ele te dá meia dúzia de direções além da casa de chá em Crossroads é muito. Ele quer que você o explore no seu ritmo.
Minhas primeiras horas com ele me trouxeram muitos dos sentimentos que tive com o fantástico Caves of Qud; embora o mundo de Book of Travels não seja tão “alienígena” quanto o de Qud, ele compensa com um realismo mágico estonteante. As casas de chá, os barcos, os pescadores que lutam para pegar a comida do dia são tão próximos de mim quanto qualquer outro jogo e, ao mesmo tempo, distantes o suficiente para eu não os reconhecer.
Caminhei por pastos, pontes, regiões montanhosas. Coletava arbustos e sementes cujo propósito ainda não sabia qual era. Dei a sorte de esbarrar em um arbusto e encontrar uma mochila. “Ufa, agora não preciso mais me preocupar tanto com o meu inventário ou com o que eu vou carregar”, disse a mim mesmo, esperançoso de que quando chegasse em Crossroads, eu ia tomar um belo chá, descansar e poder obter equipamentos melhores para a minha jornada.
Eu rio muito da minha inocência agora que escrevo o artigo; o que eu estava pensando? Eu era um viajante sem uma moeda no bolso. Eu era um jovem que nasceu em uma aldeia rural e vinha de uma ilha. Meu bem mais precioso era a minha lanterna que me acolhia durante as longas noites de Book of Travels. O que eu teria a oferecer para uma cidade grande? Nada.
Nada eu tinha a oferecer, já que a compra e venda de mercadorias era na base da barganha. Cheguei esfomeado e cansado na cidade e esperei pelo pior, mas fui acolhido de braços abertos pela dona da casa de chá. Ela me deu mais direções, pediu para que eu descansasse e me deu alimento. Pena ou empatia? Eu gosto de pensar que foi empatia, de pensar que os habitantes de Crossroads não são hostis a viajantes ou transeuntes.
“Vá até um templo”, disse ela. “Pegue essa estrada, vire à esquerda, depois siga e você o encontrará”. Um templo? O que eu faria em um templo? Seria esse o início de uma quest? Tudo bem então, eu vou tentar seguir as direções dadas por ela.
Creio que você imagine que eu vá escrever agora sobre o que eu encontrei no templo, as maravilhas que foram vistas por mim e como Book of Travels se abriu de vez para mim, certo? Desculpe desapontá-lo: eu nunca encontrei o templo. Na realidade, eu nunca tive a intenção de encontrar tal templo.
No momento em que eu saí de Crossroads eu queria mesmo é explorar mais e mais, e mais um pouco. As quests, ou seja lá o que elas fossem, poderiam esperar. Eu não estava com pressa, tampouco Book of Travels.
Na verdade, pressa é algo que você não pode ter em Book of Travels. O ritmo do seu personagem é lento, correr gasta stamina e um pouco de energia e deve ser usada como último recurso. A Might and Delight quer que cada detalhe do cenário tenha um peso e uma importância em você. Seja o arbusto onde eu encontrei a mochila, a fogueira onde pude descansar à noite, ou a caravana com que me deparei durante as minhas viagens. Até mesmo os barcos têm um itinerário de cinco em cinco minutos, o que pode soar curto, mas depois de uma década de MMOs que te dão centenas de opções para chegar “imediatamente” onde você quer, é uma mudança que eu amo.
Creio que esse venha a ser no fim das contas um dos pontos que mais vai dividir a comunidade, seja no período de acesso antecipado, seja no seu lançamento oficial, previsto para daqui a dois anos: nada é te dado de mão beijada. Anotar em um bloco de anotações ou uma folha de papel diálogos que soam irrelevantes pode ser a chave para desbloquear segredos e histórias. E, até essas histórias, que eu só consegui liberar com a ajuda de um grupo de pessoas, são muito abertas a interpretação. O que me leva para outro ponto também complexo de Book of Travels: a cooperação entre jogadores.
No papel, Book of Travels me remete ao que eu passei em Everquest no começo dos anos 2000, hoje em dia replicado pelo servidor não oficial Project 1999, que busca recuperar esta experiência. A comunidade de Book of Travels precisa se ajudar para desvendar os mistérios de Braided Shore, e muitos eventos requerem uma ou mais pessoas no seu grupo. Entretanto, com a limitação de sete jogadores por servidor, esbarrar com alguém fora dos grandes centros é quase nula. Agora, quando você os encontra e eles estão dispostos a te ajudar — ou precisam de ajuda, ou só querem companhia — é um momento mágico.
Como eu não decidi seguir as direções que foram me dadas, acabei na cidade de Myr — conhecida pela sua pesca e especiarias. Foi nela em que consegui aprender a habilidade de pescar. “Bem, de fome agora eu não morro”, refleti. Fiquei minutos, horas, eu não sei quanto tempo pescando. É um processo lento, como o restante de Book of Travels (A Might and Delight já sinalizou que irá reavaliar as mecânicas em uma futura atualização). Interrompi a minha pesca quando vi à distância alguém sinalizando com um emote de coração e apontando para o norte.
“Outro viajante! O que será que ele quer?”, pensei ao me jogar nas águas correndo até ele. Que se dane o fato de ter me molhado todo e precisar me secar perto de uma fogueira. “Sho” era o seu nome e, junto de outro viajante, seguimos por várias áreas de Braided Shores coletando conchas, fugindo de bandidos, até nos depararmos com uma caixa fechada. Era preciso três pessoas para abri-la, e nós três prontamente tentamos a sorte. Consegui uma espada — que não planejo usar tão cedo — e um conjunto de itens que me dariam uma boa “fortuna” no mercado.
Avançamos até um “esconderijo” onde havia mais caixas para serem abertas, mas nossa habilidade mecânica (determinada por itens ou pela criação de personagem e meu personagem, cujo atributo principal era personalidade, não tinha) nos impediu de prosseguir. Era necessário um grupo maior ou viajantes mais habilidosos. “Sho” soltou um coração partido.
Sem nenhuma palavra eu senti a dor dele. Imaginei o quanto tempo ele deve ter gasto para encontrar viajantes dispostos a ajudá-lo, planejar a rota e encontrar uma imensa muralha frente ao que parecia ser o seu objetivo primário. De qualquer forma, tanto eu quanto o outro viajante tentamos trazer um pouco de alento, enviamos corações, abraços, risadas. “Sho” aparentou ter ficado um pouco otimista depois de transmitirmos as nossas emoções.
A viagem demorou mais do que eu imaginava e já era tarde para mim. Me despedi do grupo e fui para a cama. Na mesma noite vieram as imagens das minhas aventuras, de “Sho” apontando para as conchas, das tentativas de abrir a caixa, do calor quente que sua tocha emanava enquanto navegávamos por uma região envolta por névoa.
Eu poderia muito bem ter ignorado todas essas tentativas de encontrar outros jogadores e ter ido direto no Discord da Might and Delight em busca de perguntas ou para organizar grupos — o que é o que muitos estão fazendo para avançar em Book of Travels. Eu não os julgo; temos dezenas de ferramentas para comunicação em 2021, wikis e guias de como fazer “A” ou “B”. Eu mesmo tive de pedir ajuda para encontrar uma habilidade para destravar uma peculiar pedra que encontrei; só fiz isso depois de múltiplas tentativas de decifrar suas frases ou perguntar para NPCs.
Mas, como disse, nem sempre as respostas que Book of Travels te dá são diretas e o que a pedra emanou para mim me trouxe mais perguntas do que respostas. Não irei me prolongar neste tema em específico pois ainda tenho muitas anotações que precisam ser vistas e revistas até eu ter uma direção definitiva.
Afinal, muitas coisas não são “definitivas” em um jogo em acesso antecipado. A Might and Delight pode ter divulgado um roadmap, mas se aventurar por Braider Shores ainda é um pouco de sorte e frustração. A primeira semana de acesso antecipado foi puro caos, com servidores sendo sobrecarregados e personagens perdidos. Eu mesmo perdi três personagens sem razão alguma.
Para quem quer jogar, a minha recomendação é selecionar algum servidor da costa leste dos EUA para que o lag não seja tão proeminente, mas não se surpreenda se alguma de suas ações demorar a ser registrada pelo servidor, ou mover-se entre uma região e outra demorar um pouco mais do que é esperado em 2021. Book of Travels está dando os seus primeiros passos em um território desconhecido pela Might And Delight, e a versão de acesso antecipado deixa isso muito bem claro.
Mesmo diante de todos esses pequenos e grandes problemas, meu coração dói toda vez que eu penso nas minhas explorações de Braided Shores. Quantas perguntas sem respostas. O que são ou para que servem os nós que estão na minha mochila? Como é possível sentir saudade de um local que não existe?
Não, ele existe, ele é real, tão real quanto qualquer outro mundo virtual que eu explorei nos últimos anos. Mas dessa vez, ao invés de ser apresentado com uma planilha de objetivos, eu fui apresentado com algo orgânico. Com a liberdade que tanto sonhei em voltar a ter em MMOs. Em não ser um “escolhido”, não derrotar um “terrível mal que assola as terras e pode destruir o mundo”. Sei que essa premissa já vem sido explorada em outros jogos, mas ela reverbera mais forte em mim dentro de Book of Travels. Nele eu sou um mero viajante, um que lentamente está preenchendo o seu livro — tanto físico quanto virtual — com perguntas, respostas e rabiscos de possíveis pontos de interesse.
E quando eu canso de rabiscar, eu sei que a casa de chá de Crossroads sempre vai estar lá para me acolher com um delicioso chá e o calor das lamparinas relaxando o meu corpo. “Encontrei tantas coisas interessantes hoje, mas agora está na hora de descansar, vamos ver o que o amanhã me trará”. Se eu fechar os olhos bem forte eu consigo sentir o calor, ouvir o som dos talheres, as vozes ecoando, as risadas, os argumentos em línguas que não conheço — o calor humano.
Amanhã vai ser um novo dia, estarei com meu livro aberto com uma página em branco, pronto para escrever e desenhar mais. Pronto para explorar mais de Braided Shores. Mais confiante? Não sei, mas definitivamente mais curioso.