Jogos de estratégia por turno, por mais tematicamente variados, tendem a cair em duas categorias: os seguem uma linha tradicional ou incluem sistemas supérfluos demais. Atualmente em fase Beta para quem é backer do Kickstarter ou no Backerkit, a Harebrained Schemes e seu BattleTech caminham para ficar ao lado de empresas como a Amplitude Studios e Every Single Soldier como uma das mais relevantes da atualidade em elevar o gênero a um novo patamar.
Assumo que as minhas esperanças pelo game estavam baixíssimas, mesmo com o pedigree da Harebrained Schemes em Shadowrun. Os RPGs tinham uma boa base de combate, mas o foco sempre foi a narrativa. Não posso opinar ainda sobre a trama de BattleTech, no entanto já posso apontar o imenso pulo que a desenvolvedora deu quando o assunto são as mecânicas.
O game baseado no universo criado pela FASA em 1984 extrai todo o seu brilhantismo pela forma que ele lida com a composição de um Mech. Não é uma unidade em si, onde um ataque dá X de dano e fica por aí. Cada unidade é uma imensa máquina movida por diversas engrenagens e camadas, complexidade que normalmente reservo apenas para títulos da Graviteam ou wargames como Command: Modern Air/Naval Operations. Sim, dois dos jogos que eu extensivamente cobri no site e que são as minhas referências para complexidade e granularidade em estratégia.
Perdoe-me de antemão por ser descritivo demais nos próximos parágrafos, mas para se entender a profundidade de BattleTech, é preciso compreender como o universo funciona e como ele trata seus mechs. Tipicamente a implementação de mechs em jogos serve para um único propósito: adicionar uma camada extra de proteção ou um inimigo com uma barra de vida um pouco maior que o restante. Em BattleTech, Mechs são como tanques, com pontos fracos e proteção variada de acordo com o tamanho, camadas de armadura e sistemas internos.
Portanto, cada mech tem uma camada externa variante e uma camada interna. A camada interna armazena os principais componentes — dissipadores de calor, munição, suporte de vida para o piloto, dentre outros. Assim que um mech oponente destrói a camada externa ele tem a chance de causar danos mais severos aos componentes e possivelmente prejudicar a funcionalidade do mech.
A implementação de tais sistemas é mais abstrata do que digamos, Mechwarrior Online, mas ainda assim não deixa de ser relevante para o combate. A cartada final para tornar o combate interessante é que diferentes armamentos têm variados graus de penetração. Lasers podem não ser tão úteis para quebrar a barreira externa, mas excelentes para danos críticos aos dissipadores de calor.
No topo disso tudo você ainda tem elementos como, mas não restritos a: Posicionamento no terreno, uso de lagos de água para redução do calor gerado pelos armamentos, diferença de altura entre o mech, flancos, estabilidade do mech — caso tenha sofrido alguma avaria na estrutura, como a perda de um braço devido ao calibre da arma — danos ou não ao piloto.
Eu olhei todas estas variáveis, meus olhos brilharam. Encontrei minha nova obsessão.
Tenho uma profunda paixão por pegar sistemas como os de BattleTech e separá-los aos menores pedaços. Entender como funcionam, como converte-los ao meu benefício. Mesmo com somente cinco mapas disponíveis no Beta, a quantidade de situações específicas que vi neles era estonteante. Listar momentos memoráveis aqui seria um trabalho de louco. Uma delas, porém, melhor demonstra a versatilidade destes mechs.
Ela começava em uma manhã nublada no mapa River Crossing. Meus mechs armados principalmente com lasers e alguns mísseis de longo alcance. O peculiar do mapa é o grande rio que corta a arena e que eu planejava usar como vantagem. Lasers tendem a aquecer demasiadamente quando disparados continuamente. A ideia era que, ao colocar um dos meus mechs no rio — possivelmente o com maior estrutura interna e externa — estabeleceria uma zona de controle e causaria problemas no avanço do inimigo graças a redução do aquecimento gerada pela água.
Só não contava com um segundo modificador, tão importante quanto estar ciente do aquecimento. Toda vez que um mech se move, é adicionado um modificador de +4 na precisão. Ou seja, mais quatro pontos que prejudicavam as chances de acerto. Os lasers reduziriam isso para +3, o que ao meu ver ainda estava em uma margem aceitável.
Mais uma vez fui pego de surpresa assim que os dois primeiros mechs cruzaram o rio. Locusts, mechs ligeiros de 20 toneladas usados para ataques de média / curta distância e reconhecimento. O meu, um Atlas e suas 100 toneladas, era de longe o alvo mais fácil para eles. Por serem pequenos demais, BattleTech adiciona mais dois pontos de modificador para as chances de acerto.
Lá estava eu, no comando de um mech gigante, parado no meio de um rio, com dois Locusts em minha volta e com baixa probabilidade de acertá-los com meus disparos. Tinha certeza que no momento que um disparo dos meus lasers atingisse a estrutura externa deles era um “adeus” para seus armamentos ou até mesmo um buraco imenso e um convite para destruir os equipamentos internos. Erro de amador.
O próximo turno começou com uma saraivada de mísseis vindo na direção do meu Atlas. Os Locusts haviam repassado a minha posição para o resto das unidades, o que permitia que mísseis lançados de outros Mechs fossem direcionados a mim. Três saraivadas e meu Atlas estava instável, um golpe corpo-a-corpo ou uma arma de grande calibre o derrubaria no chão. Dito e feito.
Um dos mechs inimigos deu a cara, um Hunchback com um Autocannon — um canhão armado com munições capazes de penetrar a estrutura interna do meu mech. Bastou um acerto para jogar o Atlas no chão. “É só esperar o próximo turno”, disse e dez segundos depois olhei incrédulo para a tela. Não era o próximo turno, eram três turnos.
O sistema de turnos de BattleTech é regido por Time Units. Cada Mech tem uma quantidade específica de iniciativa e só pode ser ativado no seu devido turno. O jogador pode escolher reservar e fazer com que o seu turno ocorra antes dos demais. Com a minha certeza que havia tomado uma ótima escolha para a posição do Atlas, não foi isso o que fiz. Agora teria de esperar o quinto turno para poder reerguer a monstruosidade de 100 toneladas do rio. Até lá os meus oponentes já teriam feito ele de gato e sapato. Mais uma vez, dito e feito.
No desespero, movi os meus outros três mechs, dois Locusts armados com metralhadoras e lasers de baixo calibre e um mech médio de 50 toneladas para atrair a atenção do oponente. Outro erro de amador, a distância entre eles e o Atlas era tão grande que minhas armas não tinham um alcance decente contra os inimigos. Boa parte dos tiros foram gastos à toa e serviram apenas para aquecer o último mech. Teria de desativar alguns armamentos nos próximos turnos para não abusar e causar danos a estrutura por superaquecimento. Me sentia em um beco sem saída. Até o primeiro Locust pisar em cima do meu Atlas.
BattleTech apontou que meu Atlas sofreu um dano crítico a estrutura externa. Sua armadura frontal havia ido embora. Outro pisão, meu piloto estava machucado. “Burro, burro, burro”, falava baixinho para mim mesmo por apostar todas as fichas em um único mech. Outra saraivada de mísseis. O braço esquerdo do meu Atlas havia se desintegrado. Contava os segundos até que seu turno começasse.
O que levantou da água nem mesmo podia ser considerado mais um Mech de 100 toneladas, era um pedaço imenso de metal retorcido que estava nos instantes finais de vida. Metade de seu arsenal havia se tornado irrelevante. A perna esquerda avariada era a garantia de uma mobilidade prejudicada. Minha única esperança era retornar para uma floresta, tentar atrair os Locusts para a área e flanqueá-los com as minhas unidades. Afinal, Locusts possuem uma armadura externa bem menos espessa do que a do Atlas. Tudo que aconteceu até era resultante de uma única decisão errada.
A tática deu perfeitamente certo. Os locusts me seguiram até a floresta, onde meu Atlas possuía bônus de cover e foram flanqueados por outras duas unidades. A proteção mais leve em suas costas e alguns tiros certeiros os destruíram em três turnos.
Já sabia que, independentemente de ter destruído duas das quatro unidades a partida estava perdida. Ato concretizado no próximo turno quando um dos mechs usou um jetpack e pousou bem em cima do meu Locust, o transformando em um amontoado de metal retorcido em chamas. O próximo turno foi o fim do meu Atlas, já avariado de tanto tapa que tomou. Concedi a partida.
“Tempo total de jogo: 1h40m”
Eu não tinha visto as horas passarem. Na minha cabeça era só uma partida intensa de no máximo 20 ou 30 minutos. Fiquei este tempo todo com a cara grudada na tela e tão atento à movimentação dos inimigos que esqueci de outras tarefas (algo que não recomendo a vocês). Minha vontade era de apertar o botão de “nova partida” e testar novos mapas, entretanto eram três horas da manhã. Parei por aquela noite e deitei pensando no que presenciei. Acordei na manhã seguinte com novas ideias de dominar o mapa, de ler sobre os armamentos e como eles afetam o campo de batalha.
Não é incomum deitar pensando em jogos de estratégia, afinal, são meu gênero favorito. Cadernos de anotação são usados para decifrar build orders em Company of Heroes 2, muitas páginas foram gastas com possíveis ações em um turno de The Operational Art of War, anotações sobre diferentes tipos de bombas e a sua eficácia podem ser encontradas em páginas soltas enquanto jogava Command: Modern Air/Naval Operations.
Ao longo de todos esses anos, dois deles me marcaram profundamente, Jagged Alliance 2 e 7.62 High Calibre. Ambos possuem nuances tão interessantes que fazem qualquer fanático por detalhes pular de alegria. 7.62, por exemplo, calcula o tempo de recarregar a munição de um rifle de acordo com o bolso que o personagem colocou o cartucho. Jagged Alliance 2, com mods da comunidade leva em consideração até se o personagem está hidratado ou não e como isso afeta seu desempenho em confrontos. Insanidade? Com certeza, mas eu amo isso.
O problema é que ambos os jogos citados, por mais que eu adoraria recomendar para mais gente, são impenetráveis em sua grande parte. É saber que cedo ou tarde alguém vai desistir por conta desses detalhes que não são passados de maneira atraente pelo jogo. Eu mesmo sofri com BattleTech por semanas, porém por conta da não existência de um tutorial, que estará presente na versão final. O maior triunfo dele, na realidade, é pegar tudo o que eu descrevi até então e apresentar de uma maneira visualmente tangível para o jogador.
Quer saber o motivo de ter apenas 75% de chance de acerto de um armamento? Basta colocar o mouse sobre a interface de ataque. Ícones apontam as variáveis — como terrenos íngremes — que podem afetar o disparo. A porcentagem de dano sofrida em cada parte que compõe um mech é mostrada na tela com um clique. Ele torna o impenetrável compreensivo. E isto é apenas uma parcela dele. No próprio Beta já existe um total de 25 tipos diferentes de Autocannons com diferentes atributos e bônus. Eu sei, eu sei, você já deve ter enlouquecido e pensando “como diabos eu vou saber qual usar? ”. Não é qual usar, é como usar.
Diferente de um XCOM, onde o armamento evolui ao longo da campanha, BattleTech é uma caixa de Lego onde você vai poder montar o seu Mech com um propósito. Ele remove a noção de existir uma “build perfeita” para qualquer situação e dá a oportunidade de adaptar o equipamento para aproveitar as fraquezas dos inimigos.
Fiz batalhas longas, curtas, testei canhões, mísseis, lança-chamas, metralhadoras, tudo isso com um imenso sorriso na cara. Pois nesse tempo todo não achei nenhuma “build perfeita”, era o conjunto de analisar o terreno, compreender o armamento do oponente, estudar qual a melhor forma de destruir a armadura externa sem pôr em risco as minhas unidades.
Minha paixão pelos games da Graviteam vem principalmente da forma que eles levam em consideração a complexidade do armamento. Fiquei boquiaberto e feliz de ver que uma munição de um veículo de médio porte havia ricocheteado da armadura de um dos meus tanques. Tudo por conta do calibre e do ângulo que acertou. Eu não esperava ter essa sensação de felicidade, de poder me debruçar sobre tabelas de dano, anotar o que pode ser útil ou não e testá-las em campo fora do universo mais realista dos wargames.
A Harebrained Schemes, até então me prova o contrário. Apresentou com o Beta de BattleTech um sistema de combate com camadas que se unem de maneira condizente, complexo, recompensador e que bate de frente com alguns dos melhores não só desse ano, mas que pode ter um espaço no meu coração do lado de Jagged Alliance 2 e Graviteam Tactics.
Eu busco ser uma pessoa contida, manter minhas expectativas baixas para futuros lançamentos, mas eu tenho de ser honesto, eu estou muito empolgado com BattleTech. Eu não tenho a menor noção se a campanha vai ser tão boa quanto o combate. Se for ao menos metade do que eu vi até agora, me darei por satisfeito. Aliás, do jeito que eu estou aficionado pelas mecânicas, precisarei de um novo caderno de anotação.”