Poucas coisas me deixam com o pé atrás ao ler palavras como “Remaster” ou “Enhanced Edition”. Ler a notícia de que um dos grandes clássicos do mundo dos RPGs, Planescape: Torment, receberia o mesmo tratamento de outros como Baldur’s Gate II e Icewind Dale me deixou ainda mais receoso. Felizmente, a Beamdog entra nos eixos e Planescape: Torment Enhanced Edition se sai melhor do que eu esperava.
Há quem diga que eu acabei por cair em uma bizarra espiral de nostalgia, e em parte eu concordo. Planescape Torment usa as agora antiquadas regras de AD&D, o combate é sofrível e em muitos momentos você vai passar horas lendo textos até que algo de importância aconteça. Mas, desde 1999 poucos mundos, personagens e eventos me cativaram tanto quanto os do game da finada Black Isle Studios.
“Hey Chief, you okay? You playin’ corpse or you puttin’ the blinds on the Dusties? I thought you were a deader for sure.”, comenta Morte, um crânio flutuante que te acompanha ao longo da jornada do Nameless One, o protagonista que acorda dentro de um mortuário sem ao menos saber como chegou lá.
Talvez uma das maiores dificuldades de simular o conceito do universo “Torment”, ainda mais especificamente a feita pelo recém-lançado Torment: Tides of Numenera, é que não se trata apenas de textos que mais parecem uma tentativa desesperada de descrever uma construção do período barroco, mas também de como eles envolvem o personagem e a busca por respostas. Tides of Numenera praticamente dá de mão beijada algumas das respostas sobre o passado do personagem e quem o assola. Já Planescape: Torment te prende de uma forma quase inigualável para fazer com que você pegue pedaços ao longo do caminho.
É uma surpresa atrás da outra, um personagem sem memória com um crânio falante que se deparam com alguém que supostamente o conheceu anos atrás, mas que agora pode não significar nada. Trata-se de uma luta constante para entender o seu lugar no mundo, o seu passado que aparentemente lhe foi tirado e a luta constante para aceitar o presente.
Os tais momentos “épicos” surgem em grande parte de uma reflexão, da conexão entre o jogador e o protagonista. Cria-se um certo intimismo e em momentos, até pena, do que o Nameless One teve de passar. Evito entrar em mais detalhes do que já disse da história, Planescape: Torment merece ser jogado do começo ao fim, sem ajuda, sem guias, sem nada.
Mas, por que escolher este ao invés de uma versão mais antiga, ou aquela versão que você tem no CD? Bem, eu compreendo que a Beamdog não tem o melhor histórico de versões “enhanced”, com Baldur’s Gate e Baldur’s Gate II sendo lançados com inúmeros bugs não presentes no original e acima de tudo, com mudanças um pouco grotescas no conteúdo. E não, não me refiro a todo o estardalhaço criado pela inclusão de um personagem transexual em Siege of the Dragonspear (apesar de achar que o problema foi a terrível forma a qual foi apresentado), mas mudanças pequenas que deixam qualquer purista louco. E eu sei que existem muitos de vocês por aí que já devem estar indignados com o fato de uma “Enhanced Edition existir”.
Superficialmente de fato não havia nada de muito errado com Planescape: Torment, bastava algumas atualizações feitas por fãs e você tinha um jogo funcional com suporte a qualquer resolução que você desejasse. Mas também, não tinha um total controle sobre certos aspectos como tamanho de fonte, zoom e outros pequenos detalhes que podem fazer toda a diferença.
Quando Felipe Pepe, encabeçado do projeto CRPG Book Project comentou em seu artigo para o Gamasutra que nós como jogadores fazemos um péssimo trabalho de preservar a história dos jogos, concordo em grande parte com ele. Mas também acredito que clássicos tratados da maneira correta, desde que tenham sua alma preservada, não devem ser considerados pejorativos de maneira geral. A Beamdog não poderia ter feito isto melhor.
Grande parte das melhorias visam a usabilidade como a adição de um botão de quicksave, uma interface remodelada para suportar resoluções 4K ou superiores, suporte a fontes maiores — o que a minha visão prejudicada agradece — um tutorial um pouquinho mais robusto para iniciantes e opções para fazer com que itens que podem ser interagidos fiquem com um contorno. Eu sei, você provavelmente já torceu o nariz para o último item, mas não se preocupa, tudo isto pode ser desativado e pessoalmente recomendo.
E, acima de tudo, esta versão está — até onde joguei, incluindo os principais acontecimentos — isenta de bugs. O suposto áudio remasterizado também não prejudica o jogo de maneira geral e, sinceramente, mal dá para notar a diferença entre ele e o original.
Planescape: Torment Enhanced Edition não faz milagres em relação a resolução interna dos cenários e em pontos, podem parecer desfocados ou levemente serrilhados. Mas isto é o de menos, é o RPG clássico em sua forma pura, sem pedaços que possam remover a sua essência. Que se dane se ele está serrilhado, desfocado ou não, do momento em que você acorda no mortuário, vê aquele mundo bizarro a sua volta, o seu desejo é apenas de conhecer mais.
Seja esta a primeira ou décima vez que joga Planescape: Torment, esta edição e o incrível trabalho pela Beamdog de respeitar o material original não poderiam ser melhores portas de entrada. E não se esqueça, “updated my journal”. Com algumas horas de jogo você vai entender isso, não se preocupe.