Com o constante crescimento da indústria de jogos andando de braços dados com a eterna busca pelo realismo visual, aumenta-se também a necessidade de estúdios adicionais para que essa visão seja alcançada. Em GTA V, por exemplo, não somente a Rockstar North criou o jogo, como desenvolvedoras subsidiarias espalhadas pelo mundo deram suporte durante a produção.
Casos como a da Rockstar e seus estúdios subsidiários, entretanto, são uma exceção à regra. O que na realidade ocorre dentro da indústria é o uso de estúdios terceirizados, criados especificamente para fornecer esse tipo de suporte. Para entender melhor como tudo isso funciona, conversamos com Braulio Cejudo, veterano da indústria, que já trabalhou nos dois lados dela, e atualmente trabalha como artista sênior (Senior Artist) em um estúdio de com foco em VR.
Diogo: Brau, nos conte um pouco sobre você e sua jornada na indústria
Brau: Trabalhei em filmes, propagandas, TV em Los Angeles, à estúdios de jogos de tamanhos variados, com objetivos, projetos e focos diferentes. Cada um deles me trouxe muitas lições e técnicas que pude carregar e me tornar mais maleável e continuar a crescer nessa indústria.
Enquanto que eu já tenha atuado com múltiplos temas e áreas, meu foco principal foi de Artista de Ambiente. Já tive os cargos de chefe e gerente de arte – onde tive responsabilidades em projetos grandes, médios e pequenos – e já fui responsável por equipes com uma diversa gama de necessidades e limitações.
Atualmente sou artista sênior em um estúdio pequeno da Finlândia focada em experiências de tamanho médio com suporte a VR. Com minha mudança recente no último verão de 2017, e depois de viver tanto na costa leste como oeste dos Estados Unidos, nunca imaginava que essa indústria me faria viajar e viver em tantos lugares diferentes. De qualquer forma, sou somente um artista com experiência o suficiente para poder dizer como algumas coisas funcionam, e talvez dar um insight do funcionamento dessa incrível indústria.
Diogo: Mesmo que alguns entusiastas saibam da existência de estúdios terceirizados em geral, pouco realmente entendem como eles funcionam. Como exatamente um estúdio, independente ou AAA, entre em contato?
Brau: Os estúdios tipicamente possuem gerentes de terceirização que mantem contato com “fornecedores” (no caso, empresas terceirizadas). O estúdio então realiza uma cotação a partir do tipo de trabalho exigido, para aí sim uma escolha ser feita com base no custo e o tempo necessário para a produção. Há casos onde testes de arte com tais empresas são feitos a fim de assegurar ao cliente que o elas são capazes de, dentro de um tempo limite, manter a qualidade e estilo de arte desejado. Esse processo é feito com diversas empresas terceirizadas e outros fatores, como a maneira a qual a empresa se comunica com o estúdio que gerencia o projeto, são levados em consideração.
Diogo: Por já ter sido um Artista principal (Lead Artist), você diria que seu trabalho termina sendo mais sobre como administrar outros artistas ao invés de criar arte, em vista de que vocês já trabalham com produtos com direção de arte já estabelecida, ou pelo menos arte conceituais já criadas? Ou existe uma liberdade nesse processo?
Brau: Depende muito de cada estúdio. No meu trabalho atual eu sou encarregado de fazer arte na maioria do tempo, mas o que é legal é que posso usar da minha arte para ajudar nas escolhas de design, influencia-las e até ajudar um pouco no código do jogo para que ele se encaixe as demandas. Esse é o ambiente que mais prefiro, onde meu input criativo tem valor, e eu posso “mudar de marcha” para o que é necessário para o jogo, ao invés de ser apenas um artista seguindo uma lista de tarefas, sem qualquer criatividade.
Diogo: No caso de animações, como é feito o processo de terceirização de animações? São fornecidas animações já finalizadas, ou somente referências?
Isso varia de quanto tempo temos para criar uma documentação, e quais recursos temos disponíveis; idealmente, tudo que é enviado para uma empresa terceirizada terá documentação completa, com referências e exemplos importantes pois facilita a criação dessas animações e faz com que menos iterações sejam necessárias.
Entretanto, após algumas iterações e animações concluídas, é comum que os exemplos se tornem mais amplos, ou “abstratos” por assim dizer. Isto quer dizer que a relação entre o estúdio encarregado pelo game e a empresas terceirizada já atingiu uma compreensão de qual o grau de qualidade é esperado, tal como cada animação ou conteúdo deve ser feito.
Diogo: Como alguém que já foi um terceirizado e agora trabalha em um estúdio que conta com essa ajuda de terceirizados, como é realizada a comunicação entre estúdios tão grandes? Como manter a visão de um jogo que não é seu? Vocês recebem artes conceituais e documentação do designer chefe?
Brau: Alguns estúdios são muito específicos no que eles procuram, enquanto outros estarão em outra fase do processo de produção, portanto então a qualidade necessária e a visão podem mudar baseados nisso. Por exemplo, é comum uma alta demanda de terceirizados para a produção de material para demos na E3, ou quando um projeto tem de ser finalizado em datas festivas ou período de férias. Como terceirizado, o período de Verão (No hemisfério Norte) era o que mais me ocupava.
No que tange manter uma visão, o mais importante é uma boa comunicação. Estabelecer encontros quinzenais, receber ou enviar uma amostra da produção de uma terceirizada para garantir que as coisas estão ao critério desejado ajudam as manter as coisas em cheque.
É importante salientar que tudo depende do tipo de pessoas, e suas preferências, com quem você tem que lidar. Alguns não gostam de criar e fazer escolhas. Em outras situações, você não quer dar essa liberdade. Depende das pessoas que trabalham no projeto, e cada um deles tende a ser diferente.
Diogo: Qual é a demanda para serviços de terceirização? É mais comum a contratação de somente um estúdio, ou vocês trabalham em conjunto com outros? Esse sendo o caso, qual é a média de estúdios necessários?
Brau: Eu diria que a demanda é bem alta. Trabalhar com terceirização me fez perceber que todos estúdios que não sejam independentes, e até algumas startups, tem interesse e necessidade de terceirização. Obviamente, quanto maior o projeto, freelancers individuais são ignorados, e fornecedores dedicados a isso são escolhidos. A maioria dos grandes projetos precisam que 60 a 70% da sua arte/assets [qualquer elementocriada que vá dentro do jogo, de arte visual, como modelos 2d e 3d ao som e texto – ed] sejam feitos fora do estúdio. De personagens a roupas, de NPC’s a artes conceituais.
Se o projeto é muito grande, eu acho difícil que esses clientes irão designar todas suas necessidades para somente um fornecedor. É por isso que se vê geralmente vê várias dessas empresas em créditos. Call of Duty, por exemplo, trabalha com 3 estúdios, um para cada aspecto do jogo, mas tendo seus fornecedores específicos para atingir o trabalho requerido. Nem todos eles são sempre listados em créditos. Eu também não penso que existe um número magico de estúdios terceirizados que são escolhidos. Você sabe o que os fornecedores são capazes caso tenha trabalhado com eles antes, você sabe quanto tempo demora e como é realizado o trabalho, mas, acima de tudo, é uma questão de fazer com que as coisas fluam bem conforme o projeto avança.
Diogo: Em que estágio do desenvolvimento existe uma maior demanda para essa terceirização?
Brau: Como mencionei anteriormente, cumprir prazos específicos necessitam desses serviços. Alguns estúdios precisam de um plano de pré-produção, outros necessitam de um protótipo para receber aprovação. Á casos de uma mudança repentina de escopo e a demanda para reajustar o jogo conforme as novas diretrizes. Acho importante dizer que é bem comum que os estúdios requererem os nossos serviços durante o desenvolvimento do jogo, e não em para ajudar com uma atualização. Sendo assim, a questão de contratar estúdios terceirizados tende a estar listado no orçamento do game desde o começo.
Diogo: Em vista de que é comum que os artistas principais do estúdio encarregado do jogo façam primeiramente a arte conceitual para fins de padronização, o que acontece no caso de estúdios terceirizados? Vocês recebem a arte conceitual diretamente do cliente e trabalham a partir disso?
Brau: Houveram vezes em que eu tive de criar artes baseada em referência vagas ou descrições. Entretanto, existem muitos casos – ainda mais quando você já trabalhou com uma empresa anteriormente – que você sabe da capacidade do artista e que ele sabe atingir o nível de qualidade desejado só com essas informações. Outras vezes o estúdio precisa de todo o processo de criação – artes conceituais, esculturas, modelos, texturas, esqueletos, animações. Como mencionado, é tudo questão de equilíbrio, escopo e orçamento.
Diogo: O “crunch” afeta o trabalho de estudos terceirizados de alguma forma?
Não importa de que lado você está, o crunch [períodos na indústria de jogos onde empresas trabalham até mais de 12 horas diárias para atingir uma meta, que tende a ocorrer próximo a datas de lançamento -ed ] sempre afeta todas as partes envolvidas. O cenário perfeito é quando o orçamento enviado para as empresas terceirizadas permitem que eles quantas pessoas necessárias para que isso não aconteça. Mas para ser realista, os projetos têm a tendência de serem feitos com uma equipe menor do que o necessário, e acaba que o crunch vem por conta dessas decisões. No fim das contas, é sobre atingir os prazos com o melhor trabalho possível para que se possa continuar um bom relacionamento com a empresa que o contratou e para que os desenvolvedores consigam lançar o jogo a tempo.
Diogo: Mesmo com a homogeneização de engines como a Unreal e Unity, e o desaparecimento de engines proprietárias vem se tornando uma realidade, como é trabalhar com várias engines? O que difere um projeto feito com Unreal ou Unity, e como isso afeta a workflow?
Brau: Engines [motor do jogo, são o conjunto de bibliotecas, como som, física, etc, para facilitar simplificar o seu desenvolvimento -ed] diferentes significam somente especificações diferentes. Hoje em dia é mais fácil, devido ao fato de que elas suportam os mesmos formatos, então não importa o pacote que você usa, é muito mais fácil inserir o seu trabalho e conseguir o mesmo resultado. São as últimas modificações e polimentos que tomam mais tempo, onde é necessário ter certeza que todas as artes feitas se encaixam de forma consistente.
Eu creio, no entanto, que é mais questão do quanto o projeto afeta a arte criada para ele do que o contrário. Tudo depende do tipo de jogo, quais objetivos e requerimentos, para que assim possamos levar em conta as restrições.
Por exemplo, conteúdo para um jogo em terceira pessoa são diferentes de um jogo VR; a plataforma para a qual ele vai ser lançado já traz uma grande diferença. De forma geral eu creio que essas necessidades e limitações se equilibram de acordo com a mídia usada. Claro que com hardware melhor, podemos ser mais ambiciosos, e deixar o jogo ainda mais esteticamente bonito. Uma coisa é certeza, nunca é um trabalho fácil.
Diogo: Em vista do quão comum um Lead Artist trabalha com a equipe de programação, para assegurar que conteúdos como animações e modelos, sejam facilmente importados para a engine, como isso funciona nos casos de terceirização? Você trabalha diretamente com o programador chefe do jogo, ou a homogeneização de engines tornou todo esse processo mais fácil?
Brau: Tudo isso depende muito de quais recursos e necessidades estúdios tem e precisam. Eu já trabalhei em projetos onde era dado acesso direto ao repositório online do estúdio, o que nos permitia adicionar nosso conteúdo diretamente para seus servidores. Em outros, entregávamos um pacote com tudo nomeado, organizado conforme as necessidades do cliente.
Eu diria que quanto menor a equipe e o projeto, mais fácil se torna essa troca. Agora, em projetos grandes – com 40 a 100 peças produzidas – é necessária uma rigorosa garantia de qualidade. Como você tem de lidar com pessoas de diferentes localidades, e aptidões, a questão fica para manter o trabalho consistente e muitas vezes isso se torna um desafio de acordo com os objetivos almejados visualmente para o game. Nesses casos, é possível que tenhamos de conversar diretamente com os chefes de arte e os responsáveis pela implementação da tecnologia ou ajuste da engine para o game. Mas isso é mais uma exceção do que uma regra, como apontei, é tudo questão de criar esse relacionamento profissional com outros estúdios.
Diogo: Muito obrigado pelo seu tempo!
Todas as imagens usadas no artigo são de direito autoral de Braulio Cejudo, que concedeu autorização a usá-las Para conhecer mais sobre seu trabalho, acesse a página do artista no ArtStation. A entrevista foi editada para fins de clareza.