Eu recebi uma notícia horrível no mesmo dia em que terminei GRIS. Joguei-me na cama e ali fiquei por minutos. Ou foram horas? Não importa; o que importa é que a notícia me fez repensar meus planos para o futuro, meu propósito. Por que escrever esse texto? Por que continuar a investir meu tempo e energia aqui, e não em outro lugar? Duvidei das minhas próprias respostas, e assim me lembrei dos relaxantes e enigmáticos cenários do game da Numata Studio… e da paz que eu senti em visitá-los.
Naquela mesma noite eu sonhei que estava em uma praia. Eu não gosto muito de praia, mas sinto falta do mar — de olhar as ondas e ouvir o barulho delas quebrando na costa. Também notei que deixei aquele sonho ser influenciado pelas estranhas pinturas e seres que habitam as profundezas do mundo de GRIS. Do mar surgiam peixes que não conhecia, capazes de cruzar o céu, de tomarem novas formas. Foi quando acordei que percebi que não eram só os peixes que tomavam novas formas; dentro de mim, a notícia também provocava movimento, mudança: a necessidade de tomar uma atitude, uma posição.
GRIS é um jogo que pede para que você se injete nele, que assuma as suas dores e acompanhe a sua jornada de perto. Para alguém como eu, que já havia sofrido uma série de golpes nos dias anteriores… sabia que ia ser doloroso. A história da jovem sem nome é uma que eu conheço muito bem, algo fácil de reconhecer nos artigos em que escrevi extensivamente sobre o não pertencimento em um local e a forma como criamos — ou usamos artifícios — para estabelecer esses espaços temporários.
Esses foram assuntos que moldaram – e continuam a moldar – quem eu sou. Pois, por mais que uma situação tenha sido colocada no passado, a experiência de (re)vivê-la continua tão intensa quanto na época. Não se trata necessariamente de ter medo de viver, mas de lembrar o que passou, e saber se e quando essas coisas podem acontecer de novo, estar preparado para eventuais tropeços.
Não significa que os golpes que a vida vai te dar vão ser menos dolorosos, só que o impacto vai ser mais amortecido. Saber isso, é claro, não preveniu o impacto da notícia que recebi. Logo após, o que fiz foi continuar na cama no dia seguinte, e lentamente cortar contato com pessoas ao meu redor (salvo as mais importantes). É uma falácia em que muitos com depressão e ansiedade tendem a cair, e não os julgo por isso afinal eu mesmo o faço: acreditar que dessa vez você vai ser forte o suficiente, que você não vai precisar de tanta ajuda assim, que compartilhar vai ser mais uma “dor de cabeça” para eles — mesmo que eles nunca tenham de fato demonstrado qualquer sinal de que você é um incômodo na vida deles. Mas a mente prega peças, ela mente para você, ela diz que você está errado, que na realidade você é um incômodo; as pessoas só são educadas demais para te dizerem isso, para serem honestas com você da mesma forma que você não é honesto consigo.
Quando você entra nesse estado, as tarefas mundanas do cotidiano – ir para a academia, escovar os dentes, até mesmo o ritmo lento do trabalho – viram um borrão, pois se está inteiramente focado em outra coisa. E isso aconteceu comigo enquanto jogava GRIS. Antes de mais nada, é um jogo ao qual não falta competência: é um excelentíssimo jogo de exploração e quebra-cabeça, não deixa o ritmo cair na hora de entregar desafios e soluções de puzzles, nem em qualquer momento me senti desmotivado ou empacado. Mas para mim os quebra-cabeças acabaram se misturando ao modo como via tarefas do cotidiano: como algo que se faz para sobreviver, existir. E o simples ato de existir é muitas vezes doloroso, confuso e árduo.
“Está tudo bem?” “Sim”, respondi rispidamente à primeira pessoa que me perguntou o motivo do silêncio após a notícia. Não era hora de conversar sobre isso. Eu não estava bem para isso. Mas sabia que também não poderia me manter preso a esse silêncio pelo resto da minha vida.
Abrir a boca, aceitar que algo terrível aconteceu na sua vida, que 2018 mais uma vez arruinou planos, bem agora no final do ano, é o último soco que eu não queria levar da vida. Voltei-me para GRIS mais uma vez em busca de respostas. Olhava sua paisagem calma e pensava se não poderia transformar a minha mente nos mesmos jardins, florestas e oceanos que ele me demonstrou. Poderia, mas para isso eu precisaria aceitar, e abrir a minha mente, abrir o meu coração para as pessoas que estão ao meu redor.
Existe, para mim, uma grande diferença entre aceitação e compreensão. Aceitar é o simples ato de acalmar o coração para um evento que aconteceu — não significa que o motivo desse evento esteja exatamente claro. A jornada da protagonista de GRIS, uma que visa muito a aceitação e a compreensão de si mesma — por meios que nem sempre são claros para nós espectadores — é uma com a qual eu me identifico ainda mais depois dos acontecimentos recentes.
São inúmeros os momentos onde eu “aceitei” situações antes de finalmente compreendê-las. Olhando para trás, eu diria que esse período teria sido mil vezes mais longo antes de eu começar a escrever sobre meus problemas publicamente, aceitar os meus defeitos e aceitar que eu tenho severas limitações. Foi ao ter vasculhado por mensagens antigas há algumas semanas que eu notei o quanto mudei — o quanto melhorei — e me tornei mais forte quando fiz isso.
Em um dado momento do jogo, minha garganta deu um nó, pois eu vi todas essas situações virarem algo visual… não, mais que visual. Minha pele arrepiou ao lembrar de tudo que aconteceu em 2018, em 2017, 2016 — quando eu escrevi pela primeira vez sobre SOMA. Talvez aquele tenha sido o momento em que eu realmente notei que eu precisava de ajuda, e que eu precisava dela o mais rápido possível.
Como a protagonista, eu acredito me sentir mais forte, mais competente hoje em dia. Mais… humano e sincero comigo mesmo. GRIS me ajudou a, mais uma vez, enxergar todas essas qualidades em mim, mitigar um pouco da dor da notícia. Aceitar que foi só uma notícia, que nada de ruim aconteceu ainda, e que não necessariamente vai acontecer tão cedo. (Perdoe-me por soar tão críptico, a notícia é de cunho pessoal e relacionada a minha saúde).
No final das contas, foi GRIS que me fez aceitar que era hora de compartilhar a notícia com as outras pessoas, que eu precisava fazer isso, e não carregar o fardo sozinho. Que o mundo poderia não ficar coberto de cores como as cores que vi explodirem na tela graças ao belo trabalho da Numata Studio, mas que ao menos poderia ser um pouquinho mais vivo, mais feliz. Eu ainda não compreendi o escopo da negatividade que a notícia me trouxe; isso ainda vai demorar dias – quiçá semanas. Mas eu ainda estou aqui, estou de pé, estou escrevendo esse texto.
Eu não sei se GRIS vai ser celebrado como o melhor jogo do ano, o mais bonito, o melhor nisto ou naquilo. Há jogos que chegam na hora certa para te dar o apoio que você precisa, dar aquele empurrãozinho para você se sentir mais forte. Quando comecei a tomar os meus remédios eu passei por um longo período de fortes enjoos e a única coisa que me manteve em pé era jogar Devil Daggers. Agora, quando eu mais precisei mais uma vez, GRIS apareceu.
Pode ser que ele vire só um “jogo bonito” na sua memória, ou mais um jogo de quebra-cabeça que você jogou em 2018. Mas eu espero – torço – para que as belas paisagens, a trilha sonora, a sutileza do movimento e as cores vibrantes tenham o mesmo impacto que tiveram na minha vida. Que você olhe as imagens abaixo, e saboreie momentos especiais. No silêncio, aí do outro lado da tela.