Aviso: O artigo contém spoilers sobre a história. Uma tempestade era vista à distância. A base de uma árvore era o suficiente para reunir todos pertences do personagem: uma foto e uma caixa de correio. Seria tudo o que ele conquistou, ou tudo que ele deixaria para trás? Não importava; a máquina estava abastecida e preparada para a viagem. Um clique no acelerador e ela se acendeu, engasgando, vencendo a inércia para enfim entrar em movimento. Em breve estaria na estrada de FAR: Lone Sails, sem saber direito nem o meu destino nem o do meu personagem.
O game da Okomotive conta uma curta jornada de três horas sobre você e um veículo imenso que se assemelha a uma locomotiva, uma máquina que parece que vai desmontar a cada rangido que suas rodas fazem ao trafegar em um mundo estranho e ao mesmo tempo acolhedor.
Esse acolhimento surge do aspecto simbiótico do protagonista e da locomotiva. A máquina faz o trabalho pesado — o transporte e acolhimento. Sem ela, ele não seria nada; e sem ele ela não seria nada. O intimismo criado pela Okomotive não é incomum quando se trata de games. Sempre nos prendemos a algo, um personagem — inanimado ou não — um local, uma memória.
Empecilhos no caminho colocam a locomotiva à prova. Portões, tempestades, ventanias. Você a melhora e a expande — protegendo-se mais e mais, e começando a esquecer o mundo ao seu redor. Me preocupava mais em manter a locomotiva em funcionamento do que em apreciar os cenários que FAR: Lone Sails me proporcionava. Voltei para o meu interior, ao invés de ter coragem de enfrentar o exterior. Cada engasgada dessa máquina era uma batida que o meu coração pulava. Seria necessário deixá-la de lado? Esquecê-la? Não, não tinha como. Ela era a única proteção que eu tinha contra o mundo externo.
A locomotiva de FAR: Lone Sails não é tão diferente das diferentes máquinas — mecanismos — que criei para me proteger contra o mundo externo. Prefiro optar por usar o termo máquina ao invés de máscaras, pois creio que todos nós tenhamos (ao menos) uma. Tais máscaras servem ocasionalmente para enfrentar uma situação. Depois as tiramos, como alguém que tira a maquiagem do rosto. Vemos novamente quem somos de verdade. É diferente com as máquinas: estamos presas a elas, ao seu maquinário; mantê-las em funcionamento é um processo de sermos assimilados por elas.
Um dos termos favoritos que vi nos últimos meses foi “depression nest”, ou “ninho da depressão”, em tradução livre. Longe de ser pejorativo, o termo se refere ao conjunto de mecanismos — a máquina — que é criado para estabelecer um espaço seguro quando sua depressão está no auge. Para uns, o quarto, a cama, a mesa, o computador. Você faz de tudo para mantê-lo em funcionamento, você adiciona o combustível, garante que tudo que precisa está ao seu redor. E, lentamente, esquece o mundo exterior.
Vi muito do meu próprio ninho dentro da locomotiva de FAR: Lone Sails. Sair de um deles, me separar da máquina que eu criei para manter meu funcionamento… em muitos dias parece ser impossível. Por que eu iria fazer isso, se estou aconchegado?
Notei algum tempo atrás, em uma das ruas que tendo a pegar no caminho para o metrô, que o local onde ficava uma antiga loja de departamento agora dava lugar para um belo café. Como alguém que tem um imenso apreço por conhecer novos lugares como esse, não haveria nada mais natural do que imediatamente entrar e pedir um café. Hesitei, e decidi voltar para o trabalho.
“Estou sem tempo” foi a desculpa. Não estava sem tempo; tinha todo o tempo do mundo. Mas o medo de deixar que o mundo externo causasse algum impacto é tanto, que é mais fácil achar alguma coisa para botar a culpa. Peguei a minha “locomotiva” e fui embora.
Se eu tinha tamanha confiança na minha locomotiva, não tinha tanta na que pilotava em FAR: Lone Sails, especialmente depois de uma de suas rodas quebrar. Entrei em desespero, não sabia o que fazer — tal como seria se isso acontecesse com a minha locomotiva. O mundo de FAR: Lone Sails me levou para uma oficina, me deu rodas mais poderosas e mais duráveis. Como o café e a loja de departamento, não percebi em que ponto ele trocou as suas pastagens e seus animais pelo caos e pela destruição.
O cenário proeminente agora era de abandono; antigas indústrias, antigas promessas, antigos sonhos. Espiava de tempos em tempos, do topo da minha locomotiva, até que encontrei uma locomotiva ainda maior. Suas portas estavam abertas como um imenso abraço de alguém querido. Voltou o sentimento de aconchego, segurança, e a certeza de que a viagem seria concluída. A dependência em FAR: Lone Sails saiu de mim — o protagonista — com a locomotiva, para a dependência de terceiros, a locomotiva maior.
Não dá para deixar a sua vida nas mãos dos outros, deixar que os outros tomem todas as decisões por você. Cedo ou tarde algo vai dar errado; cedo ou tarde esse aconchego vai embora, porque o que você quer não equivale ao que o outro quer.
O aconchego desapareceu assim que a locomotiva maior de FAR: Lone Sails sacudiu, resmungou, entrou em colapso, e em chamas. Idade, problemas, desejos diferentes, não sabia a causa, mas também pouco importava; estava focado em decifrar como eu ia prosseguir sem a camada de proteção com a qual fiquei habituado.
O que me afetou ainda mais nesse segmento foi perceber que eu mesmo já tive as minhas “locomotivas maiores”, e me deixei ser guiado por elas. E, quanto mais confiante me sentia dentro delas, menos preparado estava para enfrentar o mundo externo.
Bastava uma onda de choque para me colocar de volta no ninho. Não quero ver, aceitar, enfrentar. Volto para onde é seguro. Quanto mais tempo passo nele, mais percebo que os menores tremores agora eram motivo de incômodo. Tudo tem de ser perfeito, planejado, calculado. Mas a vida nunca é assim.
Eu não estou — e jamais estarei — em posição de dizer o que causou a criação do “seu” ninho. Medo, insegurança, dificuldade de perdoar a si mesmo, de perdoar os erros do passado. A máquina que criou para si, no entanto, não é uma reflexão de quem você realmente é. Foi a conceitualização que você criou ao longo dos anos. Foi o que aconteceu a mim: os erros do passado se acumularam. A dificuldade de aceitar que eu amadureci, que eu melhorei — que eu sou uma pessoa melhor — tanto me impediram, como ainda me impedem de abandoná-lo.
A grande dificuldade de não perdoar o seu passado é que você acaba preso em um eterno loop de autoflagelação e decepção consigo mesmo. É preciso dar esse passo adiante, entender o que fez de errado, parar de se culpar por tudo. Ver que essa locomotiva não pode existir para sempre. Quanto mais sentia que me impossibilitava, mais eu tentava, e falhava. Me desapontava comigo mesmo, e queria desistir.
Mas nada te prepara para os momentos em que, invariavelmente, forças externas arrancam esse ninho, essa locomotiva de você. Em FAR: Lone Sails, foi um vulcão em erupção, que fez com que a minha locomotiva se partisse ao meio.
Em um ato de desespero, ou de dificuldade de aceitação da realidade, arrastei o restante dela por um cabo. A locomotiva, como a conhecia ao longo dessa jornada, não existia mais; era uma memória. Subi no topo dela e icei as velas, pois não estava preparado para seguir adiante sozinho.
Me vi em uma praia e uma pira me aguardava no topo de uma escada. A escapatória daquele mundo, daquele tormento, a etapa final, pois teria de deixar minha locomotiva para trás caso quisesse acendê-la. Abaixei as velas, hesitante. Soltei o cabo, soltei meu personagem daquele mundo de aconchego e o liberei para um mundo real, com os positivos e os negativos que vêm com ele.
O coração palpitava a cada degrau. Apontei para a pira e chama se acendeu. Lá estava eu e minha locomotiva. Percebi que ao meu redor estavam tantas outras locomotivas. Resquícios de ninhos, sinais de que outras pessoas fizeram aquela mesma jornada e abandonaram a segurança das suas locomotivas.
As ondas do mar e o barulho do vento me faziam companhia enquanto a noite caía. Meu personagem estava, por ora, livre de seu ninho. Finalmente via o mundo sem medo de enfrentá-lo. A tempestade passou, a caixa de correio e a fotografia não estavam mais com meu personagem. Se juntaram à locomotiva, memórias que merecem ser guardadas para que ele se lembre o quanto ele evoluiu, e da coragem que teve de deixar tudo para trás na esperança de algo melhor no futuro.
Não sei quando irei me desfazer do meu ninho, nem se tenho estruturas para isso no momento. Espero ter essa mesma coragem desse pequeno ser sem nome. Que eu abandone a minha locomotiva e vá para lugares distantes, veja o mundo como ele realmente é, e não tenha medo de enfrentá-lo.