Quatro dias de viagem; corre para lá, para cá, faz mala, entra no metrô, check-in, check-out, come, dorme, acorda, come. Planos de viagem, roteiros, etc. Tudo milimetricamente calculado. Nessas horas eu queria ser alguém que não precisasse ter tanto “controle” sobre o que eu faço ou ter a noção de que tenho de seguir um “roteiro”. E quando eu não quero ter essa sensação de controle eu tipicamente me volto para jogos — principalmente aqueles que me deixam seguir o ritmo que eu quero ou onde eu possa intercalar as tarefas essenciais com um pouco de improviso. Sentar depois dessa viagem e jogar Far Cry 5 me fez constatar que ele não é uma dessas opções.
Ao longo dos anos a Ubisoft tem se tornado uma empresa excepcional em aplicar um design que por ora chamarei de “tudo e nada”. Tudo para fazer, nada para mostrar. Não é uma situação recente; ela já foi muito bem documentada em 2013 por Super BunnyHop, que mostrou claramente o abrangente uso de tendências no espaço “AAA” que abraça todo tipo de categoria: um pouco de survival, de crafting, de stealth, um mundo aberto e possivelmente colecionáveis. Você deve perceber que é fácil encaixar vários títulos da Ubisoft nessa descrição, como Assassin’s Creed: Origins, Ghost Recon Wildlands, Far Cry 3, 4, Watch Dogs / Watch Dogs 2. Eles têm a sua fatia de problemas quanto à aplicação desse conceito; entretanto, Far Cry 5 amplifica isso muito além do que a empresa fez até então.
Far Cry 5 não quer a sua atenção; ele implora por ela a cada segundo até ficar inconveniente.
“O jogador não pode ficar um segundo sem ter o que fazer” é o que me indica Far Cry 5 depois da missão introdutória, na qual sou apresentado ao condado de Hope, em Montana, que foi tomado pelo culto Project at Eden’s Gate, encabeçado pelo vilão Joseph Seed. Cinco minutos de partida e dou de cara com um urso. Fujo para o meio da floresta e encontro um posto avançado do culto; um tiroteio se desenrola comigo saindo vitorioso. Hora do descanso? Nada disso, o posto avançado ficava colado com uma das missões principais, na qual fui praticamente jogado à força pelo jogo para continuar o ritmo frenético. Qual o motivo dela? Por que eu deveria me preocupar com as questões que uma personagem me propunha? Aliás, quem era ela?!
A curto prazo não é algo que parece incomodar; Ghost Recon Wildlands traz situações similares e não me fez desistir de jogar por causa disso. Posso até dizer que Assassin’s Creed: Origins não difere tanto assim — ainda mais com eventos, a tentativa de torná-lo em um “serviço”, e atualizações constantes que tentam popular o mapa com mais coisas a serem feitas.
O que ambos os jogos fazem de forma muito mais positiva do que Far Cry 5 reside, principalmente, no escopo.
Há um “espaçamento” entre as ações quando você trafega de um ponto A ao B nos outros jogos da Ubisoft. Não prolongado o suficiente para te tirar da experiência, mas também não curto demais para se sentir sufocado.
O artigo de Amr Al-aaser trata melhor desse efeito ao relacioná-lo com o uso de “espaço negativo” na arte – conceito este que é aplicado a todo espaço que não é usado pelo ponto focal ou o sujeito central de uma imagem.
Como muito bem pontuado por ele, é o uso do espaço negativo que faz com que jogos como Life is Strange funcionem: ele dá ao jogador tempo para sentar e observar as imagens ou refletir sobre acontecimentos. O uso do espaço negativo também é muito presente em jogos como The Long Dark, Rain World, Kingdom Come: Deliverance, STALKER, dentre tantos outros. Todos esses jogos são ricos em situações improvisadas — sejam elas oriundas de uma escolha ou de uma missão semi-linear — mas há sempre um espaço para respirar e refletir. Até mesmo nos momentos de extrema violência – como ao se defender de um grupo de bandidos em Stalker – o jogo dá um tempo para que você respire fundo, reflita sobre o que fez, como o fez, quando o fez, e se foi o curso correto a ser tomado.
Uma comparação essencial é a segunda área de STALKER: Shadow of Chernobyl, onde o jogador tem de se preparar para defender um cemitério de helicópteros de um ataque de bandidos. Um NPC te alerta do possível ataque, e com isso dá ao jogador tempo para preparar as suas defesas. Há diversas formas de realizá-la, mas independentemente da escolha, ambos os lados sofrerão baixas. Às vezes o próprio NPC que te deu a quest pode morrer; outras vezes só você pode restar vivo, e, em situações raras, sair “vitorioso”.
As cenas posteriores ao ataque são sempre horrendas. A pilha de corpos, o silêncio interrompido somente pelo vento cortante e os ocasionais grunhidos da “Zone”. Joguei STALKER: SoC dezenas de vezes e ainda é um acontecimento impactante para mim.
Queria poder dizer o mesmo a respeito de Far Cry 5, que não só não te dá eventos assim, como faz com que situações de defesa de uma região sejam nada mais do que um mini game. Vá ali, defenda uma área, morte de um lado e de outro; fim. Uma tela de “vitória” aparece com fogos e tudo. Parabéns, você venceu! Que se dane o custo, não pense sobre ele, não há espaço para isso aqui, vamos para a próxima missão.
Quando Far Cry 5 remove a sensação de espaço negativo ele te previne de pensar sobre as situações, de considerar a sua narrativa ou o contexto a que ela se aplica. Uma sobrecarga de informações criada para você ser condicionado a agir sem cogitar consequências.
Não era algo que imaginaria acontecer com Far Cry 5, tendo em vista o escopo — três regiões com missões e eventos separados. Todavia, ao fazer que essas regiões sejam vastamente populadas por situações espontâneas (ursos que aparecem do nada, muitos postos avançados, áreas com “segredos”, personagens que precisam de resgates), Far Cry 5 amplifica o não-diálogo entre o ele e o jogador. Seja na floresta, no rio ou no lago, algo tem de ser feito a todo momento, naquele momento.
Tal presunção de constante necessidade por interação para jogador também prejudica o próprio estabelecimento de Montana como um local “real”. Não existe um processo de absorção do ambiente ao seu redor ou a criação de pontos de referência relevantes; a relevância pende quase sempre para o lado das ações que são feitas naquele local.
Levanto também a questão de densidade vs interação, aqui sustentada pelo artigo de Konstantinos Dimopoulos sobre a implicação de densidade e complexidade em uma cidade. Em seu artigo ele aponta: “Pequenas cenas urbanas e áreas minuciosamente selecionadas podem funcionar de forma brilhante para a implicação de tamanho, complexidade, função urbana e textura. Nos permite conjurar imagens de uma vida cotidiana. Em demonstrar a criação [o jogo] de uma forma fácil de ser resumida.”.
Far Cry 5 não se apropria de dispositivos que possam definir o condado de Hope como uma área onde a vida humana se expandiu de forma natural; por exemplo, mais densamente em áreas próximas a rios ou locais de mineração / corte de árvores. Cidades são escassas e muitas vezes ignoradas em favor dos postos avançados, que por si apresentam-se mais como um “elemento de um jogo” do que inseridos dentro do contexto — como um posto que surgiu naturalmente da dominância do Project at Eden’s Gate.
Você não precisa ir longe para ver exemplos de uma expansão natural da sociedade — seja o game ambientado em um local real ou não. Nier: Automata demonstra bem o colapso da sociedade, Euro Truck Simulator transmite bem a noção de trafegar por espaços contínuos que carregam a essência da vida humana (cargas, viajantes, pessoas); ou Sunless Sea / Skies, que sempre demarca seu território com locais icônicos e junto a eles uma seleção de histórias para fundamentar a sua existência.
Por conta dessa carência o jogo não “vende” a noção de que ele não é nada mais do que um “jogo”, ele não consegue “criar imersão”. Ele te puxa para fora da “experiência” para enfiar mais missões ou eventos goela abaixo.
Mais missões e eventos equivalem a menos espaço para refletir sobre as peculiaridades da região. E quando não existe espaço para reflexão, não existe motivo para entulhar a tela de ícones (como faziam jogos antigos da Ubisoft e outros jogos da categoria “AAA”, como Horizon Zero Dawn) ou desenvolver um mapa que possa ser bem interpretado. Aliás, o mapa de Far Cry 5 é um dos mais fracos em iconografia de toda a série. Afinal, para que indicar um novo item colecionável ou resumir a região em um mapa fácil de ser entendido se há um processo de automatização e condicionamento do jogador para coletá-los?
Devo distinguir aqui, porém, a diferença entre essa automatização e a inserção de elementos colecionáveis no loop de um jogo. Vamos quebrar o “core loop” de Far Cry 5 em: realizar ações para a liberação de regiões (liberação de postos avançados, destruição de equipamento inimigo) -> missões principais -> mover-se para uma nova região. Dentro deste há ações secundárias como o próprio ato do combate em si — pois, mesmo sendo um jogo de combate, a destruição ou liberação de outposts não necessariamente requer que haja um confronto direto — a coleta de materiais e criação de itens. Em terceiro chegam as histórias secundárias, companheiros, desafios, quests, perks e itens colecionáveis.
Forma-se um sanduíche de loops, um onde cada camada se interliga muito bem com a outra. Há quem diga que isso sim é um design de sucesso, e não estaria errado caso o contexto fosse outro. O problema é que você vai de um core loop para outro e depois para outro sem fim, sem hora para parar. Itens colecionáveis, consequentemente, viram uma extensão do loop principal ao invés de objetos que podem despertar o interesse em uma região específica ou tirar o jogador da rota principal e “presenteá-lo” com uma descoberta. Afinal, não existe nada a ser propriamente descoberto em Far Cry 5.
Muitas vezes eu cogitei em colocar Far Cry 5 na categoria “comfort food gaming”, aquele tipo de jogo cujo loop é tão bem aclimatado que vira algo natural. Eu jogo Diablo por conta disso, como comentei na minha análise de Metal Gear Survive, e até mesmo meus simuladores de fazenda me dão essa sensação de conforto pela repetição. Porém, o que defino como conforto significa também que há espaço na minha cabeça para pensar em outras coisas.
Em Far Cry 5 tudo o que importava era o ali e agora, a exigência de uma atenção minuciosa — mas desprovida de nuance ou reflexão — na situação. Deveria usar um arco ou um rifle? Molotov ou granadas? Que se dane, usemos ambos. Que diferença faz? Tudo é tão destituído de contexto que nem sempre essas ações têm um pano de fundo ou uma razão para existirem. Destruir por destruir, matar por matar, liberar região por liberar região.
A história deveria aqui entrar como justificativa ou motivador, mas quem tem tempo para isso? Você não foi condicionado a pensar sobre ela, você foi condicionado a agir sob circunstâncias extremas. O que torna a narrativa do game da Ubisoft — que já é patética com os falsos paralelos entre situações da realidade e um culto que não é bem um culto e cujo “vilão” é uma piada de mau gosto inconsistente como o restante dos coadjuvantes — ainda mais irrelevante.
Quando esses elementos são colocados lado a lado, Far Cry 5 não é nada mais do que um belo monumento e local que poderia ser explorado de inúmeras formas, mas que no fundo é tão vazio quanto a sua proposta.
Você não libera Montana da opressão. Você não salva pessoas. Você nem ao menos libera a si mesmo das garras do falso conforto em interagir com o que já é conhecido. Pelo contrário, abraçar a proposta do jogo é tirar de si mesmo temporariamente a capacidade de cognitividade. Não aprenda, não conheça, não reflita. Só aja.
“Tirar” de si o pensamento crítico é tentar se ausentar de culpa, é fingir que não faz parte do problema, ou que não a enxerga. Far Cry 5 é o condicionamento extremo do jogador para este tipo de atitude. Olho para o game e me sinto sufocado – sufocado pela constante exploração do cenário, pela ação ininterrupta e pela desastrosa violência sem sentido. Jogá-lo e dar tiros a torto e a direito sem nem tempo de respirar, me faz pensar que poderia aproveitar meu tempo e a minha vida em jogos ou atividades que dêem espaço tanto para diversão quanto reflexão. Mais do que isso; ele cria em mim o desejo de buscar essas coisas.
Recomendo que faça isso.