As sombras contam mentiras, os sonhos me contam verdades. Seria o contrário? Eu não sei bem ao certo, sinto que estou enlouquecendo. Os fragmentos de memórias fazem pouco sentido, os livros me indicam o caminho para conhecer mais a fundo. Tenho medo, porém — medo do que pode vir, do que posso descobrir. Cultist Simulator (Steam) me deixou desconfortável, muito desconfortável.
Antes de enlouquecer eu era — ou melhor, meu personagem era — um escrivão no game de tabuleiro da Weather Factory, encabeçada por Alexis Kennedy e Lotti Bevan (Sunless Sea / Fallen London). Pouco dinheiro, pouco tempo, muita imaginação e curiosidade sobre o oculto. Depois de ser demitido do meu trabalho, recebi uma estranha carta e direções para uma livraria. Com o pouco dinheiro que tinha, comprei um dos livros e foi aí que dei início a minha jornada ao bizarro mundo do ocultismo — deuses cujos nomes não devem ser pronunciados e frases desconexas.
Previsto para 31 de maio, Cultist Simulator está muito longe do seu típico jogo de tabuleiro. Primeiro porque ele é em tempo real, e ações são simplificadas como pequenas caixas quadradas onde você coloca as cartas e espera um período (em segundos) até se concretizarem. E as cartas em si atendem a um propósito não só funcional, mas também narrativo, já que são também o principal meio de prosseguir na história e compreendê-la.
Ele funciona em duas esferas: a de sobrevivência e a de obtenção de conhecimento. A de sobrevivência, como você pode presumir, está relacionada à necessidade de trabalhar, se alimentar e ter saúde. Parte dessas tarefas são automatizadas; tenha dinheiro no bolso e você automaticamente irá comprar comida para se alimentar. Comida garantirá cartas de vitalidade, ou seja, saúde. Sem dinheiro você poderá adoecer, passar fome, e não conseguir aprender.
Ninguém nasce sabendo sobre ocultismo, muito menos um mero escrivão curioso. Para garantir o aprendizado sobre esse estranho universo é preciso então saber equilibrar a necessidade de trabalhar e sobreviver com o investimento de dinheiro para comprar livros e de “tempo livre” para estudá-los.
Coloco aspas no tempo livre de forma deliberada, pois não há exatamente um conceito de tempo. Você pode trabalhar e sonhar ao mesmo tempo, estudar, etc. O segredo fica em saber quando fazer essas tarefas com as cartas que tem em mãos, e o atributo que elas possuem.
Antes que você sequer pense em atributos tradicionais, como força ou destreza, as cartas de Cultist Simulator atuam primariamente em três frentes: objetos, sensações, ou verbos. Pegue, por exemplo, o ato de sonhar, um dos principais elementos do começo da partida. Inicialmente eu sonhava usando a razão (uma carta que você sempre tem em mãos ao iniciar um novo jogo). Para sonhar, eu colocava essa carta da razão dentro da caixa “sonhar” e aguardava até que o timer chegasse a zero para ver o resultado. O sonho me dava imagens do trabalho, de coisas que meu personagem havia feito anteriormente, e uma pontinha de coisas estranhas. Campos verdes, uma sensação de paz que depois era envolta em escuridão. Esquisito, não?
Decidi então sonhar usando a paixão (outra carta da mão inicial). Os sonhos começaram a se tornar mais esquisitos, mais confusos, como se algo ou alguém quisesse falar comigo. Foi com essa “paixão” que eu comecei a ler livros que eu havia comprado. Essa paixão me trouxe conhecimento, que me trouxe “iluminação”. Foi essa a primeira carta que me abriu ao mundo do ocultismo, e os perigos que ele traz.
Não tardou para que minhas investigações sobre livros supostamente impossíveis de serem traduzidos atraísse o olhar de curiosos. Era alguém sem nome, denominado por Cultist Simulator como um “Hanger-On”. Um novo caminho havia se aberto para mim; eu podia falar com essa pessoa e, quem sabe…. Fazê-lo conhecer mais sobre a minha divindade.
Existem dezenas de divindades em Cultist Simulator, muitas com as quais eu sequer cheguei a interagir. Estamos falando de um jogo que gira em torno do ocultismo, de temas bizarros, e ainda escrito por Alexis Kennedy, que ganhou a sua fama escrevendo sobre tais assuntos. Essas divindades não são exatamente descritas para você; são pedaços, fragmentos que você tem de unir de pouco em pouco. Um livro pode ajudar a entender qual é a mensagem que essa divindade prega, a linha de pensamento, mas nunca vai ser algo de “Esse é X e ele gosta de Y”.
Há muito uma questão de “tentativa e erro” dentro de Cultist Simulator, e eu ainda estou muito dividido sobre essa mecânica. Eu fiquei algumas boas horas empacado após encontrar o meu primeiro candidato em potencial para iniciar o culto até descobrir para onde seguir. Lia e relia as pistas, tentava as mesmas cartas em outras ocasiões — falar com meu candidato sobre o livro, visitar a livraria, trabalhar por meio da paixão ao invés da razão e vender pinturas. Até que eu enfim “desbloqueei” um novo caminho ao deparar com aquele que pensei que seria um dos motivos para a minha derrota: o inspetor Wakefield.
Não são só os curiosos que chegam quando você começa a investigar o oculto. Pergunte demais e, cedo ou tarde, irá alertar as autoridades. Wakefield chegou como quem não queria nada; um “diálogo amigável” era como soava sua apresentação. Sabia que era hora de parar de comprar livros ou ficar vendendo pinturas baseadas nos meus sonhos que, nesse ponto, já haviam se fundido com os desejos dessa tal divindade sem nome. Eram retratos de precipícios infinitos, monstruosidades, sussurros.
Foi quando comprei o livro “The Skeleton Songs” que meu culto finalmente começou a se formar. Uni a carta da razão, e depois a da paixão com ele e recebi uma carta chamada “A Red Secret”. Ao contrário das cartas anteriores, essa pode ser usada junto com o livro e um seguidor para iniciar o culto, e assim o fiz.
Mais uma vez um mundo de possibilidades se abriu para mim. Agora nós tínhamos até um “esconderijo secreto” para praticarmos as nossas artes. Eu e meu seguidor podíamos explorar locais para resgatar ídolos perdidos, desarmar armadilhas, e atrair novos candidatos. Ao mesmo tempo eu sentia que a cada passo que dava meu personagem enlouquecia um pouco mais. Os sonhos estavam ainda mais disformes, e uma carta de “pavor” surgiu na mesa.
O pavor transformou meus sonhos em pesadelos. Tive de suspender a exploração de uma fábrica abandonada com um dos meus seguidores por receio de enlouquecer de vez, e tendo que lidar com o risco adicional de ter a polícia na nossa cola. Infelizmente já havia investido dinheiro demais na expedição, expedição essa que descobriria mais tarde que não deveria ter feito.
Em um desses pesadelos eu levantei a faca e me machuquei; “Eu vi a porta”, dizia a mensagem na tela. Não sabia bem como interpretar. O que seria a porta? Significaria que eu estava próximo de descobrir novas coisas sobre o Mansus? Sobre a minha divindade? Sobre mim? Não obtive essa resposta. A escrita me incomodava de um jeito inesperado, como se fossem gritos vindos de um calabouço; uma mistura de pedidos de misericórdia e perdão. Poucos detalhes nas frases, mas eram vívidas e tão impactantes quanto um livro de mil páginas.
O machucado me fez adoecer. Com os últimos fundos gastos na expedição, gastei todas as cartas de vitalidade na esperança de que a doença fosse embora. Nada deu certo, e meu personagem e meu culto eventualmente sucumbiram. Não descobri os segredos da fábrica, nem das divindades. Bem, ao menos não fui pego pela polícia.
Mesmo nessa versão claramente inacabada (faltam imagens nas cartas e nem todas as mecânicas estão presentes), eu estou apaixonado por Cultist Simulator e a maneira que a Weather Factory foi capaz de fazer um sistema de diálogos com cartas que consegue ser tanto intuitivo como misterioso. Evoca sensações dos primeiros adventure games (Zork, etc) onde era preciso digitar palavras ou frases simples para realizar ações básicas.
Também gosto muito de como ele trabalha e abraça a própria temática; ele te dá informações, mas sempre deixa uma ponta de dúvida sobre o que significam, qual a sensação delas, ou o que um personagem sentiu. Novamente, evoca sensações da leitura de livros mais recentes como a trilogia Comando Sul (Aniquilação, Autoridade, Aceitação) — uma das poucas séries que eu devorei em dias.
Não é de hoje que jogos de tabuleiro são bons para contar histórias, mas essa história normalmente é tecida pelos jogadores, que o usam como suporte — o drama de uma partida de Pandemic, Arkham Horror, etc. Cultist Simulator, mesmo sendo ainda mais pelo fato de se limitar a um jogador, é capaz de não ser usado como ferramenta; ao invés disso, ele atribui esse status ao jogador, e isso é o que me deixa tão entusiasmado com o que mais posso descobrir ao decifrar livros, explorar locais e… quem sabe até sacrifícios? Nunca se sabe o que as vozes irão me dizer para fazer.
Só não me dou muito bem com o fato de que ele se apoia um pouco demais em tentativa e erro, e isso parece ser uma decisão proposital da desenvolvedora. Para entender melhor essa decisão, a escrita de Cultist Simulator e o processo de desenvolvimento, conversei com a produtora Lottie Bevan para me explicar mais sobre tudo isso.
A entrevista foi editada para clareza
Lucas: Uma das menções que eu vi em Cultist Simulator é o de um sistema de legado. Como ele vai funcionar? O jogador poderá manter certas cartas ou investigações, ou quem sabe começar em um estado mais avançado – como com o seu culto formado ou algo do tipo?
Lottie: O sistema de legado aparece após o jogador falhar pela primeira vez, e possui três opções iniciais. O primeiro, Aspirant, é o seu típico papel “acadêmico” em um universo Lovecraftiano. Junto a ele há o Bright Young – um jovem adulto vivendo às custas do dinheiro do pai e trabalhando ocasionalmente. O terceiro é o médico, que trabalha em um hospital e já está bem estabelecido financeiramente.
Nenhum desses papéis iniciam em um estado avançado da partida, mas sim em situações narrativas e recursos diferentes. Todavia, como grande parte da progressão depende de o jogador conectar os pontos na sua cabeça (exemplo: Eu posso combinar a carta X com a carta Y e ter o resultado Z), nós esperamos que essa multiplicidade de legados facilite e apresente novos meios de combinação e, consequentemente, manipule e direcione a narrativa. Quanto mais se jogar, mais fácil vai ser iniciar o culto.
Em questão de progressão, cada um dos finais (positivos ou negativos) vai oferecer um novo papel específico para você jogar – caso morra de fome, por exemplo, você terá a oportunidade de jogar já como o Bright Young Thing. Já vencer vai liberar papéis ainda mais avançados. E, como mencionei, cada papel tem um tipo de recurso essencial diferente. Pegue o Bright Young Thing, por exemplo; jogar com ele requer uma maior atenção em gerenciar as finanças, assistir espetáculos burlescos e ir para casas de leilões – o que é totalmente diferente do Aspirant que sempre corre atrás de dinheiro para comprar mais livros na biblioteca e conhecer mais sobre ocultismo. Esperamos que oito papéis estejam disponíveis na versão final e outros serão adicionados via DLC.
Lucas: Quantas condições de vitória vocês planejam ter na versão final, e o que vocês fizeram para garantir que o progresso não fique estagnado em ações repetidas?
Lottie: Existem no momento cinco tipos de vitórias possíveis – três que podem ser obtidas ao seguir um dos três principais enredos e outras duas se você se aposentar como um escrivão ou um detetive – e esperamos ter mais vitórias no lançamento. Obviamente vai ter muita leitura e obtenção de textos sobre ocultismo, além da necessidade de que o jogador tenha as principais noções sobre as tradições do culto antes que ele atinja qualquer vitória, mas o objetivo é que exista variedade / aleatoriedade suficiente nesses livros ou tomos para que não haja a sensação de “ações repetidas”; pelo contrário, esperamos que o jogador sinta que está recebendo um fluxo constante de pequenas informações sobre o rico mundo do Mansus.
Essas tarefas, em conjunto com a mecânicas de exploração (35 locações para serem exploradas, cada uma com a sua parcela de desafios/ guardiões que podem ser resolvidas de múltiplas maneiras) deve garantir variedade suficiente para manter os jogadores entretidos.
Lucas:Algo que me chamou a atenção é o fato que o texto, mesmo sendo consideravelmente menor do que o trabalho de você e Alexis em jogos como Fallen London ou Sunless Sea, é tão impactante quanto. Como foi (e ainda é) encontrar o equilíbrio de mensurar o tamanho do texto e ainda assim manter o jogador engajado na partida?
Lottie: Alexis de fato é um excelente escritor, mas queríamos usar pedaços de narrativa menores com Cultist Simulator; em parte pois isso comprime a prosa em algo mais pronunciado e econômico, mas também aumenta a praticidade em diversas áreas que não tínhamos em jogos como Fallen London e Sunless Sea (localização / tradução, o fato que podemos gastar menos recursos financeiros e tomar menos tempo para produzi-los, etc).
É importante lembrar também que quantidade não pode ser confundida com qualidade, especialmente no caso de narrativa Lovecraftiana; muito dessa estranha ficção é sempre contada em situações de “relance” e coisas como “Eu realmente vi aquilo?”, o que coincide com a temática de manter a brevidade do texto e instiga a imaginação do jogador.
Esse processo de produção fez com que Alexis criasse uma evolução do seu conceito de “Fires in the desert” (fogos no deserto).
[Para Alexis, os principais pontos da história que um escritor provê são como pequenas pausas ao lado de uma fogueira no deserto, onde tanto o escritor como o jogador sabem o que acontece, mas vai ser o jogador que vai ditar como chegar na próxima fogueira -ed]
Este, então, chamamos de Aphophenic Design. A ideia é que a narrativa se incorpora de forma natural à imaginação e ao foco do jogador em coisas específicas e espera que ele ligue os pontos por si mesmo. E, então, resta desenvolver um jogo em cima desse conceito. Novamente, pequenos pedaços de narrativa é exatamente o tipo de “migalhas” ou pistas” que se quer ter para que isso seja efetivo.
Lucas: Acerca do aspecto de “tentativa e erro” para progredir na história; vocês pensam em ter algo mais explicativo para definir como as cartas funcionam na versão final do jogo, ou manterão o atual sistema?
Lottie: Isso tem sido o maior problema em Cultist Simulator. Nós [Lotti e Alexis] conversamos muito sobre como apresentar o jogo inicialmente – se deveríamos incluir um personagem que iria explicar tudo no começo, ou se poderíamos implementar alguma forma de “livro de receitas” para listar tudo o que o jogador aprendeu até então, etc. Superficialmente parece ser algo óbvio de se fazer, mas cria sérios problemas de design.
Por exemplo, a maior parte da diversão em Cultist Simulator é encontrar um resultado da mistura das cartas por você mesmo ou questionar possíveis conexões entre pedaços da história com um grimório que você acabou de obter. Se implementarmos alguma automatização – um livro de receitas, um sistema de dicas mais robusto – eu me preocupo que a maioridade dos jogadores iria depender desses elementos para avançar e, consequentemente, toda a interação com o jogo em si iria mudar. Nós não estamos criando um simples jogo de “juntar as cartas”. Queremos bastante que as pessoas interajam com os textos que eles encontram, com as histórias e as peças de narrativas – que eles consigam uní-las por si mesmos.
Claro que nós vamos deixar algumas dicas nos próprios textos e ajustar partes da interface – como um destaque no tabuleiro para mostrar que cartas funcionam com quais verbos para limitar as chances de ficar “empacado”. Nós não planejamos ou planejaremos nenhum guia ou tutorial a não ser que o “feedback” que recebermos dos nossos jogadores indique isso.
Lucas: Levando em conta que esse é o primeiro jogo da Factory Weather e vocês optaram por lançar a versão de acesso antecipado inicialmente no Itch.io, como foi a experiência? Sinto que em grande parte o site ainda é muito desconhecido por desenvolvedores. Você vê como uma boa alternativa para um acesso antecipado tradicional no Steam, ao menos no que tange jogos de nicho?
Lottie: Na realidade foi muito bom! Nós estávamos quase sempre entre os 10 jogos mais vendidos do Itch e conseguimos chegar na segunda posição antes de limitarmos o acesso antecipado à Perpetual Edition [edição que incluirá todos os DLCs]. Sinto que funcionou como uma excelente alternativa ao acesso antecipado do Steam, não só facilitando um (mesmo que pequeno) fluxo de caixa, mas criando um grupo de novos jogadores que poderiam continuar a nos dar mais informações sobre o que pensavam das mecânicas de early game, ao invés de dependermos somente de jogadores veteranos. Então, sim, nós certamente iremos considerar usar o Itch novamente para nossos futuros jogos.
Lucas: Muito obrigado pelo seu tempo, Lottie.
Cultist Simulator será lançado em 31 de maio no Steam.