O que é real, o que são fragmentos do imaginário? Será que você pode solucionar casos, desvendar histórias, conhecer as pessoas por meio desses fragmentos? Essas são algumas das muitas perguntas que são propostas por The Signifier, produzido pelos chilenos da Playmestudio, publicado pela Raw Fury e previsto para sair no PC em 15 de outubro e em 2021 nos consoles. Durante a Gamescom tivemos a oportunidade de ver um pedaço do jogo em ação e conversar com o seu diretor, David Fenner.
A demonstração, que durou por volta de 30 minutos, nos mostrou algumas das mecânicas principais do game. Você assume o papel de Frederick Russell, um pesquisador que vem trabalhando há anos no que ele chama de “Dreamwalker”. Esse aparelho supostamente permite a alguém (no caso, você) acessar os dados da mente de outra pessoa.
Poucos minutos após a introdução, Russell recebe uma ligação de um detetive. Apesar dos avanços, o governo quer impor severas restrições a esse tipo de pesquisa. O detetive, representante de uma das agências do governo, quer que você desvende o suícidio de Johanna — vice-presidente de uma empresa de alto calibre, a Go-AT. De mãos amarradas, Russell decide aceitar o serviço.
Daqui para frente a demo dá uma bela de um guinada, quando Russell vai até o apartamento de Johanna em busca de pistas. O contraste entre a vida de alto luxo de Johanna e a destruição no seu apartamento é quase palpável.
As maneiras de resolver o caso são inúmeras, e David — que estava no comando da demo — apresentou apenas algumas das opções, como falar com o policial, explorar o quarto de Johanna, verificar um jornal que estava em cima da mesa.
De volta ao seu laboratório, Russell usa pela primeira vez o Dreamwalker e é aí que as coisas começam a ficar interessantes. Sendo um adventure em primeira pessoa, The Signifier utiliza todas as artimanhas para criar diferentes “estados mentais” do subconsciente – o objetivo e o subjetivo. O estado “objetivo” equivale a uma reconstrução das memórias da pessoa, no caso Johanna, minutos antes de sua morte. Todavia, o Dreamwalker é uma tecnologia ainda em desenvolvimento e a IA que a controla e te ajuda — Evee — não consegue reconstruir todos os dados.
O resultado é um visual quase surrealista; peças distorcidas, partes de corpos inacabadas, corredores que fazem curvas praticamente impossíveis. Mas, para Russell desvendar o que de fato aconteceu ele tem de ir mais fundo ainda, para o estado subjetivo.
Se o estado “objetivo” era uma reconstrução das memórias, o subjetivo diz respeito a reconstrução de sensações, sejam elas recentes ou não. A demo, por exemplo, nos mostrou um quadro de um cachorro que seguia Russell pelo cenário. Talvez uma ligação de Johanna com seu cachorro? Estaria esse animal vivo ou seria apenas uma lembrança da infância?
Navegar por este cenário requer uma bela dose de cautela e o dobro de interpretação, mas os quebra-cabeças em si — ao menos os vistos na demo — são relativamente simples. Muitos deles envolvem utilizar “raw data”, dados que estão corrompidos ou não foram propriamente decodificados, e identificar qual é o seu lugar no cenário.
No caso da demo um dos dados era um componente que sequer tinha forma. Com os botões do controle você podia acelerar ou desacelerar o “tempo” dele até que o mesmo tivesse alguma relação com o cenário. Era um relógio que Russell viu na parede de Johanna. Ao pedir para que a IA colocasse o relógio no seu devido lugar dentro do então estado “objetivo”, uma escada foi criada para o andar superior da casa de Johanna.
Apesar do grande avanço em decifrar o crime, ainda faltavam muitos pedaços sem resposta. Quem causou a destruição? Por que o espelho do banheiro estava destruído? Voltamos ao estado subjetivo para tentar descobrir.
Um pedaço de “raw data” nos foi mostrado por David — eram os estilhaços que voaram do espelho do banheiro. Após inserido no estado objetivo, uma mão apareceu na tela ao lado da cama de Johanna. Ela não estava sozinha, e isso sugeria a possibilidade de que não foi um suicídio. Quem estava lá? Qual foi o motivo da morte? Qual foi a razão dela ter morrido?
Essas e tantas outras perguntas serão respondidas somente na versão final, mas as minhas dúvidas não acabaram por aí. Por isso, decidi perguntar a David mais sobre o jogo e de onde surgiu a ideia de The Signifier.
[nota do editor: a entrevista foi editada para maior clareza]
Lucas: Tenho muitas perguntas sobre The Signifier. Você estava falando sobre como o personagem principal trabalha em uma empresa de pesquisa que o governo está tentando regulamentar, certo?
David Fenner: É, mais do que trabalhar para uma empresa, ele é um pesquisador acadêmico. É um projeto independente que explora a mente humana por meio do subconsciente, uma tentativa de usar a tecnologia para construir uma ponte entre psicanálise e a ciência, por assim dizer. Então é uma pesquisa acadêmica. Tudo relacionado a escaneamento cerebral e privacidade tem sido regulamentado com bastante rigidez, então essa pesquisa está sendo analisada minuciosamente e a única maneira de mantê-la era fazer um acordo com essa agência para ser um ativo que tem interesse nesse caso de alta visibilidade.
Lucas: É, fiquei curioso porque há uma grande discrepância entre o laboratório do protagonista e o escritório da VP, não só do ponto de vista da arquitetura, mas também do ponto de vista socioeconômico, porque ela mora em um prédio alto, em uma área arborizada com edifícios sofisticados, um bairro de gente rica etc … A pesquisa em si acontece neste “armazém” antigo.
Outra coisa que despertou meu interesse foi o que você disse sobre regulamentação governamental e pesquisa acadêmica. Gostaria de ouvir a sua opinião, talvez em relação ao próprio The Signifier ou apenas como escritor e diretor. Até que ponto você acredita que o governo deveria regulamentar certos tipos de pesquisa, se é que deve? Embora eu tenha gostado muito do enredo sobre a morte de Joana e o fato de ela ser VP da Go-AT — uma empresa de tecnologia que gerencia escaneamento cerebral e de alguma forma está acima de qualquer escrutínio —, enquanto o personagem principal é um pesquisador, e os dois estarem basicamente em lados opostos, gostaria de saber o que você pensa sobre pesquisa acadêmica e comunidade/empresas de tecnologia vs. o próprio governo com seus órgãos reguladores?
David Fenner: É uma pergunta interessante. Tenho minhas próprias opiniões, é claro, mas quanto ao jogo em si, o que queríamos era colocar todo o contexto e informações no jogo sobre escaneamento cerebral, IA, governo, empresas privadas, privacidade e então permitir que o jogador expressasse sua própria visão política sobre o assunto.
Por exemplo, você pode escolher com quem quer se alinhar mais. Em determinado momento, você irá até a Go-AT e falará com o CEO, e terá algumas opções. Se acha que não deveriam existir tantos regulamentos, poderá escolher isso no jogo, ou se você acha que a pesquisa deve ser regulamentada, poderá trabalhar em prol da agência.
Mais tarde no jogo, essa agência reguladora vai pedir que você encontre a senha do e-mail de Joana em suas memórias. Você poderá dar a eles uma senha errada de propósito ou ajudá-los. O jogo realmente não toma partido de ninguém, talvez só sutilmente, mas deixa o jogador expressar as próprias visões políticas sobre o assunto. Essa é a parte do jogo. Ele tenta dar todas as informações por meio do lore e dos diálogos.
Quanto à opinião pessoal, acho que deveria haver alguma regulamentação, mas com limites, é claro. Acho que IAs, mais ainda do que o escaneamento cerebral, representam alguns perigos que ainda não conhecemos muito bem. Algumas pessoas dizem que não temos margem para aprender com os erros. Até com a bomba atômica nós aprendemos com nossos erros. Mas quando assunto é a IA … é uma coisa tão poderosa e está apenas começando, e algumas pessoas dizem que se dermos um passo em falso e apertarmos o botão nuclear, não vai ter volta. Embora algumas pessoas digam que isso é ficção científica, outras apontam que é um perigo real, e eu acho que deveríamos ter algum acordo internacional — o que é bem difícil de conseguir e requer muito poder político, ainda mais por causa das tensões entre as maiores economias. É um assunto muito delicado e quanto mais cedo começarmos a debater, melhor. Esse é um dos objetivos do jogo, trazer essa discussão para um novo público de uma forma muito séria e responsável, inserida no entretenimento.
Então acho que por enquanto devemos no mínimo falar mais sobre isso e enxergar o perigo que existe e, com alguma sorte, chegar a um acordo sobre como devemos seguir em frente. Também devemos trazer a psicologia e os impactos sociais de tudo isso para a discussão, então temos que ir devagar e tomar muito cuidado; essa é a minha opinião. Não tenho todas as respostas, só acho que devemos tomar cuidado.
Lucas: Aproveitando o gancho do que você acabou de dizer sobre a psicologia, outra parte importante de The Signifier são os modos objetivo e subjetivo. Ou, digamos assim: diferentes níveis de subconsciência, como você apresenta no jogo. Vi que há muita informação e elementos que estão bastante abertos à interpretação, e você está trabalhando isso pelo viés da ficção científica, incluindo quebra-cabeças e pistas no cenário.
Partindo disso e da ideia da própria IA como um perigo para o nosso mundo e, como você disse, “temos que ir devagar”. The Signifier seria também um jogo em que você precisa estar mais consciente da subjetividade das coisas ao seu redor e do mundo em que vive, em vez de ser extremamente objetivo? Ou seja, o jogo também está tentando fazer o jogador ler nas entrelinhas e observar o mundo? Por exemplo, alguém deu a você uma informação — mas será que essa informação é confiável? Você pode confiar, acreditar nela? Será que essa informação está tentando manipular você? Esse seria outro objetivo de The Signifier?
David Fenner: Acho que a resposta curta seria sim. Embora você não possa obrigar os jogadores a lerem nas entrelinhas, o jogo tem várias camadas e, se você realmente mergulhar nelas, vai descobrir muitas coisas.
Por exemplo, há uma certa personagem que , ao ver uma certa foto, começa a roer as unhas e age como se nada estivesse acontecendo … Não quero estragar a surpresa, mas há muitas coisas que você pode interpretar a partir disso. Se não prestar atenção, pode terminar o jogo, mas se jogar uma segunda vez e quiser um final diferente — existem diferentes finais —, esses finais dependem de muitas decisões sutis que alguns jogadores nem saberão que estão tomando, o que amplia essa abordagem subjetiva das coisas. Por exemplo, se você não investigou algo ou se demorou muito para responder. Todos esses pequenos detalhes que importam na interpretação subjetiva das coisas.
Resumindo, o jogo não obriga ninguém a mergulhar fundo nisso, mas você é encorajado a fazer isso e também há uma recompensa, por assim dizer, em como você interpreta o que está ao seu redor, os personagens, o que você vê e como se expressa. Sem dúvida, há essa outra camada e alguns jogadores provavelmente vão seguir em frente sem prestar muita atenção, mas outros vão, e o jogo com certeza tenta estimular esse olhar mais aprofundado.
Lucas: Nós vamos ter um demo jogável este ano?
David Fenner: Isso ainda está sendo discutido. O jogo será lançado no dia 15 de outubro, já está bem perto do lançamento, então ainda estamos considerando. Portanto, não posso responder com muita precisão, infelizmente.
Lucas: A última pergunta é um pouco sobre a tecnologia por trás do jogo, porque eu estava olhando algumas fotos dos primeiros conceitos ontem — e não precisa entrar em muitos detalhes técnicos — e queria saber se vocês estão usando algum tipo de fotogrametria para construir essas camadas de subjetividade. Eu estava olhando para uma captura de tela em um espaço aberto e vi uns arbustos que pareciam ter sido feitos a partir de várias fotos usando fotogrametria e depois reconstruídos em um programa de modelagem 3D. Vocês estão usando fotogrametria em certos objetos para criar essas camadas de subjetividade ou tudo é feito usando Unity?
David Fenner: Sim, nós realmente usamos fotogrametria em algumas coisas. Eu diria que a fotogrametria foi uma das primeiras inspirações do conceito e das memórias porque na época eu estava fazendo um projeto VFX que usava esse recurso. Quando estava trabalhando no conceito do The Signifier, pensei: “peraí, e se a gente repetisse o processo de tirar fotos no mundo real e depois deixar uma máquina ligar os pontos entre as imagens e tentar reconstruí-las no espaço? E se um dia formos capazes de coletar imagens do cérebro e repetir o mesmo processo?”
A fotogrametria na verdade foi uma inspiração para esse conceito de reconstruir um espaço 3D com base de imagens embaçadas do cérebro. Nós usamos fotogrametria de alguns lugares reais, tem uma grande mistura no jogo. Por exemplo, o apartamento de Johanna é um projeto de arquitetura 3D feito para o jogo, e é um apartamento muito legal feito com a ajuda de um amigo meu que é arquiteto. Pegamos isso e transformamos em uma cena que parecesse ser fotogrametria para a reconstrução.
Então nesse caso foi uma espécie de fotogrametria de um lugar modelado em 3D, enquanto em algumas outras memórias fizemos o contrário; fomos para um lugar de verdade em que pensamos “ok, é assim que a memória deveria ser, é o lugar certo”. Fizemos uma fotogrametria, digitalizamos, adaptamos para a narrativa do jogo, e também fizemos o lugar real em 3D para o mundo real, então na verdade é uma grande mistura de técnicas. Em alguns casos, o design 3D e o design 3D digital vieram primeiro e em outros casos havia um lugar de verdade onde fizemos fotogrametria e transformamos em uma memória e então transformamos o lugar real em um lugar 3D digital. E depois tem sempre muito trabalho em cima da fotogrametria, quando você precisa deixá-la mais artística, parte da cena, e fazer muitos ajustes, mas a fotogrametria sem dúvida está presente, não só como inspiração para o conceito, mas também como uma técnica em algumas partes.
Lucas: Bem, isso é bem legal e responde a outra pergunta que eu sabia que não teria tempo de fazer. Estava lendo um relatório e vi que você já trabalhou na Loica. Eu estava me perguntando se seu trabalho lá teve algum tipo de influência em The Signifier.
David Fenner: Para ser sincero, eu diria que não. Provavelmente o fato de eu ter trabalhado com VFX me tornou um artista 3D melhor, então é claro que o conhecimento é aplicado no jogo, mas, do ponto de vista criativo, como a história, o conceito, tudo que surgiu há um tempão… Na verdade, eu diria que o conceito começou a ganhar forma há mais de sete anos, a primeira ideia no papel provavelmente veio antes disso, antes mesmo de eu trabalhar na Loica, então não vejo a empresa como uma influência. Foi lá que aprendi alguns truques 3D que são usados no jogo, uma coisa técnica, e qualquer artista se desenvolveria trabalhando em um estúdio como um artista 3D, mas eu não consideraria isso uma influência. Foi um projeto paralelo e a Loica é uma produtora que faz de tudo, mas não, eu não diria que fui inspirado ou influenciado pela empresa.
Lucas: Foi mais como se você estivesse aprendendo a dominar mais ferramentas para criar The Signifier.
David Fenner: Sim, desde antes de entrar lá.
Lucas: Muito obrigado pelo seu tempo!
David Fenner: Eu que agradeço e espero que você aproveite The Signifier.
Transcrição do áudio e tradução feita por Flora Pinheiro. Edição feita por Flora Pinheiro e Roberto Amorim