A não ser que estejamos falando de jogos de tabuleiro digitais, a frase “ah, mas é mais divertido com amigos”, é uma que abomino e muitos que acompanham o site há um bom tempo sabem disso. Minha visão é que a maioria dos jogos que se auto intitulam “coop” podem muito bem ser aproveitados sozinhos. Exemplos não faltam: Borderlands, Diablo, Tricky Towers — e o que o dá título à essa matéria: Deep Rock Galactic (Steam / Xbox One).
Desenvolvido pela Ghost Ship Games ao longo de quatro anos – sendo dois deles em acesso antecipado – ele não tem o menor direito de ser tão bom, seja em modo solo ou em modo multiplayer. O equilíbrio que a desenvolvedora atingiu é, no mínimo, louvável.
A estrutura em si é conhecida: você assume o controle de um anão que, por meio de uma empresa terceirizada, deve realizar escavações perigosas em busca de minerais e objetos raros. A maior parte do lucro fica, obviamente, com a empresa. Quer ganhar mais dinheiro? Ponha a sua vida e a de seus companheiros em risco com escavações ainda mais profundas.
Além de conter uma suave crítica em relação ao estado da cultura empregatícia pelo mundo, Deep Rock Galactic tem todos os elementos que compõem um jogo coop. Classes distintas, sistema de leveling; enfim, tudo que você tende a esperar de um jogo cujo foco é “rejogar mais e mais vezes”.
Mas a Ghost Ship não parou por aí, e conseguiu fazer que o ato de jogar sozinho seja igualmente recompensador. Para isso ela introduz Bosco – um simpático robô que explora as cavernas com você. Ele não é um companion nem uma IA “inútil”. Ele tem a sua própria árvore de habilidades, aprimoramentos e skins. Eu não tinha que servir de babá dele, pelo contrário; às vezes ele era a minha babá. Me aprofundava nas cavernas, usava explosivos para demoli-las em busca de metais preciosos, enquanto Bosco me defendia das hordas de monstros que vinham atrás de mim.
Não posso também deixar de falar das cavernas em si; geradas proceduralmente, elas causam uma sensação de misticismo misturado com pavor. O uso inteligente de sinalizadores limitados criam tensão toda vez que você precisa escavar uma parede em busca da próxima jazida de minério. O que estará atrás daquela parede? Dinheiro ou monstros prontos para te atacarem?
Apesar de explorar na maior parte do tempo as cavernas sozinho, o modo cooperativo me surpreendeu ainda mais. Uma das minhas “birras” com certos jogos é o uso de chat de voz mesmo onde não há a devida necessidade dele. A Ghost Ship Games adicionou ferramentas para se comunicar com a equipe sem o uso de microfones. Equipamentos apontam jazidas de minério, personagens indicam perigos iminentes; uma vez um deles gritou sobre um tremor, eu não prestei atenção e caí em uma recém-aberta rachadura de lava no chão.
Ao invés de ter medo de abrir meu microfone, eu me senti confortável até em jogar com estranhos. Eu senti um senso de… camaradagem. De que todos estavam lá, presos em uma caverna, com pouca munição, poucos sinalizadores, e que não podíamos ver a hora de voltar para a superfície e tomar uma bela cerveja. E olha que eu nem mesmo bebo na vida real.
Isso tudo ainda é arranhar a superfície do que Deep Rock Galactic consegue proporcionar ao jogador. Ainda não me aventurei nas “Deep Dives” – modo com as explorações mais perigosas — e sequer subi o meu personagem para o nível máximo.
Mas eu estava curioso; como uma empresa conseguiu tamanha façanha, criar um ambiente quase livre de jogadores tóxicos (apesar de que eu não tenho dúvida que existam muitos por aí), e incentivar o companheirismo? Para isso eu sentei com os desenvolvedores para conhecer mais sobre o processo de desenvolvimento, o período de acesso antecipado e a tecnologia que eles usaram para gerar as cavernas.
Nota: A entrevista foi editada para maior clareza
Lucas: Pelo que entendi, a maioria dos layouts de mapas é gerada proceduralmente, correto? Poderia dar alguns detalhes técnicos sobre como o jogo seleciona partes específicas do cenário para criar uma experiência de exploração coesa?
Deep Rock Galactic: Sim, todos os mapas são gerados proceduralmente. De certa forma, são esculpidos de um bloco sólido usando formas geométricas simples, principalmente cilindros e esferas. Você pode ver e ler mais sobre esse processo neste tweet antigo do nosso game designer, Fran. Com esse método, criamos artesanalmente várias cavernas diferentes e então deixamos o algoritmo selecionar algumas dessas salas, colocá-las em um espaço 3D e ligá-las com túneis gerados proceduralmente. Quando colocamos um bioma por cima e aplicamos ruídos e outros elementos aleatórios (mas controlados), o resultado é uma nova caverna para cada missão. No início, permitíamos que o algoritmo criasse estruturas mais complexas e muitas vezes as salas se entrecruzavam, mas isso acabou sendo bastante difícil para os jogadores navegarem.
Lucas: Embora tenha um grande foco no cooperativo, o Deep Rock Galactic também funciona muito bem no modo solo — pelo menos na dificuldade média — e como algo que pode ser apreciado no seu próprio ritmo. Isso foi definido desde o início ou foi implementado com o feedback dos jogadores?
Deep Rock Galactic: O objetivo era criar o melhor jogo cooperativo que conseguíamos imaginar. Mas sabíamos por experiência própria que muitos jogadores novos iam preferir explorar o jogo no modo single player antes de se arriscarem no modo cooperativo. Também sabíamos que seria impossível criar uma IA capaz de navegar o terreno procedural, sempre mudando, e que também fosse capaz de imitar as ações de um jogador. Por isso, decidimos implementar um drone amigável que claramente não era um jogador humano e que teria mais facilidade para voar e fazer o que fosse pedido. Isso acabou se mostrando uma boa solução e, com a ajuda dos comentários e feedback dos fãs, refinamos o Bosco, como é chamado o drone, que se tornou um companheiro muito querido pela comunidade.
Lucas: Uma das coisas que notei no jogo, e que achei bem legal, é que vocês construíram tudo em torno da ideia de que aquele é um lugar para interação social. Por exemplo, caso os jogadores queiram, há tempo suficiente entre as missões para fazer coisas bobas tipo tomar cerveja ou tentar acertar um barril dentro do círculo de fogo — algo em que sou péssimo, aliás. Agora que matchmaking é bastante comum e muitos jogos tratam o processo apenas como um meio para um fim, vocês têm esperanças de que essas mecânicas criem um vínculo maior entre jogadores aleatórios? Vocês pretendem expandir esses recursos após o lançamento? (Sei que é uma pergunta difícil de responder, ainda mais porque vocês estão trabalhando no lançamento da versão 1.0 no momento, mas imagino que algumas ideias de design tenham ficado pendentes).
Deep Rock Galactic: Fico feliz que você tenha comentado sobre esse aspecto do Deep Rock Galactic. Quando começamos, disseram que matchmaking usando uma lista de servidores era algo ultrapassado e que deveríamos empregar o modo jogo rápido, selecionando os participantes com base em diversas qualidades dos jogadores. Acabamos usando as duas modalidades, mas acabou que nossos jogadores adoraram usar a lista de servidores para entrar em partidas aleatórias e depois interagir na plataforma espacial antes e depois das missões. A comunidade super amigável sem dúvida contribuiu muito para isso, assim como nosso esforço para equiparar um anão novato e um jogador veterano. O objetivo era que os jogadores sempre vissem um recém-chegado como um aliado valioso e não um peso morto. O potencial de socialização da plataforma espacial, do bar, dos barris, da vitrola automática e do minigame nos surpreendeu bastante. Já imaginávamos que isso seria importante para o jogo, mas não que seria tão vital. O mesmo aconteceu com todas as opções cosméticas disponíveis para os anões. Começamos com algo bem básico, mas ouvir as opiniões dos fãs e vê-los compartilhar fotos nos mostrou que poderíamos fazer muito mais. Então fizemos.
Depois do lançamento, queremos rever as cavernas, adicionar alguns outros tipos de missão e, mais tarde, outros biomas. Pelo menos esse é o plano. Mas temos ainda algumas ideias para a plataforma espacial que podem ser adicionadas ao nosso roadmap. Não posso dar muitos detalhes, mas para manter o jogo vivo também é preciso ouvir os jogadores. Então continuaremos a fazer isso depois do lançamento 🙂
Lucas: Esta tem certa relação com a pergunta anterior. O Deep Rock Galactic tem uma arte muito impressionante. É de fácil leitura à primeira vista, mas bastante coesa no conjunto da obra em termos de identificação de ameaças, navegação e uso da luz para criar “caminhos”. E, é claro, por estar disponível para PC e consoles — e considerando a infinidade de configurações de computadores em que o jogo pode rodar — como foi a otimização do jogo? (Não tenha medo de dar uma resposta mais técnica, eu fico até feliz!); O estilo de arte já foi pensado para atingir um público maior ou foi evoluindo à medida que mais jogadores embarcaram na versão de acesso antecipado e vocês perceberam que precisavam fazer alguns ajustes em termos de desempenho, design do inimigo e outros?
Deep Rock Galactic: O estilo da arte foi baseado na cara que o terreno procedural acabou tendo. Tínhamos algumas ideias para o visual, mas foi só depois que o nosso CTO nos mostrou o primeiro protótipo da tecnologia de terreno que nosso Diretor de Arte pôde começar o processo de definir o estilo geral da arte. Nosso Diretor de Arte, Robert, queria que o mundo tivesse uma aparência mais bruta, pesada e suja, e o terreno procedural serviu como norte. Então tudo acabou sendo modelado de uma maneira semi lowpoly (não chega a ser lowpoly porque ainda temos muitos detalhes) e com pouquíssimas texturas, a maioria texturas de ruído. Depois foi só aplicar pintura de vértice, iluminação e sombras e esse foi basicamente o visual do Deep Rock Galactic. Fazer algumas experiências e decidir quão escuro o jogo deveria ser foi um dos maiores desafios. No começo, tudo estava muito mais sombrio e claustrofóbico, mas era bastante difícil para a maioria dos jogadores, então acabamos com uma versão com mais luz ambiente. Nós achamos que isso também ajudava na hora de tirar uma captura de tela e atrair um público mais amplo. Ainda sonhamos com algum modo ou bioma no jogo em que tudo fique MUITO escuro e perigoso.
Não posso falar muito sobre otimização, pois não fui eu que programei. Mas sei que nosso CTO, Henrik, é quase um mago da programação, e que o jogo consegue rodar em uma grande variedade de computadores. Pode travar um pouco em mapas maiores, com muitos inimigos e quando está meio sem memória, o que rendeu algumas dores de cabeça na versão para Xbox. O jogo foi feito usando Unreal Engine 4 e isso ajuda a ter bom desempenho em várias configurações diferentes.
Lucas: Para a nossa última pergunta: que sentimentos vocês esperam provocar quando alguém joga Deep Rock Galactic? Tem bastante ação, sem dúvida, mas como vocês pretendem criar uma atmosfera de terror ao explorar as cavernas, e de solidão para os jogadores que decidirem explorar sozinhos? Estou bastante curioso sobre como vocês veem o jogo e a reação dos jogadores a ele, é por isso que estou perguntando.
Deep Rock Galactic: Nosso principal objetivo para o aspecto cooperativo era criar um sentimento de camaradagem. A sensação de que todos estavam enfrentando os desafios junto com seus colegas mineiros, escapando por um triz só para serem mandados de volta no dia de trabalho seguinte. Para a experiência nas cavernas, queríamos que parecesse uma jornada perigosa e nossas inspirações foram filmes como Abismo do Medo, ou um jogo antigo para PS2, The Thing, de onde veio o conceito das granadas sinalizadoras limitadas. Usar bastante a iluminação e as sombras dinâmicas parecia uma opção para criar uma experiência única em um jogo de ação. Foi muito difícil acertar e ainda hoje conversamos sobre as granadas sinalizadoras e lanternas no ombro. Também nos inspiramos por filmes como Aliens O Resgate e Tropas Estelares e algumas situações que podem acontecer no jogo, como enfrentar alienígenas em um túnel atrás de uma torre de artilharia, vêm dessas fontes. Em geral, seguir instruções criativas como essas é o que nos ajuda a manter o jogo no caminho certo e fazê-lo ficar original. Se não trabalhássemos assim e implementássemos todas as ideias divertidas que temos, acabaria virando uma bagunça.
No fim, estamos muito orgulhosos do que criamos e de como as pessoas estão jogando e conversando sobre suas experiências. É justamente o que torcíamos para que acontecesse.
Tradução da entrevista feita por Flora Pinheiro, edição por Flora Pinheiro, Diogo Freire e Roberto Amorim.