Eu acredito que roguelites onde o uso de cartas para qualquer tipo de “combate” combinado com uma extensa narrativa são mais a exceção do que a regra. Nos anos desde a explosão de “Slay the Spire”, apenas “Griftlands” e “Signs of the Sojourner” conseguiram — às duras custas — entregar algo próximo de excelente. “Zoeti” (Steam / Nintendo Switch) é a próxima tentativa de uma desenvolvedora, os corajosos da Dusklight Games. Os esforços não foram em vão, mas também não foram direcionados exatamente para onde eu esperava – muito menos o que fizeram eu gastar tanto tempo com o jogo.
Indo na direção contrária da grande maioria dos “deckbuilders” que estão por aí nas mais diferentes plataformas, “Zoeti” já se destaca por duas grandes decisões: o uso de cartas de poker como “energia” e “ações”, e a ausência de um limite de ações por turno. Ou seja, quanto mais combinações de cartas (flush, mini, straight), melhor vai ser a sua jogada e as chances de sobreviver ao combate. Digo chances de sobreviver pois Zoeti não brinca quando o assunto é dificuldade.
Antes que você me interrompa e diga: “Mas Lucas, deckbuilders com baralhos não são novidade!”. Eu sei muito bem disso, “Poker Quest: Swords and Spades” e mais recentemente “Ace and Adventures” são excelentes exemplos disso, sem contar a própria história de usar baralhos “tradicionais” por assim dizer para criar protótipo jogos. Entretanto, nenhum dos dois jogos citados trazem a maleabilidade de “Zoeti”.
Ainda que ele não requeira que você saiba de cor e salteado todas as jogadas de poker – algo que eu gostaria que “Aces and Adventures” tivesse feito –, ele ao menos espera que você saiba usar as cartas na sua mão com bastante prudência. Caso não, pode se preparar para perder uma run no segundo combate.
Os inimigos são impiedosos, usando no mínimo três ou quatro habilidades por turno. Embora quantidade não signifique qualidade — já que muitas das ações que eles tomam tendem a ser “repetitivas” como uma habilidade que reduz o seu ataque, mas com um nome diferente — planejar a sua mão para saber quais combinações de cartas podem ser usadas no turno atual ou guardadas para o próximo turno é essencial. Sim, este é um jogo onde você não joga fora as cartas entre turnos, pelo contrário, ele até recomenda que você não faça isso para ter a maior quantidade de possibilidades disponíveis para quando as coisas apertarem.
Até mesmo os arquétipos que ele utiliza para os personagens – guerreira, assassino e maga – não entram tanto dos conceitos tradicionais do que se espera de cada classe. Claro que uma guerreira ainda é melhor em defesa do que uma maga, mas as jogadas de poker e a boa seleção de habilidades para cada classe deixa você criar classes “híbridas”.
Eu montei decks onde minha guerreira era uma imensa força ofensiva que reduzia a defesa do inimigo a cada golpe e roubava-a para si mesma. Quando era hora de um chefão muito difícil, eu tinha equipamentos que me davam proteção passiva e menos chances de ser envenenado. Imagine então ter habilidades “infinitas” por turno?
O assassino, é de longe, o meu favorito com habilidades que dão dano por turno e uma constante troca entre evasão e facadas precisas. São poucas as “classes” que são tão bem definidas por um baralho de cartas quanto essa. Neste ponto a Dusklight Games acertou um tanto no que almejava.
No papel, era para eu cair de amores por “Zoeti” e em termos de jogabilidade, eu caio. Faz tempo que eu não me sinto tão investido em um deckbuilder, ainda mais um que me dá a opção de ser bastante ofensivo. Mas, para chegar até o assassino, ou até mesmo para sair da área “inicial” da guerreira você vai ter que lidar com um dos seus piores aspectos: a narrativa que não é nem um pouco atraente ou revigorante.
A história em si não é nem o problema. Você é mais um aprendiz de uma “igreja” que deve passar por uma série de desafios para ser “batizado” no combate. Esses desafios são separados em três capítulos, cada um composto de 8 subcapítulos que são as “runs” que você faz. Cada uma dessas runs podem trazem diferentes inimigos, equipamentos e chefões. Bom, ao menos em teoria. O núcleo da questão é que essas runs não são exatamente aleatórias — ao menos, não do estilo que você espera. Quase todas elas usam rotas semi-fixas e muitos eventos se repetem.
Não exagero quando digo presumi ter visto pelo menos o mesmo evento seis vezes em menos de 2h de jogo. Cheguei a achar que eu estava preso em algum loop de tutorial e era um bug. Na realidade, a escrita do evento em si era idêntica, mas as recompensas aleatórias. Isso que não era nem um evento como “você encontrou uma estátua sagrada” — o que até entenderia ter a mesma escrita — mas sim um grupo de aventureiros. Se houvesse um pouquinho mais de variação eu não só teria prestado melhor atenção, mas me sentiria mais investido em saber o que diabos esses aventureiros estavam fazendo dentro de uma caverna.
Eu até engoliria melhor se a equipe de “Zoeti” tivesse investido em um mapa ao invés de rotas semi-fixas. Jogos como “Gordian Quest” e “Across the Obelisk” contornam o problema da narração dessa forma e, mesmo que carreguem outros problemas, ao menos eu sentia vontade de seguir em frente não só pela jogabilidade e a possibilidade de novas cartas com a metaprogressão de cada classe, mas também com o interesse de saber qual ia ser o fim da história de cada personagem e da trama em geral.
Essa é uma questão que se perdura até os momentos finais, isso é se você conseguir aguentar completar todos os três capítulos, com eventos parecidíssimos, e derrotar todos os chefões. Só assim que você libera o modo aventura — que ironicamente é o melhor que “Zoeti” tem a oferecer.
Ao invés de querer seguir algum estilo narrativo ou te prender em capítulos que se repetem e repetem, ele é um gigantesco “remix” de todos os eventos do jogo, não só sendo muito mais imprevisível, mas também um grau de dificuldade muito alto.
Desde que eu completei os capítulos – ainda que eu sequer tenha encostado nas opções “hard”, “nightmare” ou superiores –, eu só tenho jogado o modo aventura e não consigo imaginar “Zoeti” de outra forma. Eu ainda tenho algumas cartas para desbloquear, mas mesmo que eu não as desbloqueie tão cedo, vou continuar a jogar de tão gostoso que é o modo e como ele consegue misturar de forma coesa tantos eventos aleatórios. Ouso dizer que ele faz um trabalho melhor que o próprio modo principal.
Até tento entender a razão da Dusklight Games querer colocar o modo aventura atrás de uma barreira tão enorme. Compreender todas as minuciosidades de “Zoeti” não é uma tarefa fácil, ainda mais com todo o seu sistema de cartas e o fato que cada um dos personagens é bastante distinto em termos de habilidade e como se comporta durante a batalha. Mas há uma grande diferença entre colocar uma barreira para que jogadores novatos não se sintam intimidados com múltiplas mecânicas e “vamos bloquear um dos melhores aspectos do jogo atrás de um grind de mais de 10h”.
Recentemente escrevi sobre “Wall World” e como metaprogressão pode ser um ótimo aliado quando bem utilizado como uma ferramenta que auxilia e incentiva o jogador a testar novas habilidades ao invés de bloquear as chances ou inflar o tempo de jogo. Acredito que em outra dimensão — uma em que “Zoeti” tivesse preferido seguir uma progressão mais “tradicional” por assim dizer — ele estaria fazendo mais sucesso do que a realidade atual.
O mais difícil de tudo é saber que, no fundo, “Zoeti” vai passar um tanto despercebido nos radares de jogos de deckbuilders roguelites. Os poucos que presumo que darão atenção, como eu, poderão ficar desencorajados a continuar a jogar graças aos tantos bloqueios que o jogo impõe ao jogador e a si mesmo. Em um ano onde um deckbuilder sai a cada duas semanas, é difícil de não ver isso como uma oportunidade perdida.
Eu ainda o recomendo para quem está cansado do tradicionalismo dos roguelites e que ver mais do que pode ser feito em como traduzir “energia” e uso de cartas de baralho em meios digitais. Mas, dado a estrutura e os deslizes na história, é bom você ser muito fã do subgênero ou estar com bastante tempo livre.
Zoeti
Total - 7.5
7.5
A jogabilidade maleável e majestosa de “Zoeti” é o que segura as pontas dele de um esquecimento no meio da enxurrada de “deckbuilders” com elementos roguelite nos últimos anos. Uma pena que esta é a única área que a Dusklight Games acerta, pois a sua progressão – especialmente quando se diz respeito a história – são dolorosamente lentos e mal lapidados.