Em setembro de 1986, Nancy Reagan, a então primeira dama dos Estados Unidos, fez um pronunciamento na TV que estabeleceu o tom para uma questão considerada importante no período: a guerra contra as drogas. Era uma resposta direta às preocupações do alto consumo de substâncias ilegais, e preparava terreno para que o governo Reagan exercesse um punho ainda mais firme para condenações para porte e consumo da substância. Nesses mais de 30 anos desde o pronunciamento, barreiras foram derrubadas, e diálogos sobre os benefícios e os malefícios de drogas — mais especificamente a maconha — foram abertos no mundo todo. Weedcraft Inc (Steam / GOG), da Vile Monarch, não é uma repercussão desses novos tempos: é a esterilização e o estabelecimento da droga como um commodity.
Se a imagem acima e o nome ainda não deram a entender, sim, esse é um jogo onde você gerencia um império de produção e venda de maconha. Inicialmente por meios ilegais, tomando cuidado para não ser pego pela polícia, subornando policiais, enfrentando uma possível concorrência, até o momento em que você começa a ganhar fortunas por meio de métodos legais — como cidades cuja venda recreativa ou medicinal é permitida — ou fazendo lobbies no governo para a descriminalização da erva.
Cabe mencionar que não é um jogo que faz apologia ao uso da maconha; se algo, ele trata o ato de produzir a planta da maneira mais séria possível. Cada semente precisa estar em um ambiente climatizado, ter seus componentes químicos devidamente balanceados, e é necessário manter uma certa ordem na hora de cortar a planta, regá-la, escolher qual tipo de luz e umidificador, para que a polícia não pegue o cheiro da plantação. Enfim, uma série de variáveis que teoricamente soam interessantes de um ponto de vista de jogabilidade.
Mas a realidade é que Weedcraft Inc trata grande parte disso como um imenso clicker game. Espere o timer chegar no limite para regar a planta, segure o mouse para cortar a planta. Vá até o ponto de venda e segure o mouse por mais três segundos até que a venda seja concluída. Isso resume as primeiras três horas do jogo, quiçá mais. Mas uma hora o império há de crescer, há de ter novos funcionários, contratar gente da “comunidade” para ajudar no trabalho braçal, na venda e na difusão da mercadoria para as cidades iniciais e as seguintes.
De novo eu vejo o brilhar de um prospecto interessante, onde cada funcionário tem a sua “personalidade” e pode querer ou não trabalhar em áreas mais “dúbias” da sua empresa. Contrate alguém e coloque-o na frente da boca de fumo e ele pode se sentir incomodado, amedrontado. Mas nada que uma bela bufunfa de dinheiro não resolva. Pois no fim, tudo e todos são corruptíveis em Weedcraft inc.
Não tardei a notar que os meus funcionários são seres de papelão — criados para cumprir uma única função: me atender e atender as minhas demandas. O “backstory” deles serve puramente para que possam ser chantageados a não trocar de empresa, de clientela, de interesse. Engrenagens em uma máquina de imprimir dinheiro.
Eu entendo o que Weedcraft tenta fazer: desmistificar o uso da erva e explorar como os crescentes avanços nas leis dos EUA foram “capazes” (leia-se: há alguma forma do governo e outros grupos de interesse lucrarem em cima disso, ainda mais com uma economia moderadamente estagnada e que nunca inteiramente se recuperou do crash de 2008) de demonstrar que é muito mais vantajoso descriminalizar do que continuar essa eterna punição e leis por muitos consideradas obsoletas em 2019. Mas, apesar tanto da desenvolvedora como a Publisher comentarem sobre como eles contrataram advogados, cientistas e outros profissionais de diversas áreas para dar pitaco no jogo, os cenários que ele coloca não poderiam ser mais irreais.
O primeiro começa com um estudante de MBA que abandonou a faculdade para ajudar o seu irmão com o negócio da maconha. De cara vê-se uma discrepância na fala e posicionamento. O protagonista usa roupas chiques, se porta de uma maneira mais eloquente, enquanto o seu irmão parece aquele cara que não vê a luz do dia e não toma banho há sete meses. Assim segue a institucionalização de um sistema onde a grande maioria dos personagens com que você interage – mesmo os mais proeminentes, como um competidor — são caricatos como aquelas mesmas pessoas que foram ostracizadas pela sociedade pela decisão de usarem a erva. As coisas só pioram ao tentar olhar para a venda de drogas para um soldado com stress pós-traumático e me deparar com a imagem de alguém quase fora de si, alguém que não aparenta ter o controle sobre a própria vida. Na pele de alguém que já passou por eventos traumáticos, ver esse tipo de descrição ser colocada em um jogo que devia ser “mente aberta” só prejudica um segmento da população que sofre mais do que o suficiente por não ser levada a sério.
Eu diria que o segundo cenário, onde um homem negro é colocado atrás das grades pelo o que aparenta ser uma pequena parcela de maconha, tem um quiçá mais de “veracidade” dentro do absurdismo que é Weedcraft Inc. Novamente a Vile Monarch se ausenta ao descrever a situação do protagonista, dizendo apenas que ele saiu de trás das grades e agora pode escolher entre voltar à venda ilegal de drogas ou comprar diretamente uma licença para estabelecer um ponto de venda legal. “Os tempos mudaram!”, diz o homem que me recebe após anos preso. Os tempos de fato mudaram, mas eles também não apagam o passado que Weedcraft Inc tanto tenta esconder.
Quatro anos antes do pronunciamento de Nancy Reagan, a socióloga Sharon Zukin publicou “Loft Living: Culture and Capital in Urban Change”. Nele, a autora descreve o processo de gentrificação do bairro de SoHo em Manhattan durante as décadas de 60, 70 e 80, como o lobby do mercado imobiliário forçou a tendência de apartamentos no estilo “Loft” — criados a partir de antigas fábricas do começo do século XX — e como esses interesses se alinhavam os interesses da prefeitura de Nova York em descentralizar a indústria para que as regiões se tornassem áreas nobres. Artistas, artesãos, pequenas empresas e outros pequenos produtores sofreram com o crescente aumento de preços e, inevitavelmente, acabaram realocados para áreas periféricas da cidade. Lofts eram o “assunto do momento” e todos queriam um, independente do preço. No imaginário popular, lofts são apenas aqueles apartamentos amplos, vistos em seriados como Friends, The New Girl e tantos outros. E esquecemos que para esse grupo de pessoas — tipicamente de classe média alta — terem acesso a eles, um outro grupo teve de ser despejado, ignorado, e mais uma vez marginalizado.
Refiro-me do livro de Zukin pois Weedcraft Inc não tenta levantar questões sobre o que acontece com quem se mantém na ilegalidade, à margem da sociedade — o que eu tive de fazer na primeira campanha por muito tempo devido a dificuldades financeiras em comprar licenças para vender drogas para fins médicos ou recreativos — tampouco a repercussão que se manter na ilegalidade representa, ou como o estabelecimento de pontos de venda para aqueles que têm dinheiro modifica a dinâmica de uma cidade. E esconde a violência por pontos de venda, trata seus competidores como pessoas que dialogariam, e até te dariam uma ajudinha com novos tipos de ervas. Se não der certo, você pode tentar chantageá-los, ameaçando revelar um segredo deles. Um dos meus competidores, por exemplo, fazia shows online com brinquedos sexuais e revelar isso seria um dano à reputação dele. Outra hora, enquanto lia o perfil dos meus consumidores, aproveitei para ler a descrição de um “viciado”, que dizia: “Já que está viciado, é melhor fumar maconha do que usar heroína”. Pelo visto, a melhor maneira de tratar de um tabu é usando outro mais prejudicial aos olhos da sociedade.
Eu tenho a mais plena convicção de que, em 2019, já está mais do que na hora de continuarmos com o diálogo aberto sobre a descriminalização da maconha. Mas o único assunto dentro desse amplo diálogo que parece importar a Weedcraft é o ponto de vista comercial e empresarial, a busca contínua da lucratividade, a estratégia do oceano azul (livro que provavelmente todo estudante que se formou em Marketing nos últimos 15 anos deve ter ouvido falar) e a busca por mercados inexplorados. Não se trata de uma proposta de “abrir a mente das pessoas”; ele se alimenta da utopia de que esse mercado vai permanecer eternamente limitado ao produtor local, à empresa de médio / grande porte. Weedcraft Ignora os problemas massivos que anos e mais anos de péssimas legislações causaram – prejudicando classes marginalizadas em conjunto com a própria falta de influência governamental em áreas periféricas – em favor de personagens caricatos, e da promessa de sentar-se confortavelmente em uma conta bancária que chega aos seis dígitos. Restrinjo-me a comentar unicamente sobre os Estados Unidos; afinal, é o foco do jogo, e se eu começar a comentar sobre o Brasil, meu amigo, o buraco é muito mais embaixo.
Weedcraft Inc
Total - 4.5
4.5
Manter o diálogo sobre a descriminalização da maconha é importante, mas a maneira como Weedcraft Inc se dispõe a demonstrar esse diálogo é enraizado unicamente na busca pelo lucro. Ignora os problemas sociais causados por péssimas legislações, e trata usuários e pessoas envolvidas no processo (seja ele legal ou ilegal) com o mesmo grau de indiferença — desrespeito até — que os órgãos governamentais e os grupos mais conservadores mostram. Ainda estamos muito longe de quebrarmos esse tabu.