Eu ainda não sei se sou eu que imponho algumas barreiras para mim mesmo, ou se certos elementos da vida simplesmente não foram feitos para a minha mera mente mortal compreender totalmente. Pergunte-me sobre astrofísica e eu nem sei por onde começar. Como eu consigo acordar todo dia sem despertador? Menor ideia. Como funciona o sistema econômico de Victoria 3 (Steam)? Para esta última pergunta eu só posso responder com “está vendo o número aqui em verde? Então, garanta que ele permaneça assim pela maior parte do tempo”.
Mesmo depois de um longo preview, experiência com o jogo anterior da franquia, uma entrevista e vários dias e noites jogando o novo Grand Strategy da Paradox, assumo que muitas das suas mecânicas ainda são obscuras para mim. Tal feito é um testamento da complexidade que a Paradox conseguiu inserir em Victoria 3, assim como uma crítica quanto a como esses sistemas são passados para o jogador.
Durante o meu preview, eu reservei algumas das minhas opiniões acerca do game até pôr as mãos na versão final. O tutorial – que ainda vejo como um dos maiores triunfos da desenvolvedora – é maravilhoso em demonstrar o que vem pela frente, no que diz respeito a uma partida que pode durar de 1836 até 1916. Economia, políticas domésticas e internacionais, rotas mercantis, produção de matéria-prima e manufatura, compreensão de como esses sistemas se interligam e se alinham com as diferentes classes que compõem a sua nação — tudo ali é apresentado de maneira fantástica, dando a falsa sensação de segurança de que você vai “dominar” Victoria 3 em algumas horas.
Mas não, Victoria 3 é uma fera indomável, independente do ângulo. Victoria 3 vai te fazer questionar suas decisões, repensar maneiras de como estruturar a sua nação para que ela percorra o caminho que você quer. Entretanto, algumas das ferramentas que o jogo oferece para isso são…peculiares, para dizer o mínimo.
Vou deixar dois pontos bem claros de início: o primeiro é que esta crítica é um recorte de um jogo imenso com inúmeras variáveis e a própria confecção da mesma é um trabalho absurdo. Não é o meu intuito aqui analisar meticulosamente cada faceta do jogo, ou como pais “A”, “B”, “C”, “D”, “E” e “F” atuam. Isso colocaria minha própria sanidade em risco.
Segundo, que Victoria 3 é um simulador econômico. Não é um simulador geopolítico, não é um simulador sobre a sociedade, e com certeza não é um simulador de guerras. O principal interesse do jogo é fazer com que mercados atuem como mercados reais, com preços que flutuam a cada mês de acordo com a oferta e demanda, com eventos que podem ocorrer do outro lado do planeta, e com suas próprias ações. O restante existe pela necessidade de complementar o sistema econômico, e não o contrário.
É importante criar essa distinção, pois os principais sistemas que atualmente governam Victoria 3, seja para o bem ou mal, são voltados para a economia. A Paradox não se esconde atrás de uma cortina para evitar falar de temas como abolicionismo, trabalho infantil ou segregação racial, muito menos da implosão do neocolonialismo, mas esses eventos estão ligados à necessidade de construir um sistema econômico que, no período, usava estes meios como domínio de massa.
Eu acho ótimo que a Paradox não transforme o período em um “paraíso fantasioso” onde nada de ruim acontecia e, se você quiser, pode manter algumas dessas instituições presentes em seu território por datas muito mais longas do que ocorreram na vida real. O que me incomoda é que o sistema populacional, por mais “bem elaborado” que seja, destila os grupos sociais em números e objetos que servem para aprovar leis.
Durante as minhas primeiras partidas com nações como o México, Brasil e certos países da África, eu prestava muitíssima atenção em como a minha sociedade estava sendo construída. Por exemplo, quais eram os principais grupos políticos ativos e quais eram os marginalizados. Cada um deles contém um “líder”, por assim dizer, que te dá uma noção do que esperar quando você decidir iniciar uma reforma governamental ou tentar implementar uma lei.
“Eu quero criar uma sociedade igualitária”, disse em uma das minhas jornadas com o Brasil. Entrava no menu populacional e analisava grupos marginalizados e como eu poderia tirá-los dessa situação. Anotava as peculiaridades dos seus líderes e tentava botar em pauta elementos que pudessem trazer esses grupos para o palco central dos debates políticos.
À medida que eu comecei a jogar com outros países, e passava mais e mais tempo garantindo que leis fossem aprovadas, menos eu interagia com o menu de sociedade. Os grupos marginalizados viraram um número que eu tinha que aumentar – seja a qualidade de vida, ou prevenir que eles seguissem um viés contrário à minha visão econômica para o meu país. O mesmo ocorria para os grupos mais proeminentes da sociedade. Industrialistas? Números que precisavam ser elevados ou diminuídos. Reduzir a influência da igreja católica? Outro número que também tinha o seu uso em dados momentos do jogo.
Eu sei muito bem que Victoria 3 não quer – nem deve – ser Crusader Kings 3, mas a forma como ele tenta humanizar a sua sociedade para então resumi-la a meros números é decepcionante. É um dos típicos sistemas que eu já muito bem vi em jogos da Paradox que cheiram a “eles vão evoluir esta mecânica em alguma atualização gratuita ou DLC, mas no momento ela me parece inacabada”.
Confesso que parte da minha crítica também vem de uma longa birra por a desenvolvedora ter abandonado Imperator: Rome, que a meu ver tem um sistema populacional que se interliga muito melhor com as questões socioeconômicas, ainda que em um escopo menor do que o de Victoria 3. Nele, rotas de mercado significavam um aumento populacional significativo para uma região; em Victoria 3, um botão pode atrair uma maior população para regiões específicas.
Esta própria noção entra em conflito com o sistema de leis, que assumo ser um tanto intrigante e um gigantesco desafio para alterar o curso de uma partida. Eu adoro como as leis e reformas governamentais são usadas em Victoria 3 se analisadas dentro de uma esfera socioeconômica. O processo de migração pode ter um “botão mágico”, mas leis e reformas demoram tanto para serem implementadas quanto aceitas pela sociedade.
Eu decidi acabar com a escravidão no Brasil muito antes da data “oficial”, mas isso não impediu que grupos favoráveis ao retorno fossem estabelecidos dentro da sociedade. Eles representam uma ameaça? Até certo ponto sim, mas bastou “um botão mágico” para fazê-los virarem apenas um mero incômodo.
O que dá caminho para as minhas outras maiores críticas sobre Victoria 3: seus aspectos militares, a interação com o mapa em si, e a IA. Podem me falar 10 vezes que a ausência de um sistema militar mais complexo serve para dar foco ao lado econômico de Victoria 3, mas não há como negar que a atual iteração do combate é básica e, em certos pontos, confusa.
Aqui vai um exemplo do que eu quero dizer com “confuso”: Eu iniciei uma jogada diplomática como o Império Otomano para tentar conquistar uma região da Áustria. Sabia muito bem que a jogada diplomática inevitavelmente me arrastaria para uma guerra. O Reino Unido, que não tinha nada a ver com a situação, decidiu se envolver e defender a Áustria.
Até aí tudo bem; o estágio de “mobilização” de tropas estava sendo feito por ambos os lados e a guerra se iniciaria nos próximos dias. Eu, assim como os Austríacos, já tinha movido minhas tropas para o fronte. A guerra estourou e em uma tarde as tropas britânicas chegaram como em um toque de mágica. Estamos falando de 1860, e portanto não havia como encontrar paraquedistas atrás das minhas linhas. Ainda que eu tenha vencido a guerra, Victoria 3 não passa nenhum tipo de informação clara de como essas tropas chegaram lá, nem de quanto tempo eu teria para me preparar.
Mova as tropas para o ponto desejado e espere as batalhas serem concluídas. Quem tem o melhor equipamento / desenvolvimento militar ou generais competentes vence — e fim. Tanto que a melhor tática que eu achei para derrotar meu oponente é realizar invasões navais, algo surreal considerando que eu posso fazer isso até mesmo contra o Reino Unido. O próprio jogo me avisou que eu seria interceptado pelas frotas britânicas, mas isso nunca ocorreu. Acho que eles estavam no porto descansando ou dormindo na hora que a invasão ocorreu.
Devo apontar, no entanto, que o sistema de jogadas diplomáticas é uma excelente adição para a franquia no geral. Ter a possibilidade de abocanhar uma região sem ter que entrar em guerra — caso você faça as manobras políticas corretas — é imensamente satisfatório. Outra vez o foco aqui é a economia; abocanhe regiões com matérias-primas que possam avançar a sua indústria ou reduzir o custo de alguma mercadoria produzida pelo seu país.
Entretanto, a quantidade de vezes que você consegue iniciar uma jogada diplomática sem entrar em guerra são mais a exceção do que a regra. Por consequência, o próprio sistema militar ainda se mantém como uma interação chata de se fazer. Eu não espero um sistema tão complexo quanto o de Hearts of Iron IV, com elementos como logística e um “designer” de tropas, mas entrar em guerras em Victoria 3 é tão emocionante quanto brincar com bonequinhos fazendo “tchum tchum” até que um deles caia no chão e o outro seja declarado vencedor.
A minha outra questão do mapa também diz muito sobre a própria posição de Victoria 3 como um simulador econômico acima de tudo. Como alguém que está acostumado com os países serem divididos em regiões do mapa, ter o mapa “padrão” mostrando os países e necessitando um zoom extra para que as regiões sejam vistas é uma decisão bizarra da Paradox. Filtros como mercados internos e externos, grupos de radicais ou processos migratórios são úteis para visualização e mais nada. Quer saber quantas vezes eu cliquei em uma região para construir uma nova edificação ou sancionar medidas emergenciais? Se foi 10 vezes, é muito. Os menus do jogo em si já faziam isso por mim.
Para que então serve o mapa de Victoria 3? Acentuar a sua beleza? Ajudar a visualizar as tenebrosas batalhas militares? Por que diabos não existem atalhos decentes para os diferentes filtros, como em todos os outros jogos da Paradox? Ah sim, pois a maioria das informações também aparecem em outros menus, o que faz o mapa ser ainda mais redundante — a ponto de eu afirmar que, se a Paradox tivesse decidido criar um mapa estático ou voltar para os primórdios de Hearts of Iron 2, não faria muita diferença para Victoria 3.
Neste momento ele serve mais como um recurso para modders – o que vai ser muito bem vindo para o futuro – do que algo realmente útil para o meu estilo de jogo. Pode ser que alguém venha e fale “Mas pera lá Lucas, eu uso o mapa para construir portos!” e para você eu respondo “que bom, fico feliz que ele tenha utilidade para você, mas para mim não, eu prefiro usar o menu de construção que é mais rápido”.
A minha última, e talvez maior picuinha com Victoria 3 – sua IA – está mais relacionada ao fato de que eu a vi evoluir ao longo de um período de preview do que criticar a sua atual conjuntura. Sim, como toda IA feita pela Paradox, ela está longe de ser perfeita. O que me incomoda é que a posição dos países é errática. Um dia eles podem gostar de você e no outro te odiarem por motivos obscuros.
Quando joguei a versão de preview, eu vi uma IA que de fato era agressiva (às vezes até demais) mas que tinha ações coerentes com a sua visão de mundo. É óbvio que eu não vou conseguir fechar um tratado militar com um país que está focado em defender as suas fronteiras, mas ver meus aliados desfazerem tratados comigo sem eu ter sequer tocado em nada mostra que, em algum ponto do desenvolvimento, a Paradox mexeu em algo que a tornou assim. Por favor, tragam a IA agressiva da versão preview, mesmo que isso envolva ter que lidar com o terrível aspecto militar de Victoria 3.
Por todas as críticas que eu tenha feito nos parágrafos acima, que são pontos cruciais para entender onde Victoria 3 deixa a bola cair, é inegável que a sua proposta de ser um simulador econômico foi atingida com um potencial estonteante.
Eu tenho, perdoe-me a palavra, um tesão gigante por cadeias de produção. Quando você junta cadeias de produção com um jogo que simula a economia em uma escala global, é a garantia de eu pular de alegria. E ah, quantas vezes eu pulei de alegria com Victoria 3.
Cada inovação que eu liberava e me dava acesso a uma nova forma de manufatura significava repensar todas as minhas rotas comerciais, compreender quando e como expandir as minhas fábricas, ou mudar meus processos agrários. Teria eu mão de obra qualificada suficiente para que as minhas fábricas de aço funcionassem com toda a sua eficácia? O quanto de materiais eu precisaria importar ou exportar para garantir que os meus cofres ficassem no verde e eu ainda pudesse expandir o meu país?
Você pode até escolher a opção de automatizar a expansão de seus meios de produção, mas eu preferi seguir a minha linha de microgerenciamento extremo. Ou seja, de interromper o jogo a cada 5 minutos, olhar para o país com o qual eu jogava e os seus principais potenciais de dominação industrial e mercadológica.
Este é o diferencial de Victoria 3 em comparação a outros jogos da Paradox. Eu posso muito bem voltar para Crusader Kings 3 caso queira algo voltado ainda mais para “pessoas”, jogar Imperator: Rome com mods (obrigado comunidade que mantém este fantástico jogo vivo) para um misto de mercado, guerras e população em uma menor escala. E posso decidir jogar Europa Universalis IV caso eu queira pintar o mapa.
Mas nada, nada é capaz de trazer a mesma alegria que eu tenho de ver o quanto cada país é diferente em termos de indústria e sociedade do que Victoria 3. Ele pode não conter tantos “eventos únicos” quanto outros jogos da desenvolvedora, e para muitos a ideia de “só construir fábricas” e ver números crescerem pode ser até banal. Entretanto, são estas nuances que fazem uma partida com o Reino Unido ser tão assustadoramente diferente do que com um país da África, mesmo que os sistemas de interação com a produção e manufatura se mantenham similares na superfície.
Quando eu apontei no começo do texto que eu não entendo muito bem a economia de Victoria 3, eu não falei por exagero. Ainda sinto que tenho muito a aprender, muito a “otimizar”, e muito a repensar sobre como atuar no gigantesco palco do mundo proposto pela Paradox. Eu consigo ficar no verde, eu consigo garantir que meus bens sejam produzidos e entregues, mas os modificadores de cada tipo de indústria — das máquinas até a população que as operam — ainda são um grande mistério.
É por isso que, por ora, eu fico contente que os sistemas como leis, população, e diplomacia — que constituem Victoria 3 — alimentam um jogo majoritariamente focado na economia. Ele não sobreviveria sem estes sistemas e esses sistemas não sobreviveriam sem ele.
Victoria 3 é um dos pouquíssimos jogos da Paradox que me fez sentir em “outro mundo” toda vez que eu abria o menu de um novo país. Se o jogo carece de eventos “especiais” mais frequentes, a forma como cada nação é retratada do mais simples trabalhador até a alta nobreza industrialista – ainda que eles acabem virando números no fim do dia – é mais do que suficiente para compensar.
Como as locomotivas e as inúmeras inovações trazidas durante o período retratado pelo Grand Strategy, suas engrenagens podem nem sempre estar bem lubrificadas, mas quando estão, elas atuam em uma fascinante sincronia que me fez gastar horas e mais horas da minha vida, e eu não vejo isso parar tão cedo. Bom, ao menos não até ver como cada país funciona, e isto vai levar tempo. Muito tempo.
Victoria 3
Total - 8
8
Como um simulador econômico de um período turbulento na história da humanidade, Victoria 3 supera todas as minhas expectativas. Apesar de muitas áreas ainda carecerem de atenção – como a IA e o combate militar – é um poço infinito de possibilidades para quem gosta de cadeias de produção e indústria e de ver um país crescer e ser moldado pelas suas escolhas.