Uma das minhas séries favoritas na adolescência era “As Aventuras de Sharpe” de Bernard Cornwell. As histórias — ambientadas majoritariamente nas guerras do século XVII — tinham cenários bem descritos, mas que ao mesmo tempo pareciam distantes para mim. Faltava uma interação entre o cenário e os personagens; faltava um toque humano. Sei que não é o início que você espera ler quando se trata de um adventure como Unavowed (Steam / GOG) da Wadjet Eye. Porém, o que está ausente em Sharpe é visto aos montes no novo jogo do estúdio encabeçado por Dave Gilbert.
Demônios, serpentes, sereias, dríades. Tudo de oculto e místico tem espaço em Nova York, uma cidade conhecida por ter passado por longos períodos de processos migratórios praticamente desde a sua fundação, e aqui refletida pela multifacetada Unavowed, organização secreta que procura “defender” a cidade dessas aparições e perigos.
Você, obviamente, não poderia tê-los conhecido em pior hora. Possuído por um demônio, você é perseguido há um ano tanto por eles quanto pela polícia, após cometer uma série de atrocidades. Exorcizado do seu demônio, você então se junta aos Unavowed para impedir que este demônio assuma outro corpo, descobrir o que de fato aconteceu nesse último ano em que estava possuído, e — quem sabe — por um ponto final nessa história toda.
Com um pé no antigo e o outro no novo, Unavowed segue a tradição da Wadjet Eye de trazer, ao invés de um jogo que carrega o jogador de dúvidas, uma história interativa com leves elementos de puzzles. Foi-se o tempo do “pixel hunting”, como o sofrimento que foi Shardlight (2016, Wadjet Eye), ou de puzzles que não seguiam um sentido muito coeso, e que eram a regra dentro da empresa.
O meu aspecto favorito dos puzzles de Unavowed vem da “necessidade” dos mesmos. Existe uma lógica interna que os torna mais do que elementos usados para progredir a história ou te desafiar. Há contexto, motivação, cultura e tradições por trás de muitos deles.
Por falar em cultura, esse elemento, por incrível que pareça, foi o que mais me prendeu. Foi o primeiro adventure da minha vida no qual recomecei no instante em que o terminei. E o que me trouxe de volta, mais do que sua fantástica história — com twists que realmente me pegaram desprevenido – foi seu maravilhoso elenco.
Fazendo jus à real identidade de uma grande metrópole — onde gostos, cheiros, experiências de diferentes partes do mundo se unem em um peculiar uníssono — o elenco de Unavowed tem caras, pano de fundo, e ideologias diferentes. Por exemplo, Eli é um mago que tem um passado conturbado com sua família. Mandana, uma gênia, estádividida entre a imortalidade e a condição humana. E Vicky é uma policial que luta entre a sua tradição na força policial e a necessidade de descobrir se seres de outras dimensões existem, e quais são seus planos. Esses são só alguns dos personagens que você vai encontrar, e até mesmo o personagem que você controla pode ter uma trajetória própria.
Dando um passo a mais em território pouco explorado nos adventures point ‘n click (mas já apropriado por tantos outros gêneros), Unavowed permite a você escolher o seu gênero e o pano de fundo (policial, barman, etc), tornando o ato de jogá-lo algo ainda mais pessoal.
Esse elemento quasi-rpg vale também para a sua própria estrutura não-linear e baseada em missões escolhidas de um quartel general. Feita a escolha, você então precisa selecionar quais outros membros de Unavowed que irão com você.
Quando terminei Unavowed, imediatamente pensei: “Mas como seria tal interação se Vicky ou Mandana estivessem envolvidas?” ou “E se eu fosse um policial ao invés de um barman?“ Isso sem contar os pequenos trechos de diálogo que ocorrem no metrô — o principal método de transporte entre áreas – o que pra mim também serviu como uma saudosa lembrança de um período da minha vida onde estações, sinais, e pessoas se confundiam e se dissolviam no ato de viver o cotidiano.
O aspecto sociocultural também se manifesta de diferentes maneiras ao longo da história. Casos envolvem diferentes estilos de vida entrando em conflito, diferentes ideologias na busca de senso comum. Nem sempre essas questões são claras, tampouco fáceis de serem solucionadas. Discordei de personagens, mas os entendia — os compreendia.
Salvar aquela pessoa — ou entidade — ou não? Eli me dizia uma coisa, Mandana me dizia outra. Pontos de vistas contraditórios, porém compreensíveis, dadas as circunstâncias e o histórico deles. A consequência não fica clara de cara; ela se amontoa como uma pilha de más lembranças ou decisões inoportunas na sua vida. E essa abordagem de decisões e consequências cai muito mais no meu gosto do que a ambiguidade – ocasionalmente beirando o desinteresse – mostrada nos tais “desafios” de games como Vampyr da DotNod.
Relembro esses pequenos, e simbólicos momentos, pois Unavowed felizmente foge do estereótipo do ocultismo ser uma corrente eterna do mal e da constante abdicação de esperança para a humanidade. Pelo contrário; muitas vezes questiona o que torna você, bem… você. E quando você passa por transformações marcantes na sua vida, ainda é você? Cada um dos personagens pode ter uma resposta para isso, mas no final você é que tem a palavra final sobre a sua própria vida.
Evitando entrar no território de spoilers, te deixo com um pequeno gosto do que você vai encontrar em Unavowed. Uma Dríade, após ter sua floresta destruída pela expansão de Nova York, fica furiosa e declara “guerra à cidade”, e acaba sendo “banida” pelo Unavowed ao Central Park. Quase 200 anos depois ela retorna, mais uma vez com o desejo de ter a sua floresta gigante. É fácil apontar e dizer que as ações dela foram totalmente erradas – e nisso eu concordo – mas seriam as motivações dela injustas? É justo ter a sua floresta destruída em prol do “avanço da humanidade”? Essa situação é tão distante da realidade do Brasil e o seu processo de colonização? A resposta que deve dar a ela cabe apenas a você decidir, e te garanto que não é tão simples assim. Nem mesmo a descoberta do que você realizou enquanto estava possuído por um demônio pode ser resumida em termos de “A+B”.
Retorno mais uma vez, antes de fechar esse texto, para o universo dos livros, mais especificamente para o artigo de Sean T. Collins no Outline sobre Duna de Frank Herbert, a adaptação de David Lynch, e como traços de ideologias como o consumo consciente, e a luta contra o imperialismo, conseguem ser encontrados tanto nele quanto em outras obras de Herbert.
Adventures também evoluíram; não só em estrutura e interação com o ambiente, mas na maneira como integram e trabalham temas mais profundos de maneira mais clara e sincera do que no passado, onde esses temas frequentemente se escondiam debaixo de 20 panos. Da crítica ao capitalismo demonstrada por Kentucky Route Zero às histórias de abuso de The Awesome Adventures of Captain Spirit, há numerosos exemplos. Point ‘n clicks, por muito tempo, ainda se mantiveram presos ao passado. Um vilão delineado, uma proposta clara. O bem contra o mal; sem ideologias ou carga política.
Fico feliz de ver que Unavowed larga isso, e, assim como a metrópole que ele tenta da melhor maneira representar, é o encontro do antigo com o novo, da pluralidade e da perda do medo de demonstrar que uma história não precisa – nem deve – ser binária. É um esforço maravilhoso da Wadjet Eye, e um adventure singular que, ao lado de Kathy Rain, entra no ranking de um dos melhores point ‘n click que joguei nos últimos anos.
Unavowed
Total - 10
10
Unavowed usa Nova York como mais do que um mero “pano de fundo”; é um cenário interativo para uma reflexão sobre o processo migratório, o cotidiano, as diferentes vidas e histórias que existem dentro de uma metrópole e sua influência sociocultural nela, sejam essas vidas seres de outra dimensão, ou humanos como nós. Sem dúvidas o melhor adventure da Wadjet Eye