Com tantos anos de RPGs onde escolhas são “bem” ou “mal”, jogar Tyranny, o novo RPG da Obsidian foi quase um ato de tortura. Era ter a noção de que eu não poderia salvar todos, muito menos seria visto com bons olhos em todo lugar que chegasse. Ele está disponível no Steam a partir de R$81,99.
Tyranny conta a história do Fatebinder, uma pessoa responsável por entregar os editais e certificar de que as ações de Kyros, o “vilão” que vem conquistando todo o mundo conhecido, sejam cumpridas. Apenas uma pequena região ainda resiste ao domínio de Kyros. Nela, os seus maiores exércitos, o Scarlet Chorus e os Disfavored, lutam pela glória.
A maneira que a história é contada e mostrada antes do começo do jogo, onde você estabelece o histórico do protagonista, é sem dúvida uma das minhas partes favoritas de Tyranny. Denominado “Conquest”, é nele que você define a sua “lealdade” as ações feitas por um exército ou outro ou a Kyros em si.
Lealdade é uma palavra um tanto quanto forte no mundo de Tyranny, ela é como um tênue balanço entre aceitar o que você é e respeitar as ações que devem ser feitas naquele momento. Mesmo que tenham um propósito “bom”, aos olhos de outros podem ser maléficas.
Toda ação tem uma reação, você não pode adentrar o mundo de Tyranny com a expectativa de que irá praticar o bem e salvar todos que você puder. Muito pelo contrário, ele não quer isto, ele te coloca à frente de um espelho e te pergunta “Quem é você? ”.
Não, não aquela pessoa que vocifera sobre política em redes sociais, ou aquele que tenta discutir sobre problemas na mesa de família ou quando um assunto que é incômodo, você rapidamente busca um argumento para defendê-lo. Quem é a pessoa que existe debaixo de todas estas máscaras? Até que ponto você vai tolerar atitudes que, quando aplicadas a um conceito moral “universal”, são imorais?
Tyranny te posiciona em meio a um grupo de pessoas detestáveis pelo ponto de vista da cultura ocidental. Racistas, pessoas que acreditam que apenas o meio dele é o correto, estupradores, facilmente considerados a escória da humanidade. Mas, Kyros não é a humanidade e esta terra não pode ser vista sobre a mesma lente a qual aplicamos em nossas vidas.
Eu honestamente não tenho uma resposta para te dizer como eu aceitei decisões que estavam fora do meu controle. RPGs tipicamente já delimitam as frentes e raramente questionam as ações. A primeira questão a qual me senti inseguro foi no prólogo, onde tinha a opção de contar a verdade para um grupo do Scarlet Chorus ou mata-los. Eu havia deixado um grupo de refugiados irem embora, uma equipe de batedores do Scarlet Chorus estava próxima e questionou a minha decisão.
“Foi para o bem deles” não era a melhor desculpa que eu tinha para dar a mim mesmo. É aceitar a dura realidade de que ações serão cedo ou tarde vistas com maus olhos por alguém. Como alguém que é confrontado diariamente com a questão, ela me corroeu por dentro durante dias. Fechei o jogo, dei uma volta, optei por jogar outras coisas, eu não queria pensar no que havia feito.
Jamais entendi o prazer de ser “mal” em RPGs. Sim, as escolhas podem ser interessantes e os resultado inusitados, entretanto sempre optei por seguir o caminho o qual acreditava que mais se assemelhava a minha personalidade. Claro, já fiz meus killing sprees em GTA ou besteiras em outros jogos, mas não parei para questionar o resultado daquilo. Afinal, não havia um, era apenas um sistema onde você eliminava pessoas digitais e aquilo ficava dentro dos confins do jogo.
Quando a vida de um vilarejo está em minhas mãos, acabei de captura-lo e as opções eram soltá-los, queimar o vilarejo inteiro ou matar os cidadãos, é aí que você sente de verdade o peso das ações que devem ser tomadas.
Eu optei em soltá-los, para mim eram vítimas de um grande conflito e não tinham nada a ver com a situação. Meus aliados não ficaram muito contentes com isto, ao ponto de um questionar as minhas motivações. Seria eu alguém que não estava pronto para a causa deles?
Da mesma forma que o mundo é imperfeito em Tyranny, assim são seus aliados — ou praticamente toda pessoa que encontrar pelas 30 ou 40 horas de jogo. Raramente me identificava com a causa pela qual eles lutavam, mas eles eram meus companheiros de viagem e era um segundo conflito interno que tinha. A dificuldade que temos de separar o que representa aquele personagem e os valores dele.
É quase impossível achar um ponto de equilíbrio. Foram inúmeras as vezes em que eu queria me enfiar dentro da tela, chacoalhar o personagem e dizer “para com isso, olha para mim, não age desse jeito, não é a melhor opção”. Mas, quem sou eu para dizer em um mundo controlado pelo caos o que é ou não a melhor opção?
Permanecer-me em silêncio diante de tudo que eu observava dos meus companheiros soava errado, mas também não conseguia encontrar uma saída que fosse plausível. Como gostar de uma personagem que faz parte de um grupo que mata pessoas por diversão? Longas horas de diálogo foram gastas dentro e fora do jogo — comigo mesmo — para decifrar até que ponto eu estava disposto a ir para ajuda-los.
Agradeço a Obsidian por se focar tanto na narrativa e construção dos personagens do que entregar mecânicas inovadoras. Ao invés de classes rígidas, temos um sistema onde você sobe de nível e habilidade de acordo com o uso delas dentro e fora do combate.
Para os fãs ortodoxos que amam “min-max” de build, podem arrancar os cabelos, pois eu sequer tenho ideia como isto seria feito. Entretanto, tenho certeza que não me preocupar com isto foi uma das melhores decisões tomadas pela desenvolvedora.
Raramente me senti instigado a recomeçar o jogo por conta de um ponto de experiência que aloquei errado, ou uma habilidade que parecia inútil durante a batalha. Em comparação com o quanto fiquei preocupado com o leveling em Pillars of Eternity, Tyranny desenvolveu um personagem que mais se assemelhou a como eu cresci naquele mundo.
O combate em si não é o ponto mais forte de Tyranny, bonito de se ver, mas de certa forma simplório. Você raramente vai encontrar alguma emboscada ou armadilha como em Baldur’s Gate ou um jogo da Infinity Engine, o que por mim, não há problema. Meu interesse era na narrativa e ela se demonstrou mais do que o suficiente para prender meu interesse.
Meu único desejo era que a história em si se estendesse um pouco mais, pois o prólogo, e o ato um e dois são ótimos. O terceiro ato parece apressado demais e o final, um pouco decepcionante após uma jornada tão interessante. Ao colocar na balança este problema e o restante de Tyranny, ainda acho que vale a pena jogar.
Pois poucos jogos tratam, à sua maneira, a fragilidade e irregularidade da natureza humana, do contexto que alguém é inserido e como se adapta a ele. É o difícil ato de conseguir compreender o outro e suas ações, tentar enxergar as motivações e o que elas dizem sobre aquela pessoa.
No melhor sentido das palavras, se é que existe um, foi uma experiência profundamente perturbadora e esclarecedora sobre quem eu sou e como eu me posiciono no mundo. Vindo de alguém que raramente se conecta com personagens em um RPG, é o maior elogio que posso dar.
Tyranny
Total - 9
9
Uma das maiores dificuldades que enfrentamos é saber lidar com as diferenças, e Tyranny mostra, de sua maneira distorcida, como elas colidem diante de situações extremas. Vá além dos estereótipos e veja uma ótima interpretação de como a natureza humana é falha, inconsequente e impulsiva. Um RPG merecedor de palmas.