Você gosta de óculos coloridos? Eu não, mas tem gosto para tudo no mundo. É com esse tipo de acessório que a Two Point Studios criou Two Point Hospital (Steam): com um par de óculos de nostalgia tão pesado que seria impossível colocá-los ou tirá-los mais do que uma vez ao dia.
Aclamado como sucessor espiritual de Theme Hospital (1997), Two Point recaptura alguns dos elementos críticos do antigo. O mais aparente é o toque de humor sarcástico, comedido, e – como é de se esperar quando se transformar assuntos tão sérios quanto doenças e morte em comédia – negro, alusivo ao humor britânico. Há um constante fluxo de leves piadas sobre toda coisa nova, como trocadilhos com nomes; aqui um Dr. House para treinar diagnosticadores, ali um especialista em capturar fantasmas chamado Peter Geist. Há também trocadilhos nos nomes hilários das doenças – como Pandemic, causada por habilidades abismais de cozinha e curada com a remoção de uma panela (em inglês, “pan”) da cabeça por um eletro-íma industrial — e muito mais. Nesse aspecto os desenvolvedores acertaram em cheio, tanto recapturando quanto trazendo para um mundo mais moderno os elementos clássicos que faziam Theme Hospital tão gostoso.
Infelizmente para por aí. O buraco foi fundo demais — não souberam quando soltar a pá e começar a construir escadas. Em comparação ao jogo que homenageia, Two Point Hospital é um jogo que anda em seu próprio compasso: tudo no hospital é lento, mas a exigência de velocidade e precisão do jogador é mil vezes maior do que a do jogo que o inspirou. Como a máxima militar, você “tem pressa para esperar”, agindo rápido em várias crises enquanto o jogo lhe faz esperar pelos resultados.
Além de ter fases cuja etapa inicial é repetitiva — construir recepções, uma sala de clínico geral, área de diagnóstico, etc (o que em partes é compreensível; todo leitor que já frequentou mais de um hospital na vida sabe que a experiência, da recepção ao primeiro médico, não tem variações significativas) – ele não consegue criar divergência ou coisas novas para se fazer com cada mecânica introduzida. Uma área do hospital que atua na cura de uma doença específica tem o mesmo propósito seja na primeira ou na décima fase. Você pode melhorar as máquinas, treinar a pessoa responsável por manejá-la, mas a ação é sempre a mesma.
Two Point hospital só sabe pedir mais à medida que você avança: mais salas de clínicos gerais, mais salas de diagnóstico, mais salas de cura, mais capacidade de atender pacientes simultâneos, “mais”, ad infinitum. E exige isso em ritmo desenfreado, que te força a construir várias salas iguais para lidar com o fluxo de pacientes, ao invés de tentar simular um crescimento orgânico.
A capacidade de distribuir pacientes pelas salas de forma eficiente também é invalidada pela extrema ineficiência na utilização das mesmas pela população. Tanto os empregados quanto os pacientes têm um raio de ação minúsculo. A população é impaciente: não espera, morre, lota seu hospital de fantasmas enquanto você decide se cabe no orçamento uma nova sala de tratamento— salas, aliás, importantíssimas, pois representam o grosso do lucro — para parar de expulsar pacientes ou se economiza para solucionar o próximo desastre. Distâncias consideravelmente curtas para uma pessoa real se tornam jornadas épicas para médicos, enfermeiros ou faxineiros, ao ponto de você precisar ordenar explicitamente que eles resolvam suas necessidades básicas (ir ao banheiro, beber água) naquele banheiro ou um bebedouro que está só um pouquinho mais longe do que eles “alcançam”. O jogo oferece um docinho em uma mão, um taser na outra.
Mais chocante que o taser é passar de um hospital para outro. No hospital em que é introduzida a pesquisa, Milton University, você recebe uma rede de segurança, já que treinar seus profissionais rende um rebate monetário. Expandir sua população em Milton para lidar com a enxurrada de pacientes que o nível deste hospital atrai não é tão custoso. Onde está essa rede no hospital seguinte, Flemington? Seu orçamento caiu, seus profissionais são menos adequados, não há uma fonte de dinheiro confiável, e o nível do novo hospital sobe ainda mais rápido. Toque as trombetas do apocalipse, o caos chegou.
O sistema de promoções e atributos é fraco, e te faz pensar que Theme Hospital, por menos criativo que fosse com os seus, pelo menos tinha uma aplicabilidade bem definida; um atributo, qualquer que fosse, era um lucro. Em Two Point Hospital, não. Seus funcionários, quando ainda estão nos níveis iniciais, se movem lentamente, ficam irritados facilmente, e têm habilidades que trazem dúvidas sobre a qualidade da formação que receberam. Promovê-los requer selecionar novos atributos, e por muitos deles terem múltiplos níveis, e cada nível melhorar exponencialmente a capacidade do personagem de realizar ações específicas, você acaba formando uma equipe de superespecialistas.
E essa equipe de especialistas e seus atributos não consegue acompanhar a demanda da população por conta de um desequilíbrio entre o peso de um atributo e o nível-base do funcionário. Um médico de nível 1 com treinamento em radiologia faz um diagnóstico muito mais preciso do que um médico com nível-base 2 sem treinamento. Um com dois níveis de radiologia e com nível-base de 2, é ainda mais eficaz do que um médico de nível 5.
Quando esse savant da radiologia é colocado em qualquer outra sala que não é a de a radiologia, no entanto,ele tem as “meras” habilidades de um médico nível três – e por isso ele irá cometer mais erros do que se imagina possível. Essa situação se agrava se ele não possui a especialização dessa outra sala, como por exemplo, uma “De-Lux Clinic” – usada para tratar a doença “Light-Headedness”, onde a cabeça das pessoas vira uma lâmpada. Resultado? Melhor contratar outro médico e treiná-lo para esta sala. Mais médicos, mais salas, mais coisas.
Two Point Hospital não para, não suaviza. Não há um momento em que você está realmente sob controle; a fornalha demanda mais carvão. Onde foi parar aquela graça? Ainda está ali, mas você não tem tempo de rir dela.
Acaba que a dificuldade não vem das mecânicas, mas de você estar cansado de tanto fazer ações repetidas, de ficar de babá dos seus funcionários e torcer para que um paciente descubra onde fica o banheiro. Uma dificuldade que, em matéria de design de jogos, vejo como ultrapassada, e que me faz pensar que estou frente a uma planilha do Excel com gráficos bonitinhos. Gráficos, inclusive, são uma das coisas mais louváveis sobre o jogo: ele é gostoso de olhar. É bem-amarrado, tematicamente. E, como falei, acertou o tema comédia em cheio. Para aqueles que estão vindo do “passado dourado” dos clássicos, o apelo ao fator nostalgia está não só presente, como não polui o jogo de forma a ser inacessível para quem não está vindo pela mesma avenida que eu.
Mas há de se levar em conta que, por mais que esses pontos positivos sejam mais fortes que os negativos, vê-se que houve um certo desleixo em criar um jogo moderno. A jogabilidade é limitada, o desenvolvimento das fases é incoerente, e a epidemia de explosões exponenciais é uma injustiça não contra a habilidade, ou pensamento estratégico do jogador, mas sim fisicamente e psicologicamente. Jogos podem, definitivamente, ser difíceis; e há meios de torná-los difíceis que são prazerosos para o jogador, mas a escolha dos desenvolvedores de Two Point Hospital não foi por um deles. É difícil a um jogo ser gostosamente difícil quando a correria e repetitividade das ações chega a provocar cansaço físico; quando você não tem tempo de soltar o mouse, esse cansaço físico eventualmente leva a um esgotamento mental.
Two Point Hospital
Total - 6.5
6.5
Two Point Hospital cria uma dificuldade artificial ao não saber equilibrar a demanda dos pacientes, o crescimento natural de um hospital, e o treinamento de seus médicos. Vale pela nostalgia e humor, mas só.