Nas retrospectivas de 2019, tanto eu como outros denotamos o quão impactante foi a evolução da franquia Total War com Three Kingdoms. O equilíbrio entre narrativa e sandbox, dois modos de jogo distintos e um sistema de diplomacia incrível. Contudo, esse design gera um grande empecilho para futuros conteúdos: linearidade. Mandate of Heaven – a segunda expansão para o game (Steam) – mostra que há um caminho viável para essa questão.
Para quem é versado na comunidade de estratégia sabe que a divisão entre narrativa e sandbox não está limitado aos escritórios da Creative Assembly; nos últimos anos empresas como Paradox e Amplitude Studios tem tentado soluções para agradar os dois tipos de jogadores dentro de seus jogos. Hearts of Iron, Stellaris e até certo ponto Endless Space 2 sofrem desse mal, mas a vantagem da Creative Assembly sobre essas empresas está em seu escopo.
Datada oito anos antes dos acontecimentos do jogo base, Mandate of Heaven se foca em duas facções: o levante dos Turbantes Amarelos e a fragilidade da dinastia Han. Outros personagens — alguns que retornam do jogo base — são jogáveis no período, mas o jeito que foram implementados é um pouco inconsistente (mais sobre isso em breve).
Vendo o foco da Creative Assembly em expandir o potencial dos Turbantes Amarelos – a minha facção favorita por conta da sua complexidade – decidi começar o DLC por eles. Onde a campanha base mostra um grupo ainda poderoso, mas enfraquecido pela supressão das tropas da dinastia Han, a queda da capital pelas mãos de Dong Zhuo, Mandate of Heaven se volta para a complexidade que é criar um levante popular frente a uma coalizão tão poderosa.
Jogar com Zhang Jue, Zhang Liang ou Zhang Bao é reger uma campanha que flutua entre atacar rápido, ter mantimentos para as suas tropas e ainda criar linhas de suprimento. Os Turbantes Amarelos não chegam a ser categorizados como uma horda – mas é o mais perto que a Creative Assembly chegou em criar um híbrido fora do universo Warhammer.
Pena que eu sou péssimo em jogar com hordas, se não teria aproveitado ainda mais a campanha dos Turbantes Amarelos. Eu, um crítico feroz quanto a passividade da IA de Total War, fiquei impressionado como eles não te deixam respirar. Cada turno antes dos acontecimentos de 190AC são tomados de decisões vitais – você precisa bater rápido, recuar, forçar as suas tropas a marcharem e saquear as províncias que estiverem no seu caminho.
O conceito é apoiado por duas novas mecânicas primárias, o Mandate War – nome dado a campanha da Dinastia Han contra os Turbantes amarelos – e a adição das mais de 40 unidades divididas entre Zhang Jue, Zhang Liang e Zhang Bao. Quem prefere o modo Romance vai sentir pouca diferença no uso de tais unidades, mas o modo Records mais do que compensa isso.
As novas baterias de cerco – como torres e baterias de arcos – fazem com que as batalhas de maior porte de Three Kingdoms sejam menos sobre atrito, e sim sobre como posicionar essas unidades especiais com o fim de criar um afunilamento ou quebrar as barreiras dos inimigos. É mais uma vez formidável ver que o investimento em refinar a IA continua a gerar frutos. O computador é capaz de entender, e defender as cidades dessas novas baterias no modo Records. Por consequência, a conquista territorial dos Turbantes Amarelos foi feita na base de suor e muita paciência para não pular os turnos esperando que algum evento viesse para me dar uma ajuda; já sabia que isso não ia acontecer.
No outro lado da moeda fica a dinastia Han, que leva o sistema diplomático de Three Kingdoms até o seu limite. Mesmo que tenha acesso as melhores unidades do jogo e fundos quase infinitos para manter o reino (mais de 100 mil moedas), as intrigas internas dos eunucos e outros grupos que apoiavam a dissolução da facção – sem contar nos Turbantes Amarelos – significam batalhar em múltiplas frentes dentro e fora do governo.
De 182BC até 190BC não teve um turno onde eu não recrutava tropas, as enviava para lidar com os Turbantes Amarelos e ainda tentava manter a população alimentada. Uso de influência política – o novo sistema que garante você anexar ou tomar conta de tropas da coalizão – é essencial para se ter uma ínfima chance de vencer o Mandate War.
Mas, cedo ou tarde o reinado de Liu Hong chegou ao fim. Tomei a péssima decisão de não ter tropas imperiais próximas ao palácio, o exército de Dong Zhuo tomou conta dele e pôs um ponto final na minha campanha. Creio que pessoas mais perspicazes nos nuances de Three Kingdoms consigam estender ainda mais o seu reinado.
A última frase deve ter dado um nó na sua cabeça, certo? Afinal, Liu Hong foi derrotado em 189BC – começo da campanha de Three Kingdoms. Bem, essa é a hora que a Creative Assembly toma as rédeas e insere elementos anistóricos sem quebrar a estrutura da campanha base. Além de começar com as novas facções, personagens como Cao Cao, Liu Bei ou até Dong Zhuo estão jogáveis no período de Mandate of Heaven e tiveram várias mecânicas alteradas.
Cao Cao, por exemplo, começa sem terras mas com um fantástico bônus de +15 para os suprimentos militares. Os turnos iniciais, novamente, requerem precisão para lidar com os Turbantes Amarelos – que mesmo nas mãos da IA são aterrorizantes – e a ciência de que a dinastia Han irá cair em 189BC. Para a minha surpresa, ainda que os turnos sejam tão estressantes quanto jogar com os Turbantes Amarelos ou com os Han, a maleabilidade que eu tinha para me preparar para 190BC permitiu que eu tomasse terras mais favoráveis para a minha futura expansão.
Tais situações trazem de volta aquela sensação de Shogun 2 e Rome II, que eu podia “pintar” o mapa “da maneira que eu quisesse”. Não chega a ter a liberdade do passado pois muitas situações ainda estão interligadas a narrativa de Three Kingdoms, mas novos eventos anistóricos dão uma maior controle sobre terras e regiões que eu tanto gosto.
Pena que nem todos os personagens receberam a mesma atenção de Cao Cao ou Liu Bei. Jogar com Dong Zhuo em Mandate of Heaven me conferiu a chance de tomar muito mais terras do que o período inicial da campanha de Three Kingdoms me dava. Marchei até a capital sem o menor problema pois a IA estava ocupada demais com conflitos internos e os Turbantes Amarelos. A partir daí o meu território só aumentou, pois o jogo não sabia como lidar com tamanha expansão em um período de tempo tão curto.
Essa, infelizmente, é uma das armadilhas de se ter uma narrativa ligada a uma campanha que visa também ser um pouco “sandbox”. Mude um ou outro parâmetro e o jogo luta para entender o que deve ser feito. Vi as mesmas dificuldades da IA se desenrolarem nas campanhas de Lu Zhi e Tao Qian. Em contrapartida, é um número bem menor do que eu tinha em mente quando eu vi o anúncio de Mandate of Heaven.
O que me faz retornar a um dos meus pontos iniciais, o esforço da Creative Assembly em refinar cada faceta de Total War valeu muito a pena. É difícil de imaginar um DLC desse escopo, com tamanhas mudanças e que leva muitos sistemas até o seu limite, sendo implementado em Rome 2, Shogun 2, Atila ou até Warhammer II. Imagina um cerco imenso como os que acontecem em Three Kingdoms em Shogun 2, onda as tropas têm dificuldade em entender o que é um muro, ou tentar soluções diplomáticas – que foram um dos problemas do último DLC de Warhammer II – com tropas que só querem guerra? Não daria certo.
Onde Eight Princes me afastou um tanto de Three Kingdoms ao ponto de eu começar a minha décima campanha de Mortal Empires em Total War, Mandate of Heaven revigora o meu interesse de maneiras inesperadas. Ainda faltam muitas facções, graus de dificuldade e estratégias arriscadas que eu quero tentar. Vou tomar o meu tempo (e muitas noites) para saborear cada pedaço dessa expansão.
Total War: Three Kingdoms - Mandate of Heaven
Total - 9.5
9.5
Excelente
Mandate of Heaven apresenta uma Creative Assembly que aprendeu que não se deve criar um DLC tão desconectado da campanha base como foi Eight Princes. Cada situação, evento ou decisão tomada no prelúdio a queda da Dinastia Han causa repercussões inesperadas para todo tipo de jogador. A desenvolvedora consegue usar eventos históricos e anistóricos sem alienar parte dos jogadores, e ainda coloca à prova vários sistemas – como diplomacia, cerco e linhas de suprimento – que anos atrás chamá-los de “funcionais” seria inimaginável. Mais uma prova de que Three Kingdoms merece estar entre os melhores da franquia Total War.