Entender a história de um povo é entender como ele se estrutura, quais são os seus valores, como a sua sociedade se formou e se moldou ao longo dos anos. História é consequência humana; história acontece a cada segundo. História pode ser considerada o menor ou maior dos atos. Portanto, esbarrar com história é algo inevitável em Total War – seja por conhecimento prévio, ou por vê-la demonstrada em um povo pela Creative Assembly. Total War: Three Kingdoms (Steam) obviamente se foca em história, mas não só naquela que é demonstrada pelos livros – muitas vezes secos e técnicos sobre um período histórico – mas na própria dramatização desse período contada pelo seu povo.
Sendo alguém que acompanha a comunidade de Total War desde meados de 2011, eu vi crescer um grande desdém por aqueles que não estavam interessados no pano de fundo histórico da franquia, ainda mais depois que Total War: Warhammer surgiu no mercado. Ele era fantasioso, com partidas rápidas, estilo próprio, e seguia uma linha diferente do que a Creative Assembly havia feito em Rome 2 ou Attila: Total War. Dentro do contexto de Warhammer, o que a desenvolvedora oferecia ao jogador era uma maneira de “escrever” a sua própria história de maneiras bem mais robustas do que vistas anteriormente, seja pelo carisma das suas unidades e seus líderes, seja pelo impressionante mapa (que só vai aumentar de tamanho quando Total War: Warhammer III for lançado).
Na tentativa de agradar esses dois lados foi então que surgiu Thrones of Britannia – jogo que critiquei duramente pelas suas mecânicas fracas. A meu ver, era a Creative Assembly tentando trazer os fãs de Warhammer para o universo mais centrado na história da franquia, com a ideia de que a simplicidade era o que os impedia de ter interesse. Three Kingdoms segue essa mesma ideia, só que de forma reversa – ele atrai pelo seu carisma, pelos seus personagens e pela sua história. E talvez não exista período melhor do que o turbilhão que foi a China em 190 para desenvolver isso.
A inevitabilidade de esbarrar com a história, seja ela contada pelo seu povo – aqui representada pelo livro “O Romance dos Três Reinos” – ou com o pano de fundo mais realista – demonstrado pelo Registro dos Três Reinos, de Chen Shou – é que cria um peculiar ar de “magia” para Three Kingdoms. Quando eu comecei uma partida com Cao Cao (recomendado para “iniciantes”) eu não fui levado para uma tela qualquer como foi em Rome 2, com uma breve descrição dos fortes e fracos da facção e solto para fazer o que bem entender no mundo. Era como o abrir de um livro. Uma longa cinemática com requintes de uma peça teatral deu uma pincelada geral no atual estado da China, e onde Cao Cao se enquadra nesse período caótico.
Foi inesperado, único eu diria, ver uma entrada dessas em um jogo como Total War, e especialmente importante para alguém como eu que (infelizmente) não tem o conhecimento que deseja sobre o período. Lá me encontrava, em um belo mapa, com o controle das minhas tropas, rodeado por inimigos e com apenas um território sob meu controle. E esse era o início fácil. Olhei para os menus e mal reconhecia um ícone. “O que houve com a tela de facções, de diplomacia, o que são esses valores?”, me perguntava. Não era mais o Total War que eu conhecia; era um novo Total War.
Assumo que os meses e mais meses da Creative Assembly falando que Three Kingdoms vinha para “revitalizar” a franquia nunca desceram bem na minha goela. Essa foi a mesma conversa que eu ouvi em Rome 2 com o novo sistema de batalha (que se demonstrou tremendamente falho e só foi moderadamente corrigido em 2017) e antes com o ambicioso e terrível Empire – e quanto menos se falar deste último, melhor. Ver essa nova interface e introdução foram os primeiros indícios de que a desenvolvedora tinha finalmente “cumprido” a sua promessa.
No fundo Three Kingdoms é sim uma revitalização de Total War, baseada em grande parte na experiência da Creative Assembly em desenvolver Warhammer e até Thrones of Britannia. Muitos elementos que vi florescerem durante a minha campanha como Cao Cao podem ser traçados de volta para versões “gestatórias” dos sistemas em ambos os games. O primeiro que certamente despertou o meu (e provavelmente vai despertar o seu) olhar é o de diplomacia. Por muitos anos o elemento inconsistente da franquia, aqui ele finalmente se incorpora ao jogo com naturalidade. Grande parte dessa conquista – que realmente considero uma conquista – vem justamente do material base que a desenvolvedora usou para criar Three Kingdoms.
Como falei, esse período turbulento da China pode ser vivenciado e estudado por diferentes facetas. São personagens demais, nomes demais para eu mesmo tentar escrevê-los aqui nesse texto. Ao invés da Creative Assembly tomar a rota de Rome 2 e transformá-los em meros números ou nomes que você vai ler e posteriormente ignorar, ela dá vida a cada um desses personagens em um sistema diplomático que pode ser considerado o mais próximo de um quasi-Crusader Kings 2. Generais – além de compensarem pela similaridade das unidades que estão sob seu comando, um problema inerente de um jogo que se passa em uma região com menor variedade cultural do que, digamos, Rome 2 – têm identidade e motivações pessoais, se harmonizam e se desarmonizam dentro e fora da batalha, concordam ou discordam das suas decisões. É um difícil equilíbrio de se manter, e certamente eu falhei inúmeras vezes em mantê-lo.
Sabendo que tinha apenas um território sob meu controle e que a coalizão criada para derrotar Dong Zhuo era frágil demais para uma investida direta na capital, eu adotei erroneamente a patética tática de iniciar tratados de não-agressão com os meus vizinhos mais próximos (e poderosos) enquanto tentava abocanhar território daqueles mais fracos. Alguém experiente em Total War te dirá que essa é uma opção muitas vezes válida para o jogador – você mantém seus inimigos em uma coleira para eles não te invadirem, manipulando-os com pagamentos ou alguma especiaria de maneira relativamente fácil. Não levei em conta, porém, as características dos meus generais.
Por volta do turno 100, quando já tinha estabelecido uma região moderadamente forte, com boas linhas de suprimento para as minhas tropas (enquanto o restante da China pegava fogo com a morte de Dong Zhuo e a fragmentação da coalizão) foi que eu decidi ser ainda mais ambicioso com as minhas investidas. Quebrei tratados de paz e comecei a destruir fazendas dos meus oponentes.
Foi antes da quarta investida contra uma fazenda – que certamente iria limitar consideravelmente a movimentação das tropas e alimentação das principais cidades dos (pouquíssimos) restantes dos turbantes amarelos — que metade dos meus generais disseram “chega” e levantaram-se em revolta. Eu tinha uma guerra civil nas minhas mãos, várias das minhas cidades sob cerco, e as minhas tropas distantes demais para fazer algo.
Guerras civis não são uma característica exclusiva de Three Kingdoms, muito menos ver seus generais descontentes – um elemento que a Creative Assembly vem moldando desde Total War: Warhammer e Thrones of Britannia – mas é o contexto no qual ambos os eventos são inseridos que lhe conferem maior importância. Esses generais e suas tropas estavam descontentes pois, no olhar deles, eu “traí” a confiança deles ao me aliar com o inimigo para depois quebrar a própria confiança do inimigo e atacá-lo. Foram várias péssimas decisões da minha parte, e a minha inexperiência em entender que personagens não eram mais números e nomes, que levaram à minha primeira derrota em Three Kingdoms.
Muitos desses elementos descritos no microcosmo da minha relação entre mim e meus generais também é aplicado para a diplomacia “ampla” de Three Kingdoms. Toda ação tem uma reação, tratados são temporários, o medo de que eu seja traído por um dos meus “aliados” também vale para a IA. Ainda há um grau de manipulação que pode ser feita na IA, ainda mais no que diz questão a tratados mercantis ou lordes com habilidades especiais, mas acabou aquela história de brincar de ser líder supremo. Ou você toma cuidado com o que você faz, em quem você confia, ou você acaba com uma guerra civil em mãos, com espiões dentro da sua corte.
Talvez o que me impressione mais, não só na diplomacia, mas na camada estratégica de Total War: Three Kingdoms, é a capacidade da Creative Assembly em não deixar pontas soltas. Recursos que eram moderadamente irrisórios a longo prazo, como comida para o seu exército, agora são valiosos para manter a população, o exército e os seus generais contentes. Há uma gigantesca diversidade de atributos para os personagens que não estão lá só para preencher um vazio. Nem mesmo a corte e o sistema hierárquico de famílias – por mais insignificantes que eles possam parecer – deixam de ter um papel a cumprir. E por mais assustado que eu tenha ficado quando eu vi a nova interface, navegar por ela se tornou extremamente natural depois de algumas horas de jogo – muito melhor do que lutar para entender as estatísticas do senado romano e como ele me afeta em Rome 2.
O fortalecimento dessa camada estratégica e diplomática é que dá a base para que a camada tática dos modos Romance ou Records funcione. Como os nomes implicam, Romance faz a campanha seguir um ritmo mais próximo do Romance dos Três Reinos – personagens mais exagerados, batalhas ágeis, generais com habilidades únicas no campo de batalha, e a opção de efetuar duelos entre generais, facilmente um dos maiores atrativos do modo. Já Records se baseia mais no Registro dos Três Reinos e é o retorno da franquia para algo mais próximo de Medieval 2 (incluindo exércitos com grupos de 240 unidades, que certamente vão fazer o seu PC chorar) do que de Rome 2. Generais perdem quase todas as suas habilidades, as batalhas são longas, e as derrotas mais dolorosas.
Independentemente do estilo de campanha que preferir, você vai encontrar uma IA que está muito mais fortalecida e coerente nas suas decisões durante a batalha. Ainda há o ocasional “por que diabos você está enviando essas tropas contra a minha cavalaria sendo que seus lanceiros fariam um trabalho melhor”, mas depois de sofrer com o amargor de batalhas de cerco praticamente inúteis desde Shogun 2, ver que eu consigo conquistar uma cidade e as minhas tropas atuarem como deveriam é um imenso passo à frente para a franquia Total War.
Porém, é um pouco da inevitabilidade da história e da região em que Three Kingdoms se passa que o mantém refém de um sistema que não chego a dizer que é “ruim”, mas que pode ser desencorajador a longo prazo. Eu posso iniciar uma partida com Liu Bei, Yuan Shao ou Cao Cao, e sei que invariavelmente muitas missões irão se repetir. Que Dong Zhuo irá morrer (a não ser que, obviamente, eu jogue com ele), que as tensões irão aumentar nos turnos finais da missão. Por mais que todos os outros sistemas estejam maravilhosamente refinados, eu ainda me sinto um pouco restrito nas minhas ações. Até mesmo a árvore de “Reformas” — nome dado à nova árvore de tecnologia, que pode variar de acordo com a sua facção — segue um molde moderadamente rígido para se extrair a maior eficácia. Sei que pode parecer uma crítica dura para Three Kingdoms, mas eu diria que é um sacrifício inevitável para representar as Chinas e seus personagens, e creio que teria sido assim mesmo se a Creative Assembly decidisse por um modo de jogo apenas – fosse ele Records ou Romance.
É um sacrifício que eu mais do que aceito. É a primeira vez que eu me senti tão envolvido em uma história, tão interessado em conhecer sistemas e até prestar atenção nos personagens envolvidos em um conflito. Three Kingdoms vai além de números e eficácia; ele te envolve em uma narrativa tão gostosa, com temáticas tão intensas, que é difícil de olhar para os jogos anteriores da série Total War com os mesmos olhos, sem ter um forte desejo de que todos eles sejam refeitos no novo sistema de Three Kingdoms.
Foi-se embora a imagem daquela Creative Assembly que tentava, tentava, mas falhava constantemente em renovar os seus jogos, que vivia a sombra eterna de Rome: Total War ou que era lembrada puramente pelo lançamento terrível de Rome 2. Three Kingdoms estabeleceu um novo patamar para a franquia em todas as categorias possíveis. Se esse for o último momento em que a desenvolvedora for capaz de harmonizar tantos elementos e eventos (espero que não), fico feliz que tenha sido com o Romance dos Três Reinos.
Total War: Three Kingdoms
Total - 9.5
9.5
Representando um dos períodos mais caóticos da China, a Creative Assembly consegue finalmente criar harmonia entre as diferentes camadas que regem Total War. O estilo quase “sandbox” é ligeiramente sacrificado em favor de uma campanha mais voltada para contar uma história. Mas é uma história que merece ser vista, lida e apreciada ao seu máximo. É, de longe, o mais interessante e fantástico Total War já feito.