Jonas Kyratzes — de Talos Principle, The Sea Will Claim Everything, Sol Seraph, dentre outros projetos — pontuou muito bem o que tem se tornado um dos meus interesses em jogos: me dê um mundo que valha a pena ser explorado, que tenha uma estrutura intrigante, mesmo que o jogo em si seja confuso, falho e inapto em certas áreas. Muito disso se aplica a The Surge 2 (Steam / PlayStation 4 / Xbox One)
Eu admiro a perseverança da Deck 13 em sair de um jogo inspirado até demais em Dark Souls como foi Lords of the Fallen para a intrincada estrutura de The Surge 2. Sim, ele ainda não tem as animações fluídas que você espera. A história em si não foge da tecno-distopia futurista onde as facções que são o centro da trama são tão presunçosas quanto você imagina, e a significância do seu personagem é menor do que se pensa.
É quando noto o quanto sou insignificante que The Surge 2 começa a ficar interessante. Eu sou um boneco em um mundo cujo futuro vai muito mais além da minha mísera existência. Para o jogo eu não sou nada. Para mim eu sou tudo. Como aproximar-se de um jogo tão frio e calculista? Devo interagir pelas regras dele? Criar as minhas? Estabelecer correlação entre mecânicas?
Não. Nada disso. Propósito, é isso que eu busco.
Quem não busca um certo propósito na vida? Não falo só de jogos, claro, mas essa noção é exacerbada em The Surge 2 ao definir tão bem cada inimigo de suas áreas — mais uma vez repletas de atalhos e desafios escondidos para oferecer uma metanarrativa mais forte do que a própria narrativa principal.
A primeira área que você encontra é formada por ex-presidiários e catadores; é um grupo de pessoas que, após o fechamento da cidade de Jericho, usa dos despejos dos outros para sobreviver dia após dia. Eles também buscam o seu próprio propósito dentro daquela cidade, um motivo e uma forma de seguir em frente. Quem sou eu para julgá-los se eu uso seus corpos para formar a minha própria imagem?
Vamos comparar alguns dos jogos da série Souls e outros inspirados por eles. A franquia da From Software sempre colocou o personagem em um patamar superior aos seus inimigos. O protagonista era o Chosen Undead – aquele que ainda não sucumbiu à loucura, aquele que diante de todos os perigos manteve a sua sanidade. O mesmo estilo se aplica a Dark Devotion: a paladina que lutou contra inimigos que tentavam abalar a sua fé. Até em Death’s Gambit – o menos inspirado pela From Software – seu personagem não é nada mais do que um morto-vivo. Não tem nada a perder, e seus inimigos também não.
Ainda vejo o sistema de combate e desmembramento — por mais macabro, insólito e inconsistente que ele possa ser — um dos maiores diferenciais de The Surge 2. Você não está apenas eliminando um inimigo, vestindo uma peça de equipamento. Você está usando a sua essência, arrancando uma parte de quem ele é para forjar quem você almeja ser — seja através de novos equipamentos, pedaços de metal, ou implantes que melhoram sua eficácia no combate. Toda luta vai além do reducionismo de “aqui está um inimigo e eu preciso das peças dele” para se mostrar um confronto caótico onde eu luto para entender se eu fazia o que era “correto”. A violência exacerbada, até para os meus gostos, de The Surge 2 me deu calafrios, como se ele quisesse que eu sentisse desgosto pelas minhas ações — lembrando-me, assim, que eu não era tão superior aos meus oponentes quanto eu imaginava. Aqueles oponentes ainda tinham vidas, uma esperança, uma chance de sair daquele inferno de cidade. Para mim o único caminho era o da violência.
Se há algo no jogo que reforça tal ideia, é mais uma vez o forte apelo estético que o jogo possui. Eu aprecio períodos medievais, mas é o apocalíptico que infelizmente mais me atrai. Ao invés de ver os meus inimigos como obstáculos, eu comecei a vê-los como pessoas que estavam em situações precárias. São momentos raros em The Surge 2, mas que atingem um efeito tão forte em mim que é difícil de esquecer.
A primeira área do jogo demonstra isso muito bem; ao entrar em uma ruela me deparei com um catador mexendo no que pareciam ser dejetos de alguma empresa, resquícios de um mundo que há muito tempo foi abandonado. Não tive outra sensação a não ser pena, até um pouco de simpatia. O que o levou a chegar àquela situação? Me perguntei.
As áreas subsequentes borram ainda mais essa noção de quem está “correto” ou quem está “errado”. Os militares, ao fecharem a cidade, tomaram a decisão correta? E a população que agora passa fome e agonia? Isso me dá o direito de transformar os cidadãos em peças para o meu complexo quebra-cabeça de montar novos equipamentos? O jogo diz que sim; eu me sinto desconcertado pela ideia.
Cada microcosmo estabelecido em The Surge 2 só me fez me sentir ainda mais sufocado perante as minhas decisões. A inevitável necessidade de arrancar braços, pernas, decapitar pessoas. Em muitos jogos eu os vejo como os inimigos, mas aqui eles eram apenas pessoas que estavam fazendo o seu melhor para sobreviver. Eu não concordava com as suas táticas, mas é depressivo ver essa situação se desenrolar ao longo do jogo.
É por isso que The Surge 2 é tão efetivo em sua ambientação. Não o julgo como um fantástico jogo de ação, mas cada combate estabelece a sensação entre a vida e a morte — entre o certo e o errado. Fui jogado naquele mundo com a ideia de que eu devia ser o salvador. Nunca me senti o salvador. Quem eu salvava além de mim mesmo? Por que as vidas daquelas pessoas — independente do que fizeram antes — valiam menos do que a minha? Será que estabelecer mecânicas de interação com o personagem, gerar um senso de progressão, fortalecer o meu personagem valem o preço a ser pago em vidas?
The Surge 2 não entra muito nessas questões, o que vejo como a sua maior falha. Teria preferido um jogo que estabelecesse um maior vínculo entre as diversas facções presentes e como a sua interação pode afetar a sua reputação com elas do que mais um quasi-dungeon crawler. Entretanto, eu estou mais do que ciente da necessidade de construir essa “power fantasy” para agradar ao público em geral, dessa ideia de aprimorar o personagem de diferentes formas. Use seus inimigos como meros bonecos prontos para serem trucidados por você.
Quando penso nisso a encruzilhada fica mais evidente. Eu adoro The Surge 2 pelo o que ele é: um projeto ambicioso, que nem sempre atinge o que almeja e tenta equilibrar conceitos disparates como uma jogabilidade que te dá poderes e soluções para os problemas que assolam a cidade. Mas, são as suas soluções as melhores? Deveria você se sentir mal por elas? Se você está tentando sobreviver, o que te dá o direito de eliminar a vida de outra pessoa, arrancar seus braços, pernas, torso para se tornar ainda mais potente?
Quando eu terminei o último chefão de The Surge 2, não senti a nenhuma sensação de prazer ou de que eu fiz a “coisa certa”. E a dezenas de corpos que deixei pelo caminho? Como lidar com a brutalidade que este universo distópico me apresenta? Era para trazer algum conforto?
Eu não vou dizer que The Surge 2 é um dos jogos mais depressivos do ano, mas se você olhar um pouco além das camadas de narrativa e do pretexto estabelecido pelo primeiro jogo, é uma tremenda demonstração de como uma empresa de tecnologia pode destruir uma cidade inteira. Um assunto que, mesmo carregado de alegorias, está mais presente do que nunca em 2019.
Retorno então à frase de Jonas: The Surge 2 não é perfeito, ele carece de algumas mecânicas que poderiam ser mais refinadas. Mas o mundo que foi construído — a coesão de cada área, o desejo de explorar cada canto, a sensação de desespero e a necessidade de você tomar decisões nefastas, de eliminar pessoas que supostamente estavam apenas tentando sobreviver — fazem dele um jogo merece ser estudado muito além das suas aparências.
The Surge 2
Total - 9
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A falta de refinamento de The Surge 2 é compensada por uma discussão que merece ser analisada. Até que ponto vale a pena deturpar a vida de tantos supostos inocentes que foram levados ao extremo para dar poder ao jogador se o verdadeiro poder está nas mãos das empresas? Depressivo, macabro e fúnebre.