Abomino boa parte das visões futurísticas usadas em jogos. Tudo é muito estéril, muito limpo. Um comercial de iPod em meados de 2000 onde a humanidade descobriu a não sujar as coisas. The Surge, da Deck13, chega com um ar sujo, industrial, asqueroso. Tão asqueroso quanto as aberrações que habitam seu universo. O game está disponível para Xbox One, PlayStation 4 e PC a partir de R$129,99.
Ambientado em um futuro não tão distante, The Surge começa com o jogador sendo o funcionário mais azarado do ano, onde após começar a trabalhar na CREO — uma empresa que “está salvando o mundo” — acorda em uma parte do complexo dominada por máquinas mal funcionais e humanos enlouquecidos. Clichezão, mas não precisa de mais do que isso para justificar arrancar cabeça de robôs.
The Surge segue um estilo mais “hub interconectado” do que um “open world”. As áreas são bem demarcadas e constritas. Isso é tanto o ponto forte como o ponto fraco. Ele raramente demonstra a necessidade de voltar para áreas anteriores salvo o New Game Plus. Por outro lado, a maneira que as áreas são dispostas facilitam a navegação e instigam a curiosidade. Traz consigo um visual mais claustrofóbico sem degringolar para o sombrio. A temática industrial o eleva a um novo patamar visual como estrutural. O que temos aqui é um jogo que visualmente mostra-se próximo de algo tátil para qualquer pessoa que viu uma imagem de uma fábrica e que ao mesmo tempo provoca estranheza.
Ele replica com sucesso aquele gostinho de achar um atalho de volta para a área inicial que tanto se perde em outros jogos inspirados pela série Souls. The Surge também faz parte do ótimo conjunto de jogos, ou segunda leva como prefiro falar, de jogos pós-souls. Não copia os sistemas, mas se inspira neles.
De maneira julgo inesperada, ele joga fora o sistema de atributos como força, destreza, em favor de um sistema de Power consumption que promove flexibilidade e experimentação. Cada Exo-Suit tem um limite de implantes e quantidade de energia que pode ser atribuída em dado momento. Uma Exo-Suit com Power Consumption 20, por exemplo, pode ter dois implantes e peças até o limite de 20 pontos de energia. Com isso você pode, então, escolher como se aproximar do combate de forma diferente.
Nas primeiras duas áreas havia optado por uma build mais leve, com ênfase em esquiva e ataques rápidos. As minhas peças de proteção reduziam o uso de stamina e implantes que aumentavam a vitalidade — os únicos atributos fora ataque, proficiência de cada arma e defesa. Quando me vi em apuros devido a dois robôs que tinham tudo para me causar pesadelos, rapidamente mudei para uma build mais pesada. Golpes lentos, mas que quando apontados nos pontos fracos causavam um dano massivo. Tal tática é o que alimenta diretamente o segundo e mais importante sistema de The Surge: Finishing Moves e seleção de membros.
Em uma versão relativamente aprimorada do sistema aplicado pela Techland em Dead Island, The Surge permite com que o jogador selecione que parte do corpo focar do inimigo. Partes sem armadura podem causar mais dano, enquanto partes com armaduras, menos. Para que o jogador não se sinta influenciado a atacar somente as partes sem armaduras, as partes com armadura podem, com o uso dos finishing moves — golpes finalizadores dados quando o oponente tem pouca vida — deixar cair pedaços de equipamento ou material para a criação de itens. Essa mecânica é basicamente a forma primária de obtenção de materiais.
O loop de gameplay The Surge acaba se tornando viciante por conta disso. Cada área é um “Ok, quais tipos de inimigos estão presentes? Que materiais posso obter deles e que tipo de arma usar?”. Só não escapa de críticas por cair no mesmo problema de Dead Island, em momentos é humanamente impossível selecionar o torso do inimigo. É mais fácil escolher a perna esquerda do que o torso. Olha que isso foi no controle, pois no teclado + mouse era pior ainda. Aliás, Jogar The Surge no mouse e teclado, assim como boa parte dos jogos de ação com combate corpo-a-corpo, é melhor não jogar. Bastou cinco minutos para eu plugar o controle. Mas ainda assim não o suficiente para eu não me irritar e deixar de evoluir o torso para poder ao menos avançar na “história”.
Não é para falar mal dos avanços da Deck13 no quesito narrativo. Ao menos tiraram boa parte das “cutscenes” que acabavam com a cadência de Lords of The Fallen e optaram por uma aproximação de Audiologs e alguns personagens secundários. No entanto, todos caem no mesmo problema de serem superficiais demais. Nas primeiras horas de jogo, por exemplo, você encontra um mecânico que precisa de um medicamento. Após vasculhar alguns minutos, encontro e o entrego. Recebo um obrigado e fica por isso. Não que eu mereça um tapinha nas costas por cada ação feita, mas já é esperado que uma quest secundária dê algum tipo de recompensa. Nem mesmo o habitual “lore” é expandido por meio dessas conversas. Ainda bem que já tinha em mente de apreciá-lo pelo gameplay e o desafio, jamais pela história. E The Surge tem desafio de sobra, por incrível que pareça.
Saem os inimigos insignificantes de Lords of the Fallen e entra um formato que prioriza o posicionamento dos mesmos. Se alimentando do sistema arbitrário de equipamento, The Surge faz com que o jogador se sinta constantemente em apuros. Nenhum inimigo, nem mesmo os da área inicial — que serve como um tutorial — devem ser subestimados. Eles batem e batem pesado. Isso cria uma apreciação pelo trabalho da Deck13 em conceber os mapas interconectados. Com a quantidade de vezes que acaba por morrer, os atalhos começam a se tornarem mais atraentes e consequentemente segredos são encontrados.
Um específico momento pula na minha mente enquanto eu tentava desviar de cinco inimigos em uma mesma área. Ainda sem uma arma potente o suficiente para ataca-los, um deles já era stress suficiente, cinco então. Bastava dois golpes e estava no chão. Ao cair em um andaime, me deparei com uma pequena ponte que terminava em um pequeno túnel. Dentro dele, achei dois implantes que levaria para o resto da partida — um que aumentava consideravelmente a vitalidade e outro que reduzia o custo de energia para os “Finishing Moves”.
Os próprios chefões são uma extensão da maneira que a Deck13 cria The Surge. Remove os tão criticados chefões-esponja que eram vistos em Lords of The Fallen e coloca os que prezam por táticas e ações inusitadas. Os chefões de maneira geral usam uma barra de “stagger”, que é o momento onde eles ficam mais vulneráveis e recebem dano elevado. Uma mecânica comumente vista no PlayStation 2, mas que se tornou obtusa ou removida da geração anterior. Para causar esse “stagger”, o jogador as vezes tem de se posicionar em um ponto onde o chefão se machuque ou acerte um local do ambiente para ficar atordoado. Simples no papel, isso garante que The Surge não caia na repetição de chefões, tampouco no uso constante de táticas similares e força o jogador a prestar mais atenção no que faz.
Possivelmente o maior feito da desenvolvedora alemã em The Surge é fazer com que o jogo tenha uma identidade, mesmo que pareça justamente ao contrário pelas imagens ou vídeos. Ele torna isso visível por todas as mecânicas citadas anteriormente. Raros foram os pontos em que pensei “Ah sim, esse jogo é inspirado por Demon’s / Dark Souls”. Lentamente começamos a marchar para o divórcio de uma franquia com o subgênero que ela a criou.
O ponto é importante tanto para os jogadores como para os desenvolvedores e não restrito apenas à Dark Souls. Os games de estratégia 4X também passaram por isso, RTS tradicionais no período pós-Command & Conquer nos anos 90 e os shooters pós-doom idem. Na medida em que separamos a obra-base do conceito geral, mais espaço para novas ideias são abertos. Os desenvolvedores deixam de tentar evocar a mesma sensação que a From Software queria na série Souls e começam a trabalhar novos sistemas / mecânicas para aplicar sua influência no amadurecimento do formato de maneira geral. Assim, evitamos um possível Lords of The Fallen ou um novo Yooka-Laylee — por mais que o último tenha seus méritos.
É sempre revigorante quando um jogo te faz marchar para o desconhecido ao invés de se prender nos cansados estereótipos e convenções do gênero ou subgênero. Em quase dez anos desde que Demon’s Souls atingiu o mercado, finalmente começamos em 2017 a ver trabalhos mais divergentes. Dead Cells, Nioh e agora The Surge são um ótimo exemplo. Se Lords of The Fallen foi um tropeço, The Surge são dez passos à frente.
The Surge
Total - 8
8
Às vezes impreciso nos controles e com uma história rasa, The Surge compensa isso com tremendos momentos de tensão, um mundo impiedoso e um loop de gameplay que reforça a necessidade de experimentação. O jogo que faz a Deck 13 dar a volta por cima e mostrar que, no fim das contas, aprendeu bastante com os deslizes do passado.