Eu sento para escrever um texto e algo me agoniza. Levanto, faço um café, apoio meus cotovelos na sacada e fico ali por alguns minutos. A brisa da madrugada sempre me acalma. “Será que vale a pena todo o esforço? Eu estou feliz com isso?”, é algo que repito constantemente a mim. Creio que estou satisfeito, mas seria satisfação só o que eu busco nessa vida? Jogar The Red Strings Club (Steam, GOG) fez com que essa questão fosse perfurada ainda mais fundo em minha mente.
O novo jogo da Deconstructeam (Gods Will be Watching) se joga sobre conceitos existencialistas para definir a sua temática Cyberpunk. Seu foco não está em uma corporação vilã em busca de controle total, algo que já estamos acostumados a ver, mas em mostrar a natureza do que significa ‘ser humano’ em cada um dos seus personagens, e, por consequência, também em nós
Diferentemente de Observer da Bloober Team ou RUINER da Reikon Games, a Desconstruteam não mostra um mundo distópico onde as corporações são a “lei”, mas sim um mundo na beira de um abismo sem fim – uma sociedade prestes a entrar em colapso. Seu mundo é moldado de uma forma tão inconsistente quanto a existência humana, construído como uma cidade que cresce sem planejamento. Dentro dessa cidade não-planejada está o The Red Strings Club, um bar encabeçado pelo bartender Donovan – que também atua como um “vendedor de informações” – e o pianista Brandeis, que tem uma vida dupla como um hacker.
Ao viverem esta “vida dupla”, eles acabam em uma situação a qual descrevo no mínimo como complexa. Uma possível ameaça à estrutura da sociedade veio à tona; um projeto que iria alterar tudo o que eles conheciam como o “normal”. Uma androide que não deveria estar em circulação surgiu em sua porta. Uma noite tranquila em um bar virada de cabeça para baixo. Mas, nada tão fora do comum quando se trata de bares.
Bares são como um cruzamento de vidas, não acha? Você vai com seus amigos, conhecidos, familiares até. Sentam em uma mesa ou no balcão e aproveitam o ambiente. Às vezes para tirar o stress de uma semana turbulenta, ou quem sabe para aproveitar o que está passando na TV. Quem sabe você só quer um pouco de companhia, ou se afastar do mundo.
Independentemente, ele atua como uma espécie de aglomerado de sentimentos e experiências humanas, todas devidamente pontuadas. Pense nas mesas, no balcão, como um sistema em si – sua estrutura moldada pelos participantes daquele ambiente.
O que cria o ar de autenticidade de The Red Strings Club não é necessariamente a temática Cyberpunk; é a manipulação desses sistemas de interação humana dentro de um local tão presente no cotidiano. Donovan, o bartender, é capaz de “tocar a alma” das pessoas com seus drinks – demonstrado no game através de um minigame onde o jogador tem de misturar diferentes bebidas – e trazer à tona diferentes emoções. Luxúria, fracasso, ansiedade, medo.
Somos todos, afinal, construções sociais. Submetemo-nos a regras e práticas que continuamente se alteram com o tempo, e às quais continuamente nos adaptamos. Tentamos definir quem somos, mas não temos um ponto de partida, pois ele não existe; num processo sem começo nem fim, construímos a nós mesmos. O ato de “tocar a alma” seria, então, o mais próximo dessa real construção. E nós somos, muito, muito falhos.
Cada novo cliente que The Red Strings Club me apresentava era uma facada no coração. Tentando evitar ao máximo entrar no território de spoilers, vou dizer apenas que muitos dos personagens eram interligados ao que o jogo chama de Social Welfare Project, um projeto que iria supostamente “melhorar” a qualidade de vida das pessoas. Entretanto, o ato “melhorar” pode ser uma visão utópica demais. Como iremos melhorar, sem nem ao menos sabemos o que queremos? Como tal conceito é aplicado a uma sociedade se nós não conseguimos entender as necessidades do indivíduo?
Uma chacoalhada da coqueteleira e uma nova história desabrochava na minha frente. A de um cientista com a sensação de ser uma fraude, a de uma gerente de marketing cuja ética estava em cheque. Todos falhos, todos… humanos. Caía por terra a minha principal dificuldade de me identificar com muitos personagens de jogos: a falta de falhas neles, personagens quase sempre conduzidos por um único propósito, enquanto pessoas reais como eu lutam todo dia para encontrar um propósito que seja.
Entender a noção da não-perfeição é uma tarefa árdua. Jogos como Deus Ex (e tantos outras mídias que retratam o universo cyberpunk) equivalem a perfeição com o uso de implantes; implantes para pessoas funcionarem melhor, reprimirem os sentimentos, evitar ansiedade, a depressão – em suma, para serem felizes, “melhores”.
“Eu estou programada para te fazer feliz, não para te dar tudo o que quer – são coisas diferentes”, me disse Akara, uma androide que assume um papel importante na história. Ela não está errada. Muitas vezes escondi a minha depressão ao me “presentear” com coisas, preencher lacunas da minha vida por meio do materialismo, fabricar emoções.
Seria então o ato de Donovan de “tocar a alma” por meio dos drinks a fabricação de emoções? O que é a fabricação de emoções? Uma virada da garrafa de vodka no copo, outra dúvida na minha cabeça. Era o correto? Estaria manipulando essas pessoas por informações? Seria eu tão diferente assim de uma corporação gigantesca? Os fins justificam os meios?
Brandeis e seus implantes não eram tão diferentes. Com mais tempo de tela nos momentos finais do jogo, ele forjava identidades, extraía informações. Mas tudo para um “bem” maior. Talvez nisso ele encontrasse a sua felicidade; ou talvez só tentasse forjá-la com implantes e um propósito.
Se tudo soa ambíguo, é porque viver é ambíguo. Dizer a si mesmo que a resposta que deu a uma questão é a “correta” é estar automaticamente fadado à decepção. Às vezes esconder os sentimentos é uma questão de sobrevivência. Somos mais falhos do que aceitamos ser.
Fabricamos nossos sonhos, felicidades, escondemos o que não queremos que os outros vejam, carregamos fardos para tentar mostrar que está “tudo bem”. Entramos em guerra com nós mesmos para nos adaptarmos constantemente a situações estressantes, para estampar um sorriso na cara. Deitamos na nossa cama e nos perguntamos “será que tudo isso valeu a pena?”
The Red Strings Club é uma trágica história sobre a busca pela felicidade, a ética das nossas decisões e a moral imposta por nós mesmos para aceitarmos a nossa versão da “realidade”. Em dado momento do jogo, Brandeis pergunta a Donovan se ele está confortável com a vida dele. Eu, no controle de Donovan, digo que sim. Teria eu respondido com honestidade, ou só tentado fabricar mais uma emoção para que o personagem se sentisse bem? Ou era eu tentando justificar os meus atos sem ao menos notar que as minhas ações eram uma extensão dos meus valores?
É, eu acho que é a minha vez de pedir um drink.
The Red Strings Club
Total - 9.5
9.5
Excelente e tocante história sobre a natureza humana, sobre como nos adaptamos às adversidades e tentamos conjurar emoções para nos adequarmos ao ambiente em que estamos inseridos. The Red Strings Club nos lembra que somos falhos, e que não importa o quanto tentemos esconder isso de diferentes formas - mais cedo ou tarde teremos que abraçar esse nosso lado e aprendermos a conviver com ele.