Eu não costumo ter problema em jogar na pele de um vilão. Ele é um vilão por um motivo, certo? Suas ações não são benéficas — a não ser para ele mesmo ou o um grupo de interesse —, e é esperado que a sua atitude seja uma de indiferença contra aqueles que ele está ferindo. A minha posição sobre o tema foi colocada em questão muitas vezes durante as campanhas de “Fabulous Fear Machine” (Steam).
O título de estratégia da Fictorama Studios não esconde que o seu interesse é explorar temas absurdos, violentos e, muitas vezes, desagradáveis. Tudo começa com uma máquina que garante “todo e qualquer desejo” para aqueles ambiciosos o suficiente para usá-la. Qual o preço a ser pago é outra história.
É uma premissa muitíssimo interessante e que, boa parte do tempo, funciona. Cada campanha gira em torno de um personagem específico. A herdeira de uma empresa farmacêutica que quer ser líder de mercado, um líder de um culto cujo objetivo é expandi-lo e ter mais seguidores para finalmente pôr o seu plano em ação. A história de cada personagem é entrelaçada e expandida com o que eles estão dispostos a fazer para alcançar o seu objetivo, é aí que você entra.
A principal mecânica de “Fabulous Fear Machine”, é o medo. O medo toma múltiplas formas, mas aqui a principal “moeda” é a inserção de histórias distorcidas, mentiras, lendas urbanas no consciente coletivo. Isso é feito pelo uso de cartas em um mapa. Quanto mais forte a lenda e mais inserida na população, maior medo ela gera.
O sistema é intrigante, mas às vezes um pouco obtuso demais. Não ajuda que, o que deveria ser o tutorial, joga vários conceitos na sua cara antes mesmo de você ter tempo de digerir o anterior. Agentes, cartas, lendas, oponentes, tudo isso é “aprendido” em menos de 20 minutos e você já está “liberado” para avançar para um mapa ainda maior. O maior problema neste ponto é o uso exagerado de jargões pela Fictorama Studios. Se “The Fabulous Fear Machine” tivesse um glossário ou ao menos um sistema de dicas mais robusto, essa questão já seria resolvida em instantes.
Quando eu finalmente peguei o “jeito” de como “The Fabulous Fear Machine” funciona, fiquei igualmente apaixonado e apavorado. Aumentar o medo de cada cidade é feito com cartas chamadas “Lendas”. Algumas são absurdas, como uma chuva de sapos ou fantasmas no metrô. Outras são, dolorosamente próximas a realidade. É agonizante expandir o medo de uma população por histórias distorcidas que envolvem o aumento de sequestros em rodovias, envenenamento de rios ou próteses produzidas sem qualquer preocupação com a qualidade delas.
Em uma era onde a desinformação e notícias falsas se espalham como uma praga — ainda mais com algumas das principais plataformas de redes sociais sendo usadas para esse propósito — nem mesmo o estilo “Pulp” de “The Fabulous Fear Machine ajuda a reduzir o impacto de usar a mesma ação em um jogo.
Eu não estou aqui apontando o dedo para a Fictorama Studios e falando que o que eles produziram é algo “errado”. Pelo contrário. Usar tais lendas para expandir o medo, derrotar a minha competição e alcançar objetivos é desconfortavel — e deve ser assim. Eu me senti sujo, me igualei aos personagens, senti um gosto amargo na minha boca que poucos jogos conseguem produzir.
Mas o que “The Fabulous Fear Machine” faz de melhor é a caracterização desses personagens. Ninguém necessariamente nasce um “vilão”, mas sim se torna um por uma série de traumas ou ações que os levam a isto. A desenvolvedora não passa pano para as suas ações, mas faz um trabalho formidável de demonstrar a racionalização — por mais perversa e contorcida que ela seja — das ações de cada protagonista. Abandono, ódio pelos pais, ódio por não ser reconhecido, desprezo pela sociedade.
A Fictorama não pede, tampouco espera que você crie simpatia com os personagens (ainda bem), mas ao menos aponta, aperta na ferida, e mostra os motivos que levaram a ser quem são. Assim como as minhas ações no mapa, ver o desenrolar da história era igualmente desagradável como deveria ser. E, ainda bem que a Fictorama é tão boa em contar histórias, pois foi isso que me carregou ao longo do restante das campanhas.
Pois, apesar de ter uma interessante premissa com o uso de cartas e lendas, o sistema rapidamente se torna um tanto repetitivo. Cada mapa do jogo segue o mesmo padrão: Escolha uma cidade para plantar o medo, use lendas, expanda o medo, derrote possíveis competidores e complete o cenário. O maior desafio de “The Fabulous Fear Machine” é o “tempo restante” para completar o cenário.
Embora não tenha um limite de tempo tradicional, quanto mais você demora para expandir o terror, mais caro custa usar cartas. Certos cenários viram até pequenos quebra-cabeças. Uma lenda colocada no lugar errado, um recurso que você esqueceu de pegar e pode se preparar para recomeçar do zero. A desenvolvedora até tenta variar a jogabilidade com a inclusão de um sistema de agentes, cada um com uma “personalidade” e atributos passivos diferentes, mas eles acabam virando mais um recurso que você tem que administrar do que algo que tem um impacto significativo no cenário.
Esse é um dos tantos problemas que jogos de estratégia focados em narrativa precisam lidar. Apesar da repetição, se a Fictorama Studios adicionasse elementos demais, o foco na história dos personagens acabaria ficando em segundo plano. Poucos elementos e ele acabaria ainda mais repetitivo. “Frostpunk” é um exemplo primordial desse efeito em ação, e a 11bit Studios tentou dezenas de soluções nos subsequentes DLCs e só acertou uma vez ao praticamente trocar todas as mecânicas base.
Se fosse para dar algum “pitaco” acerca da progressão, eu teria recomendado que a Fictorama expandisse a mecânica de rivais. Boa parte deles surgem apenas como um “empecilho” para a sua dominação global, ou seja lá o que o protagonista da história tem em mente. É uma oportunidade perdida de expandir o universo do jogo, assim como mostrar como outros personagens de “menor impacto” racionalizam os seus próprios interesses sórdidos.
Mas, para isso acontecer, é preciso alterar outros tantos conceitos de “The Fabulous Fear Machine”, e espero muito que a Fictorama expanda isso em uma sequência. O potencial do jogo é imenso, a capacidade da desenvolvedora de contar histórias e deixar o jogador desconfortável não pode — e nem deve ser — minimizado.
Por anos vivemos em uma era onde quase todo jogo de estratégia com foco na narrativa era uma “cópia” de “Frostpunk”. A mesma temática pós-apocalíptica, os mesmos processos, e os mesmos eventos. “The Fabulous Fear Machine” quebra este molde de forma excepcional.
Ele vai te garantir centenas de horas de jogo? Não, e nem precisa disso. Todas as suas mecânicas funcionam como deveriam? Também não. Uma coisa eu tenho certeza que ele vai te fazer: te deixar muito, mas muito desconfortável. E, em uma época onde a desinformação reina, sua temática não podia ser mais atual.
The Fabulous Fear Machine
Total - 8.5
8.5
epois de anos com jogos de estratégia / gerenciamento focados em temas pós-apocalípticos, “The Fabulous Fear Machine”, mesmo com todos os problemas que têm acerca das suas mecânicas, chega com um frescor fabuloso. Sua narrativa é intrigante de acompanhar, seus personagens são abomináveis e a racionalização de suas ações ainda mais. É aquele jogo para te dar um nó no estômago, te deixar com raiva e angustiado com tanta desinformação e mentiras. Mais atual, impossível.