Comente com alguém sobre algum “reality show” e você pode receber uma série de reações. “É fútil, mas eu adoro”, “Não sei como vocês conseguem assistir isso”, “Vocês não sabem que tudo é praticamente armado?”, “Nossa, você viu o que aconteceu no último episódio”? Nenhuma dessas respostas está necessariamente certa ou errada. Em pleno 2024, reality shows são uma indústria muitíssimo maior e lucrativa do que “Crush House” (Steam) apresenta ao jogador, mas uma que também não foge tanto aos moldes e não deixa de cair nas suas próprias armadilhas.
O título da Nerial começa com o jogador assumindo o papel de Jae Jung — parte produtora, parte câmera, parte tudo. O seu objetivo? Filmar uma temporada do reality show de “namoro” Crush House — ambientado no começo dos anos 2000, onde o gênero começava a tomar forma no exterior, bem antes das boas audiências aqui no Brasil por sua ressurgência nos últimos anos — e pegar as cenas mais “interessantes” para audiência. Só há uma regra: nunca, mas nunca falar com os integrantes da casa.
Como alguém que assistiu mais reality show do que devia em uma única vida, a premissa de “Crush House” me atraiu no minuto em que eu comecei a minha primeira temporada. Quem escolher para integrar a casa, quais são os interesses em comum, será que eu vou conseguir colocá-los em um mesmo ambiente e criar um drama, ou quem sabe, uma cena que vai animar a audiência?
Antes de mais nada, qualquer ideia que você tenha de transformar a filmagem de “Crush House” em um documentário, ou tentar uma abordagem mais “artística”… esqueça ela. Você tem uma audiência para agradar e sete dias para gravar uma temporada. Além do que, a audiência não quer um novo documentário do Herzog. Se eles quisessem, eles não estariam assistindo “The Crush House”.
A Nerial exagera, às vezes até demais, nos estereótipos. Todo final de episódio tem uma “resposta” positiva ou negativa dos mais variados públicos. Há aqueles que querem ver bundas, e quem queira ver os integrantes enchendo a cara, e mesmo pessoas que por algum motivo desejam ver as plantas do cenário ou os integrantes perto de plantas. É uma “corrida” para tentar agradar o máximo de público possível sem que a próxima temporada seja cancelada. Se soa frustrante, é por que eu creio em parte que é proposital.
“Agradar o público” é entender que você nunca, nunca vai agradar todo mundo. Não há espaço em um único dia — em uma única vida — para agradar todas as pessoas. “The Crush House” não necessariamente te pune por falhar, mas eu sinto uma pitada de frustração quando eu não consigo atingir todas as metas necessárias.
Parte disso vem do meu próprio histórico em gerenciar o site. Anos e mais anos levantando finais de semana para tentar montar uma grade de matérias. Como produzir matérias interessantes, como encontrar novos ângulos, como se reinventar para uma audiência que demanda cada vez mais de você? Será que manter o mesmo ritmo, cadência, ou encontrar novos meios de transformar a sua produção é necessário ou não?
É possível prever tendências, mas nem sempre há reações. Felizmente “The Crush House” é muito mais amigável neste ponto. Falhe em atingir uma meta e você tem apenas que recomeçar o dia. Quem dera fosse assim comigo; teria me salvado umas boas sessões de terapia.
Em meio a essa “correria” de querer agradar o público e gravar os momentos importantes é que o desenvolvimento dos personagens de “The Crush House” acontece. Embora não sejam dublados, a dinâmica que a Nerial conseguiu criar com cada um deles e a forma que eles não só estabelecem a sua “presença” na casa mas lentamente tentam deixar o seu “verdadeiro eu” aparecer é fantástica.
Mas, seria essa a “verdadeira faceta” desses protagonistas, ou só uma para tentar atrair ainda mais o público para o lado deles? “The Crush House” levanta esse ponto gravação após gravação. O segredo está nos detalhes, na forma que os integrantes interagem, e, obviamente, no drama por trás das cenas.
Como todo bom reality show, eu já esperava que “The Crush House” tivesse uma boa dose de surpresas e ele não decepciona. Regras são feitas para serem quebradas e em uma altura da segunda temporada, Jae acaba interagindo com um dos integrantes da casa. A partir desse ponto o título da Nerial toma uma direção quasi-“Firewatch”. Ainda que o título da Campo Santo tenha saído em 2016, o uso do walkie talkie para estabelecer e enriquecer uma narrativa se torna a chave de ouro para “The Crush House”.
Sem entrar em muitos detalhes, dias rotineiros — que facilmente poderiam se transformar em monotonia de mais uma filmagem, mais uma edição, mais uma pausa para patrocinadores — se transformam em momentos em que eu me perguntei quando que o walkie talkie ia tocar. Quando a história “secundária” ia avançar.
Eu não vou dizer que gostei muito da conclusão dessa história secundária — que fecha ao completar a quarta temporada do reality show — mas ela levanta um ponto muito crucial para que “The Crush House” funcione para mim: quando você está na realidade do dia a dia por trás de uma de produção, tentando agradar alguém ou a muitos, qualquer oportunidade que apareça para quebrar essa terrível rotina é empolgante.
O jogo reforça bem a ausência de glamour na vida de Jae. Um quartinho mal iluminado no porão, uma cama que se fosse feita de espinhos seria mais agradável de deitar, um computador onde você “edita” as filmagens e vê a reação do público. É agoniante de ver, de sentir. Eu já estive em situações “similares” no passado — muitas que não posso entrar a fundo aqui. Fechar um dia de edição me trouxe memórias terríveis, e ao mesmo tempo um alívio de ver que eu atingi a cota de audiência.
Filme, edite, corte, apague, jogue fora, recomece. “The Crush House” tem muitos momentos de monotonia, ainda mais nas temporadas finais, onde alguns integrantes — especialmente se forem queridinhos da audiência e retornam para passar outros sete dias na casa — começam a repetir algumas ações e falas.
É bem provável que isso tenha sido uma limitação da Nerial ou até mesmo um bug presente no jogo, mas para mim só ajuda a reforçar como a estrutura de um reality show funciona: a superfície dele se mantém a mesma. Se você assistir temporadas demais você vai começar a ver cada vez mais certos padrões que mantêm a sua audiência presa neles. O que muda são os cenários, os protagonistas. O drama? É aquele que você viu pela primeira vez que você ligou a TV, apenas empacotado de forma diferente.
Nos momentos finais da trama eu ponderei qual era a minha importância e a importância de Jae para a máquina do reality show. Os participantes se despedem, descem um tobogã, alguns eventos se desenrolam e os créditos sobem na tela. Eu? Eu só estava ali como uma ferramenta, mais uma peça para agradar o público, para perder sono por conta de uma audiência insatisfeita. Os integrantes eram igualmente vitais e dispensáveis. É tudo uma farsa? Não importa, é entretenimento. Se as minhas ações tornaram esse entretenimento possível, então eu posso dormir em paz.
Por mais que eu tenha a minha parcela de críticas de como a Nerial trabalhou a história secundária e a integrou com certas partes do jogo, “The Crush House” vai muito além da maioria de jogos que tentam “simular” qualquer tipo de reality, show de TV ou estúdio de filme. As coisas não são belas, problemas acontecem, atrasos, incompetência, incompatibilidade podem acabar prejudicando um dia de filmagem. A audiência sempre vai estar na sua goela e se você deixar vai ser sufocado por ela, com a possibilidade sempre presente de ir para o ralo junto com o programa.
Pode ser que você não ligue para reality shows. Eu diria que a maioria dos meus leitores não ligam; se fosse para chutar, eu diria que muitos olham para eles e os chamam de supérfluos. Mas, mesmo para aqueles que não têm a menor conexão com esse mundo de absurdos, glamour e exagero, eu recomendo — e muito — “The Crush House”. É a antítese dos jogos que envolvem qualquer tipo de “criação de programas ou filmes”. Ele não sanitiza ou mostra apenas o lado “burocrático” ou de “gerenciamento”. O “pior”? No fim você vai acabar querendo mais — tal como a espera da próxima temporada do seu show favorito.
Crush House
Total - 9
9
Pegação, drama, mistério, stress, uma audiência que demanda cada vez mais da produção. “The Crush House” abraça os “15 minutos de fama” de um reality show de namoro, não sanitiza nada, e mostra que tudo está sempre prestes a desmoronar. Um interessantíssimo — talvez mesmo único — olhar sobre um dos gêneros televisivos mais prevalecentes nos últimos 20 anos.