“Por que você se importa tanto?” é uma questão recorrente nos últimos seis ou sete anos da minha vida. Por que você se importa se alguém que você mal conhece não está bem, ou se não pode resolver o problema de outra pessoa para ela? Sei que essa linha de pensamento vem muito da minha teimosia de, mesmo introvertido, manter a esperança de que a humanidade é capaz de criar coisas boas. Surviving Mars (PC, Xbox One, PlayStation 4), aparenta ter dúvidas sobre isso.
O primeiro foguete aterrissou em Marte carregado com robôs, materiais de construção, peças de manutenção, enfim, o necessário para construir um ambiente sustentável para abrigar humanos. Lentamente eu começo a desvendar os seus mistérios – preciso uma usina de produção de concreto aqui, linhas de energia, turbinas eólicas, produção de oxigênio, armazenamento de água, uma extensa tubulação para transportar todos esses mantimentos para a minha primeira redoma.
Como a vida em Marte pode ser esperançosa, não? Imagine só você no controle de uma missão realizando a fantasia de sairmos desse planetinha azul, transformando em realidade o feito inimaginável de trazer os primeiros humanos para explorar o que até então só víamos em fotos ou vídeos.
Com minha redoma construída e as primeiras habitações agora ativas, era hora de escolher quem viria ou não para o planeta. Surviving Mars reforça essa ideia de que só os “melhores dos melhores” ou aqueles cujas características são compatíveis com a missão terão o direito de participar dela. Cientistas, geólogos, alguém que irá de fato contribuir com o avanço da humanidade. Os gatos pingados que sobram ficam para o trabalho em cassinos, equipes de limpeza ou outras tarefas consideradas “mundanas” ou de baixa importância para o game.
E até certo ponto eu entendo esse ponto de vista; é uma nova fronteira, algo desconhecido. Nem mesmo na realidade nós iríamos enviar alguém sem um certo preparo físico / mental / social para essas situações. Surviving Mars, porém, nunca vai além de tratar os seres humanos como “apenas mais um número”. Isso me incomoda, muito.
Esse distanciamento começa a se tornar ainda mais presente à medida que a colônia é expandida, com novas redomas de habitação construídas, maior demanda de energia, oxigênio, alimento, diversão e lazer. Bastou colocar um cassino ou um bar e todos estão magicamente felizes. Em teoria as edificações de lazer deveriam prover bônus ou prejuízos para certos moradores – como o perigo do alcoolismo para aqueles que têm tendência ao vício – mas a realidade é que eu normalmente estava muito preocupado com outros problemas, tipicamente estruturais, para me importar com a vida humana naquele planeta.
Toda edificação tem um custo de manutenção e se desgasta na medida em que é usada; cabos de energia mais antigos podem entrar em curto e cortar metade do abastecimento de uma região caso a sua rede não tenha sido bem planejada. Além do mais, tempestades de areia tendem a reduzir a produção de energia elétrica e ter geradores deixa de ser uma comodidade para se afirmar como uma necessidade.
Não nego que neste aspecto a Haemimont Games fez um trabalho excepcional e resolveu muitas das minhas críticas em relação à Cities: Syklines, em particular a falta de interatividade. Talvez uma das decisões que mais me agrada na questão da expansão orgânica das colônias seja justamente a escassez de recursos básicos e a necessidade de saber como e quando avançar. Colônias requerem um cuidadoso planejamento para não se estenderem demais ao ponto de serem prejudicadas por possíveis catástrofes; edificações requerem manutenção constante e – ao menos no início da partida – tais materiais só podem ser importados da Terra, o que gera certa ansiedade. “Será que o meu estoque de peças eletrônicas é suficiente caso a minha bomba de água pare de funcionar?” ou coisas como “Aqui é uma boa localização para uma segunda redoma, mas eu não vou aumentar demais a carga dos robôs e possivelmente prejudicar o trabalho atual deles?”. Situações assim apaziguam algumas decisões bizarras, como a carência de uma tela de relatório mais detalhada, o terrível – para não dizer ausente – tutorial ou a impossibilidade de selecionar vários robôs e designá-los para um novo drone hub (edifício que os controla). Sério mesmo Haemimont? Um jogo de gerenciamento sem a opção de selecionar em caixa? Vai entender.
E quando tudo parecia “tranquilo”, uma catástrofe terrível acontecia e mais uma colônia destruída.
Chuva de meteoros, catástrofes especiais que vão de aparições surreais a resquícios de inteligência artificiais. Perdi inúmeras colônias; vi redomas serem destruídas por uma chuva de meteoros, ou minha partida ser inviabilizada pela carência de um sistema de aquecimento apropriado para os sistemas de produção de água e oxigênio – o que fez com que eles congelassem.
Mas ainda assim eu jogava um jogo sobre máquinas; sobre como máquinas resolviam o problema de outras máquinas. Edificações de coleta de matéria-prima são compostas por máquinas, extração de metais não-raros são feitos por máquinas, o conserto de áreas afetadas por desastres é feito por máquinas. Os humanos “sobram” para tarefas um pouco mais avançadas, como a produção de materiais eletrônicos ou extração de metais raros – a única fonte de renda do game e o principal motivo para você ter mais financiamento da empresa que o contratou para colonizar Marte. Soa “realista” e ao mesmo tempo distópico.
Empatia deu lugar ao tal “avanço tecnológico” em Marte. Me preocupava mais se os meus robôs cobriam todas as áreas que precisavam de manutenção do que se um morador estava à beira de um colapso de tanto trabalhar. Em dado momento um deles praticamente enlouqueceu e foi levado para a enfermaria para descansar. “Sem problema, vou chamar um novo para ocupar a vaga dele na próxima espaçonave”, palavras que saíram da minha boca antes de perceber o que havia me tornado. Ignorei o sofrimento que causei e simplesmente coloquei outra pessoa no lugar para que o trabalho fosse concluído o quanto antes. Isso numa colônia com 70 a 100 habitantes. Quanto maior, mais distanciamento.
Surviving Mars até tenta criar uma certa ligação com os habitantes, permitindo que você dê nome a eles, coloque em uma lista especial para acompanhar a sua rotina, mas tudo com o propósito de fingir que o jogo realmente se importa. E para mim, se há algo pior do que não se importar, é isso.
As coisas ficam ainda mais deprimentes quando vejo o quão retrógrado ele é em comparação com Tropico 4. Os habitantes podiam não ter traços (sexy, inteligente, preguiçoso) como os de Surviving Mars, mas eles tinham pensamentos próprios, podiam se aliar a facções ou ficar profundamente insatisfeitos com o governo a ponto de tentar uma revolução (não comparo com Rimworld ou Dwarf Fortress pois, sinceramente, seria injusto e o propósito dos games é diferente). Em Surviving Mars os habitantes são as ovelhas e eu, o cão que os guia até o pasto.
Tentava me “entreter” pela árvore de tecnologias, que, assim como a de Stellaris, tem um certo grau de aleatoriedade e garante que toda partida seja um pouco diferente da outra. Ao abri-la lá estavam as tecnologias: menor consumo disso, maior otimização daquilo, refinamento de manutenção daquilo. Máquinas, máquinas, máquinas e mais máquinas — tudo voltado para melhorar o funcionamento ou a eficiência delas. De tempos em tempos surgia uma ou outra que iria beneficiar meus habitantes, mas – mais uma vez – destinada a otimizar a produção deles. Há até uma que permite a um geólogo produzir mais se ele trabalhar em áreas que gosta. Isso realmente precisa ser uma tecnologia? Isso tende a ser o resultado do que acontece quando fazemos o que gostamos.
Pode demorar uma, duas, vinte ou trinta horas, mas cedo ou tarde o código para ter uma colônia quase estável é decifrada. As máquinas estarão em excelente estado de manutenção, edificações como os Drone Hubs serão perfeitamente otimizadas. Os metais raros extraídos irão gerar renda suficiente para eu expandir ainda mais a minha “dominação” de Marte.
E os humanos?
Surviving Mars diz que é sobre sobreviver em Marte, construir uma nova colônia, realizar descobertas científicas. Mas é difícil ver esse lado quando quase tudo nele está relacionado à eficiência e lucratividade da colônia, ao ponto de seres humanos parecerem pouco mais do que engrenagens numa enorme máquina. Ao invés de tentar demonstrar um futuro brilhante para a humanidade, transporta os mesmos problemas da Terra para outro planeta. As pesquisas servem unicamente para melhorar o que já está presente, as máquinas dão lugar aos humanos e estes são esquecidos com o tempo.
Eu não olho para as estrelas com a esperança de que um dia nós possamos expandir ainda mais o nosso domínio, trazer a nossa cultura para novas espécies ou qualquer coisa do tipo. Me empolgo com avanços tecnológicos pois acredito que nós, como espécie, podemos – e devemos – ser melhores do que um amontoado de carne em constante desarmonia. Podemos perder tecnologias, tempo, dinheiro até. Mas a vida humana continua inestimável. Em Surviving Mars, ela não tem valor.
Surviving Mars
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Surviving Mars serve como um competente quebra-cabeça de construção. Planeje e execute a construção de estruturas – recoste-se na cadeira e aprecie a sua “genialidade” ao ver como você ampliou a sua produção. Remova qualquer empatia pelo ser humano e você terá a sua colônia perfeita. Do que vale a ciência, então? Encher os bolsos dos mais ricos? Brincar de construir cidades? Se é para me mudar e criar a Terra 2.0, prefiro ficar por aqui mesmo.